Congresso Nacional de Comunicação encoraja ótica emancipatória no desenvolvimento de pesquisas

Número recorde de apresentações envolvendo diversidades e inclusão na 46ª edição do Intercom aponta para novo caminho trilhado pelos estudos em comunicação no Brasil

 12/09/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Danilo Queiroz*
Arte: Carolina Borin e Joyce Tenório**

O Congresso Nacional de Comunicação (Intercom) aconteceu durante o feriado da independência e teve como máxima discutir a comunicação a partir de um olhar brasileiro e emancipatório - Foto: Danilo Queiroz/Jornal da USP

Em meio ao feriado nacional em que se celebra o Dia da Independência, estudantes e pesquisadores da comunicação social vindos de todos os estados do País aterrissaram em Belo Horizonte para o maior evento latino-americano dedicado aos estudos produzidos por profissionais de jornalismo, relações públicas, publicidade, rádio, televisão, cinema, produção editorial e de conteúdo para mídias digitais, entre outros.

Este ano, a 46ª edição do Congresso Nacional de Comunicação (Intercom) teve como tema Comunicação e políticas científicas: desmonte e reconstrução“. Segundo os organizadores do evento, o motivo da escolha do tema foi uma resposta  aos ataques do governo anterior direcionados à ciência, à comunicação e às artes. Além de um expressivo corte nos investimentos dedicados às pesquisas em comunicação e cultura dentro das universidades, profissionais da comunicação foram exponencialmente descredibilizados e violentados.

Diferentemente de outras edições, no qual era expressiva a apresentação de pesquisas realizadas por comunicólogos a respeito de críticas da mídia, perfil de mercado publicitário, cinema e fotografia internacional, desta vez, desde as inscrições até a submissão dos artigos e apresentações, a máxima foi discutir a comunicação a partir de um olhar brasileiro e emancipatório. De acordo com a organização do Congresso estiveram presentes no encontro cerca de 4 mil participantes.

A diversidade e a inclusão estiveram presentes nas pesquisas de forma nunca antes vista. “Tivemos um número recorde de inscrições envolvendo pesquisas ligadas à comunicação antirracista, queer e inclusiva. Isso nos fez perceber o quanto nosso povo tem servido de inspiração nas pesquisas”, afirmou Juliano Domingues, professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e presidente da Intercom, em uma das cerimônias do evento. Foram mais de 930 trabalhos divididos em 33 grupos de pesquisa – modalidade destinada a pós-graduandos e professores – e 245 divididos em 8 grupos no Intercom Júnior, espaço dedicado aos pesquisadores que ainda estão na graduação ou são recém-graduados.

A reportagem do Jornal da USP esteve na capital mineira acompanhando o congresso,  sediado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas, no campus Coração Eucarístico. Nesta edição, foram apresentados 84 trabalhos realizados por pós-graduandos e 4 graduandos da USP.

Grupos de Pesquisa do Intercom

Intercom Jr.

Na conferência de abertura, o professor Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, apresentou projetos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade voltados às práticas de comunicação educomunicativas e identitárias. Janine, que também é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso  da Ciência (SBPC), criticou o distanciamento das universidades com a sociedade e pontuou que esse comportamento acaba por reproduzir autoritarismos e práticas violentas miradas à comunicação.

Para ele, um dos caminhos possíveis para que essa aproximação aconteça são os projetos de extensão presentes nas universidades, tanto públicas como privadas. Segundo Janine, é a partir de atividades, cursos e oficinas com a sociedade civil que a cidadania passa a ser consolidada. “Na USP, a extensão já faz parte do nosso currículo. Nosso desejo é que profissionais da comunicação a partir do diálogo com as comunidades fortaleçam a cidadania e alertem para os riscos de uma sociedade que não admite o exercício da comunicação de forma segura.”

Ao final do evento foi lida uma carta, que se soma às iniciativas coordenadas pela SBPC, em defesa da comunicação na luta pela democracia brasileira. Segundo a comissão organizadora da Intercom, momentos como esse passarão a ser um marco na cerimônia de encerramento do congresso nacional. “Entendemos que precisamos nos expressar junto à sociedade brasileira, dizer do nosso sentimento e de nosso compromisso com a comunicação numa perspectiva democrática e socialmente referenciada, que subscrevemos esta carta. Calar-nos seria conivência ou omissão. E não podemos ser omissos e, muito menos, coniventes”, defenderam. A carta também é assinada pela Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) e pela Federação Brasileira de Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação (Socicom). A carta pode ser consultada e assinada na íntegra neste link divulgado pelos organizadores. 

Renato Janine Ribeiro - Foto: Valter Campanato/Agência Brasil via Wikipedia

Olhar interno

Analisar de forma crítica a comunicação a partir de um olhar interno ainda é um grande desafio. Nas escolas de comunicação espalhadas pelo País, a maioria dos referenciais teóricos estudados vinham da Europa, Estados Unidos ou de países localizados no norte global, como por exemplo o teórico canadense Marshall McLuhan.

Nesta edição do Intercom, inúmeros  trabalhos  tiveram a sensibilidade de selecionar a referência bibliográfica a partir de um olhar latino-americano, ou, até mesmo brasileiro. Algumas referências citadas pelo Grupo de Pesquisa Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, da Intercom, foi a professora Marcia Guena, da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), e o professor Dennis Oliveira, da ECA. Ele esteve presente no evento apresentando suas pesquisas e coordenando algumas mesas desse GP, que chegou ao Intercom pelo segundo ano consecutivo. Neste ano, o grupo foi o segundo maior em número de apresentações, perdendo apenas para o GP Tecnologias e Culturas Digitais. Em sua apresentação, o pesquisador discutiu a midiatização e cobertura jornalística da imprensa brasileira em casos de racismo. 

Palestra de Dennis de Oliveira - Foto: Danilo Queiroz/Jornal da USP

A pesquisa analisou coberturas realizadas no UOL e no G1 – por serem os portais de notícias mais acessados pela população brasileira, segundo o instituto Reuters – em junho deste ano. Os números apresentaram baixa repercussão atribuída pelos veículos de comunicação nos casos. “Há um pequeno avanço da agenda antirracista nos veículos, mas é um esforço mínimo. Além disso, as coberturas analisadas evidenciaram que o racismo vai ser deslocado para um fenômeno apenas comportamental e descritivo”, explica Oliveira. “É nítido, também, a ausência dos movimentos sociais nas coberturas, demonstrando a despreocupação da mídia hegemônica em combater o fenômeno no País. Nossas pesquisas mostram o quanto a negritude é a nossa referência intelectual porque nossa atuação é aquilombada, coletiva”, acrescenta ele, que também é ativista da Rede Antirracista Quilombação.

As discussões não estiveram presentes apenas nesse GP, que diretamente já apresenta as discussões étnico-raciais em seu escopo. Um exemplo disso foi a apresentação do artigo Abre caminho, vence demanda: liberdade de expressão e discurso de ódio sob o ponto de vista da encruzilhada, produzido pela professora Carla Risso, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e da professora Daniela Oswald, da ECA, no GP Comunicação, Liberdade e Expressão. 

O trabalho apresentado pelas pesquisadoras trouxe uma concepção “exusíaca”, ou seja, associadas a Exu, a partir de um itã – narrativas iorubás – ao conceito de liberdade de expressão. Segundo elas, o conceito originalmente é marcado pelo colonialismo e por uma influência neoliberal que pauta a liberdade como algo totalitário e não igualitário. “Trazer à tona uma ótica afrodiaspórica seria um caminho possível para enxergar a comunicação como elemento, não apenas reprodutivo, como também crítico e questionador”, orientou Daniela. Ela também convidou todos e todas a “se unirem em um esforço intelectual e cultural na busca pela decolonização das pesquisas científicas, uma forma também de enxergar e analisar o mundo.”

Palestra de Daniela Oswald - Foto: Danilo Queiroz/Jornal da USP

Por mais novos olhares

O Intercom Júnior também foi destaque nas apresentações de pesquisas ligadas à diversidade e inclusão de estudantes, que enxergam o espaço acadêmico como forma de autoconhecimento. Theo Neto é um homem preto, gay, nordestino e viu a partir de um trabalho de conclusão de curso em Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) a possibilidade de se aceitar e enxergar o amor para pessoas pretas. “É mais difícil imaginar o amor para pessoas como nós. Foi pesquisando as produções musicais de Rico Dalasam, primeiro queer rapper LGBTI+ do Brasil, que eu descobri que pessoas como eu poderiam ser amadas”, contou o estudante. “Até porque somos vistos de forma hipersexualizada, seja pela sociedade no geral, ou até mesmo dentro da comunidade preta e gay”, acrescentou ao explicar que esse comportamento é fruto do racismo estrutural.

Palestra de Theo Neto - Foto: Daniel Queiroz/Jornal da USP

Palestra de Tarcizio Silva - Foto: Daniel Queiroz/Jornal da USP

O recém-graduado contou que o processo de analisar os discursos das canções de Rico foi um tanto doloroso. “Eu parei para chorar diversas vezes durante a pesquisa. Dói muito! Até porque as concepções de amor que temos foram criadas pela branquitude”, descreveu. “Se eu saí do Rio Grande Norte e cheguei até aqui foi porque eu precisava comunicar isso. Eu precisava dizer que esses novos olhares não bastam. Precisamos de mais. Precisamos enxergar a comunicação com outros olhos. Não só isso, precisamos questionar que academicismo é esse que temos reproduzido. Porque o academicismo que afasta tem gênero, tem cor, e nem leva em consideração as nossas linguagens”, criticou Theo. Ele defende a ampliação dos programas de acolhimento e permanência estudantil dentro das universidades.

Além das apresentações, 54 oficinas e minicursos estiveram presentes no Intercom. O Jornal da USP acompanhou o minicurso Racismo algorítmico: da pesquisa às políticas públicas ministrado por Tarcizio Silva, doutorando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC). Por meio de estudos realizados nacionalmente e internacionalmente, o pesquisador propôs o seguinte questionamento: “até que ponto poderemos decolonizar as inteligências artificiais?”. “Existe uma colonialidade no desenvolvimento dos softwares. Para além disso, no universo dos dados o apagamento também existe, o epistemicídio algorítmico, que impede o alcance de pesquisas e conteúdos produzidos nas redes sociais desenvolvidos pela comunidade negra”, explicou Silva. 

Ao final do evento, houve a entrega da Expocom, premiação destinada aos melhores trabalhos experimentais produzidos exclusivamente por estudantes no campo da comunicação. Durante a cerimônia, foram realizadas batalhas de hip hop, com versos que traduziam apoio e encorajamento para a continuação de pesquisas realizadas a partir de uma ótica emancipatória e pertencente nos estudos em comunicação. 

*Estagiário sob supervisão de Antonio Carlos Quinto e Tabita Said

**Estagiárias sob supervisão de Moisés Dorado


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