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Artista não binário desafia regras do teatro e do senso comum
Peça Culpa, dirigida e protagonizada por pós-graduando da USP, faz parte de um conjunto de três obras que exploram o tema da transição de gênero e põem em xeque as fronteiras entre realidade e ficção
Oliver Olívia: “Eu tinha muita raiva de ser trans, porque, depois que você percebe, não tem volta. E é engraçado pensar sobre hoje em dia, porque eu tô muito em paz com isso” - Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: assessoria de imprensa do Sesc Belenzinho/Jennifer Glass
Oliver Olívia Fernandes é a primeira pessoa não binária a integrar o programa de pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Oliver Olívia dirige e protagoniza a peça Culpa, que está estreando nesta sexta-feira no Sesc Belenzinho, em São Paulo, e continua em cartaz até dia 23. A obra é autobiográfica e faz parte de um conjunto de três peças que desafiam as ideias do senso comum sobre o que é a realidade, o gênero e o teatro. Pessoas trans podem assistir à peça gratuitamente pela lista transfree entrando em contato com a Associação SÙ de Cultura e Educação, ONG que promove projetos educacionais e culturais no Brasil. A obra, que estreou nesta sexta-feira (7), contém cenas fortes.
Oliver Olívia defendeu, em 2024, seu mestrado na ECA, intitulado Da transição de gênero à materialidade da cena: proposta de uma epistemologia não binária de criação em artes cênicas. Nele, o ator faz uma análise de três peças: Não ela (2020), Ele (2021) e Culpa. As obras exploram os conflitos em torno da identidade de gênero de Oliver e colocam em cena seu namorado, Lucas, e seus pais, Rosana e Eugênio.

Oliver Olívia - Foto: assessoria de imprensa do Sesc Belenzinho/Jennifer Glass
Em Culpa, há objetos pessoais, diálogos espontâneos e músicas que fazem parte do dia a dia da família em um enredo construído coletivamente. Esse tipo de peça é chamado de teatro documental, uma obra experimental que coloca pessoas sem experiência em atuação no palco para retratar o cotidiano como ele é. O objetivo dessa técnica é explorar as fronteiras entre ficção e teatro, que, no senso comum, são considerados opostos.
“Passei a ser habitado pelo desafio autoimposto de tensionar as fronteiras binárias e aparentemente intransponíveis de realidade e ficção do teatro. (…) O paradigma cis e binário, desenhado de maneira incapaz de abarcar uma vivência como a minha, ironicamente terminou por comportar as bases para a efervescência de um fazer cênico que me encantei em explorar”, escreve Oliver na dissertação.
O artista chama o conjunto das três peças de Tríptico, em referência às pinturas compostas com três painéis em uma moldura. Oliver explica que escolheu esse nome pois suas obras não têm uma estrutura cronológica. Elas representam pontos de vista diferentes da mesma situação: a transição de gênero. Por isso, não há uma ordem “correta” para se assistir às peças – assim como não existe uma única ordem para se observar um desenho em tríptico.
A forma de fazer teatro que o pesquisador escolheu coloca as pessoas que estão no palco frente a frente com questões sensíveis. “Uma vez minha mãe falou, durante uma cena de Culpa, ‘parece que a minha filha morreu. Parece que você matou a minha filha’. E eu meio que matei a filha da minha mãe, mas não fui a lugar nenhum também”, relata. Após realizar diversos ensaios e apresentações, Oliver afirma que os conflitos com seus pais, com o namorado e consigo mesmo em relação ao seu gênero não o incomodam mais.
Em Culpa, cada um pôde escolher e opinar sobre as ações que faria em cada cena - Foto: assessoria de imprensa do Sesc Belenzinho/Jennifer Glass
A descoberta da transsexualidade
Para entender o que é ser não binário, Oliver precisou, primeiro, entender o que é gênero. Na pesquisa, o especialista realiza uma análise do conceito utilizando as teorias dos filósofos especialistas em gênero Paul Preciado, espanhol, e Judith Butler, estadunidense. Ambos afirmam que ser mulher ou homem depende de como uma pessoa se apresenta, não da sua genital, como entende o senso comum.
Segundo Butler, os padrões que definem o que é feminino e masculino não condizem com as características naturais humanas e mesmo as pessoas que não são transsexuais estão em constante busca de se aproximar dessas normas para serem vistas pelos outros como desejam. É por isso que, por exemplo, algumas mulheres se depilam, e alguns homens usam produtos para a barba crescer.
Nessa análise, gênero é, na verdade, uma performance, um “jogo de como a gente se apresenta a partir do que a gente conhece e como nos leem”, explica Oliver. “É engraçado ser uma pessoa trans não binária, porque, quando eu não sabia que era, eu me questionava: será que sou um homem trans? E fui descobrindo que não, que eu gostava de ficar no entre. É como me sinto mais confortável, mas também é divertido ver como as pessoas me leem”, diz o pesquisador.
Com o tempo, Oliver percebeu que atuar e explorar as formas de se apresentar na sociedade em seu próprio cotidiano eram ações semelhantes. Por isso, decidiu se aprofundar no teatro documental, partindo das experiências vividas, sem uma moral da história programada.
Os conflitos e a aceitação no teatro
O Tríptico começou a ser roteirizado com a peça Não ela, em que Lucas lê os textos que escreveu sobre como não conseguia aceitar a transsexualidade do namorado. A plateia também participa da leitura, que dá voz a pensamentos transfóbicos e misóginos. Oliver escolheu esse tema pois acredita que ignorar os preconceitos não faz com que eles deixem de existir, “logo, nessa peça, decidimos enfrentá-los; (…) olhar para eles, presenciar nome, forma, contorno – dissecá-los”, explica.
Em seguida, o ator escreveu o Ele, na época em que começou a tomar testosterona e perceber as mudanças que o hormônio provoca no corpo e nas sensações. Lucas também aparece nessa peça, já aceitando a não binariedade de seu namorado. As cenas trazem o cotidiano de uma forma ainda mais disruptiva, com lutas de jiu-jitsu, exercício físico, fumo, cerveja e sexo. A obra ganhou o prêmio de melhor peça no Festival Mix Brasil em 2021.

Lucas Miyazaki, à esquerda, e Oliver, à direita, durante a peça Ele - Foto: cedida por Oliver Olívia
Agora, em Culpa, Oliver explora os conflitos com seus pais desde que se descobriu transsexual até a sua cirurgia de mastectomia, em que se retira os seios. O pesquisador reitera que “o Tríptico todo, inclusive Culpa, está numa chave de não colocar um discurso trans que seja vitimista. Ele não foi feito para vender. Tanto que esse que a gente ganhou o prêmio, [Ele,] quando eu mostrei o roteiro para o meu namorado, ele falou, ‘a gente não vai passar com isso aí’. E eu respondi, ‘não interessa, é isso que eu quero fazer’.”
Nas apresentações, ou quando entra em contato com os produtores dos teatros, o artista se depara com especialistas das artes cênicas que menosprezam as suas peças. “Nas artes cênicas, o pessoal é muito fechado. Quem gosta desse tipo de experimentação, fala, ‘não, isso é performance’. Mas aí a gente perde o espaço de experimentação no teatro, a gente deixa ele nas mãos de pessoas conservadoras em termos de linguagem.” Por isso, Oliver reitera que as obras que produziu não são performances, mas, sim, teatro.
Espetáculo Culpa
Local: Sesc Belenzinho, sala de espetáculos. R. Padre Adelino, 1000 – Belenzinho, São Paulo – SP, 03303-000.
Data: de 7 a 23 de fevereiro de 2025
Horários: de sexta a sábado, às 20h, e domingos, às 18h
Ingressos: https://www.sescsp.org.br/programacao/culpa/
Classificação indicativa: 18 anos
Para entrar na lista transfree, é preciso enviar uma mensagem para o Instagram da Associação SÙ de Cultura e Educação ou pelo e-mail contato@su.art.br
De acordo com a Consulta LGBT, clínica de saúde privada exclusiva para pessoas da comunidade LGBTQIA+, “pessoas não binárias são aquelas cuja identidade de gênero não se encaixa exclusivamente nas categorias tradicionais de ‘masculino’ ou ‘feminino’. Em vez disso, suas identidades podem estar em algum lugar entre esses dois polos, ser uma combinação de ambos, ou até mesmo transcender completamente essa dicotomia”.

Foto: assessoria de imprensa do Sesc Belenzinho/Jennifer Glass
**Estagiário sob supervisão de Simone Gomes
Foto: assessoria de imprensa do Sesc Belenzinho/Jennifer Glass

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