Transmasculinidades encontram ampla defasagem no acesso à saúde sexual e reprodutiva
Para pesquisador da USP, profissionais de saúde não têm preparo para atender às demandas da população trans
1ª Marcha Transmasculina do Brasil ocorreu em março deste ano e reuniu mais de 10 mil pessoas pelas ruas de São Paulo - Foto: Mídia NINJA/Flickr/CC BY-NC 2.0
Uma pesquisa realizada na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP investigou as demandas e defasagens das políticas públicas de saúde referentes à população transmasculina no Brasil. A dissertação de mestrado Transmasculinidades e o colapso no (cis)tema de saúde: dilemas emergentes no campo da saúde sexual e reprodutiva — barreiras, estratégias e transfobia obstétrica, apresentada no primeiro semestre deste 2024, tem como autor o obstetriz Gabriel Marttin, que contou com a orientação do professor Diego Madi Dias.
Ainda que os direitos sexuais e reprodutivos estejam contemplados no rol dos direitos humanos, a saúde pública brasileira ainda falha em garantir assistência a toda a população, como, por exemplo, quando está relacionada aos homens transexuais e às pessoas alinhadas a identidades transmasculinas.
Nesta quarta-feira, 4 de setembro, é celebrado o Dia Mundial da Saúde Sexual, data proposta pela Associação Mundial para Saúde Sexual, em 2010, a fim de estimular o debate acerca de temas referentes às sexualidades. Contudo, de acordo com o pesquisador, “a saúde sexual e reprodutiva e a gestação de pessoas trans ainda não são uma pauta na saúde formal. No hospital onde eu trabalho, quando digo o que estou pesquisando e estudando, dizem: ‘Nossa! Mas como assim um homem engravida?’ As pessoas não sabem a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. Para mim, essa é a grande questão do meu trabalho: ainda não existe essa discussão dentro dos serviços de saúde”.
Para realizar seu estudo, Gabriel utilizou-se da técnica de entrevistas semiestruturadas realizadas com dois homens trans e um transmasculino. De acordo com a ONG Associação Brasileira Intersexo (ABRAI), homens trans são pessoas identificadas como sendo pertencentes ao gênero feminino no nascimento, mas que se reconhecem como pertencentes ao gênero masculino e reivindicam-se como homens. Já os transmasculinos são pessoas identificadas como sendo pertencentes ao gênero feminino no nascimento, mas que se reconhecem como pertencentes ao espectro do gênero masculino. Têm expressão de gênero masculina, mas não se reivindicam da forma com que o ser homem está construído em nossa sociedade.
Non nova, sed nove: como mudar as formas de promover saúde?
De acordo com a descrição institucional do curso de bacharelado em Obstetrícia, “o programa tem por objetivo formar profissionais para trabalhar na área da saúde da mulher, desenvolvendo ações de cuidados e promoção da saúde, especialmente no decorrer do pré-natal, parto normal e pós-parto. O profissional formado pelo curso pode dar assistência à gestante, recém-nascido e comunidades”.
Gabriel relata que a graduação é construída com uma abordagem que visa à saúde da mulher no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), atividade que desempenhou por algum tempo após finalizar a graduação.
“Mas, dentro disso, o lema do curso é ‘non nova, sed nove’ e quer dizer ‘não nova, mas feita de forma nova’. E aí, a minha grande inquietação foi justamente essa: como fazer a obstetrícia de forma nova? Quem a gente está atendendo? Foi por isso que eu comecei a pensar para além do campo de saúde da mulher cisgênero. Comecei a buscar novas formas de ressignificar a obstetrícia. Durante o mestrado, decidi olhar para as transmasculinidades e acabei vendo que sim, homens trans e transmasculinos estão engravidando, gestando e parindo”, relata o pesquisador.
O que é saúde pública, sexual e reprodutiva
A saúde pública é entendida como o processo de organização de sistemas e serviços de saúde com base na ciência. A partir da saúde pública, são elaboradas políticas e diretrizes para contemplar a população nas dimensões física, mental e social.
Como descreve Gabriel ao Jornal da USP, “há uma junção de diferentes disciplinas para elaborar um plano que entende a saúde não só como o oposto da doença, mas como um evento, um processo de vida; para conseguir atender à saúde de forma interdisciplinar, considerando os aspectos biopsicossociais”. A grade curricular da graduação em Saúde Pública, curso oferecido pela USP, por exemplo, conta com disciplinas como Estudos Epidemiológicos, Imunologia, Vigilância em Saúde, Ética e Sustentabilidade, Sociologia Política e Economia Brasileira.
“Dentro da saúde pública, existe a saúde da mulher, que é um campo muito forte e que inclusive é uma questão muito importante para o meu trabalho, porque as transmasculinidades são assistidas pela saúde da mulher. E dentro da saúde da mulher existem também a saúde sexual e a reprodutiva; são uma subárea. Existe uma diferença entre saúde sexual e reprodutiva, mas as duas estão muito ligadas”, explica o obstetriz.
A saúde sexual aborda a livre vivência dos indivíduos em relação às suas sexualidades, apoiando-se na comunicação e conscientização para evitar riscos, como os de infecções sexualmente transmissíveis, gestações não planejadas, violência e discriminação. “E isso está totalmente ligado à reprodução: se uma pessoa vai ter práticas sexuais e não quer engravidar, como vou orientá-la em relação a métodos contraceptivos?”, indaga Gabriel.
Por sua vez, a saúde reprodutiva refere-se à experiência consciente, segura e responsável dos processos de reprodução, bem como a abordagem ampla dos diferentes métodos de concepção.
Despatologização
Gabriel enfatiza a plena despatologização das identidades trans como um dos aspectos principais para a manutenção do acesso à saúde sexual e reprodutiva. Desde 2022, quando entrou em vigor a 11ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (OMS), a transexualidade deixou de compor a lista de doenças e distúrbios mentais e foi transferida para o capítulo referente a condições relacionadas à saúde sexual, sendo classificada como “incongruência de gênero”.
Apesar da importante conquista, o pesquisador explica que, no Brasil, ainda permanecem desafios e divergências, principalmente em relação ao Processo Transexualizador. Instituído pelo SUS em 2008, ele oferece acesso a procedimentos com hormonização e cirurgias de modificação corporal, ambos sob acompanhamento multiprofissional. Em 2013, o programa foi ampliado para atender também a homens trans e travestis.
Um dos requisitos básicos para o acesso ao Processo Transexualizador é o acompanhamento por psicólogos e psiquiatras durante o período de dois anos, com avaliação final que pode ou não encaminhar para cirurgia. “É colocada uma checklist para identificar se você é homem trans ou não. Você vai conseguir ter acesso à testosterona e à mastectomia, mas para isso eu preciso te diagnosticar homem trans, com disforia de gênero.”
“Esse é o lado ambíguo do Processo Transexualizador: ele exige um diagnóstico, mas um homem trans não precisa necessariamente usar testosterona para ser homem. Há uma necessidade de diagnosticar, de colocar o homem dentro dessa identidade binária, que é associada a barba ou músculos, por exemplo. E isso não faz sentido nenhum, não é só porque eu tenho barba que eu sou homem. A barba em si não define um homem. O que define um homem é como ele se identifica”, analisa o obstetriz.
Ele menciona o impacto provocado pelo relato de gestação de um dos transmasculinos entrevistados para a dissertação: “Eu tinha noção de que parir em um hospital sendo um homem trans era grave, mas eu não tinha noção do quão violento isso era já durante o pré-natal. Na verdade, o parto dele foi domiciliar, como uma estratégia de fuga para que não fosse no hospital, uma fuga que já vinha desde o pré-natal. É uma violência que começa muito antes do parto e que vai para depois do parto.”
Serviços e profissionais de saúde
Os serviços informais de saúde são espaços onde as pessoas buscam informações para resolução de dúvidas, como a internet ou redes de apoio. Gabriel aponta que, no caso dos homens trans, a maioria busca acesso a medicação clandestina para tratamento hormonal, e também alerta para a problemática do aborto inseguro.
No Brasil, o aborto é permitido apenas nos casos em que a gravidez representa risco de vida à pessoa gestante, em que foi ocasionada por estupro e em caso de anencefalia do feto. Apesar disso, o Ministério da Saúde estima que cerca de um milhão de abortos induzidos ocorram anualmente no país. “É um perigo enorme os serviços de saúde não acolherem essas pessoas e elas desistirem de serem assistidas. Homens trans abortam e correm risco de morte”, diz o obstetriz.
Se eles precisam criar estratégias para acessar [mecanismos de] saúde, é sinal que a saúde formal, no âmbito do SUS, não está conseguindo atendê-los.
Gabriel Marttin
Gabriel opina que há uma incompreensão por parte dos profissionais de saúde sobre as diferentes nuances que envolvem sexualidade e gênero. Além disso, boa parte dos procedimentos médicos é orientada pelo padrão cis-heteronormativo: “Essa noção binária e heteronormativa quebra o processo de saúde e assistência dos homens trans. Se eu leio ele nessa norma sexo-gênero-desejo, ou seja, um homem trans deve performar masculinidade e ser heterossexual, darei a ele uma assistência iatrogênica — aquela em que eu não promovo saúde, eu dou a orientação errada. Se não há uma conversa sobre as práticas sexuais que ele experimenta, posso deixar de orientar ele sobre as ISTs ou o uso da testosterona”.
O médico ginecologista Sérgio Gonçalves, formado pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), explica que o tratamento hormonal com testosterona não é um método contraceptivo pois, apesar de suspender a menstruação, não impede a ovulação e uma possível nidação — processo de fixação do embrião na parede uterina.
O que acontece é que os níveis elevados de testosterona no corpo causam diminuição do estrogênio, hormônio responsável pelo espessamento do endométrio. A menstruação é o nome dado à descamação do endométrio quando não há fecundação bem-sucedida. Com ele fino, há pouco ou nenhum sangramento, o que não impede que haja a nidação, ainda que não seja a configuração mais promissora.
“Olha o ciclo: ele não recebeu a informação, engravida e não pode abortar, porque é crime. Se continuar a gestação, terá mudanças corporais, porque terá que parar de tomar testosterona, e pode voltar com algum fenótipo considerado de mulheres cis, em um corpo gestante, mas com alguns traços ainda de barba. Para a sociedade, vai ser um homem ou uma mulher? Existe aí um agravamento da disforia de gênero por conta dessa gestação que não foi planejada. Um ciclo que se desencadeia por não ter assistência e acolhimento do homem trans no serviço de saúde”, pontua Gabriel.
Há ainda, segundo ele, o perigo da negligência no atendimento durante o período pré-natal, quando são realizados diversos exames para acompanhar a saúde da pessoa gestante e o desenvolvimento do feto.
De acordo com Sérgio, o ideal é que o uso da testosterona seja suspenso durante a gestação. “A testosterona em níveis altos pode levar, por exemplo, ao que a gente chama de virilização da genitália. Um embrião do sexo feminino submetido a doses altas de androgênios pode desenvolver alguns tipos de malformação genital ou virilização da genitália, quando nasce sem que a genitália esteja bem definida.”
Sobre a questão, Gabriel complementa que outra reivindicação das transmasculinidades é respeito ao uso de pronomes dentro dos serviços de saúde. A demanda é amparada pela portaria nº 1.820/2009 do Ministério da Saúde, que reconhece o uso do nome social, em especial para pessoas que não se identificam com as características do sexo atribuído no nascimento, no âmbito do SUS. “Ainda que exista a lei, muitas vezes o nome social do usuário ainda não é respeitado.”
A campanha “Como você quer que eu te chame?” contou com a elaboração de cartazes, folhetos, bottons e cartilhas para reforçar o direito pelo uso do nome social nos serviços de saúde - Foto: Prefeitura Itaim Paulista/Facebook
Gabriel adverte para “uma defasagem em todos os cursos, inclusive no curso de Obstetrícia da USP. Em nenhum momento da graduação eu estudei saúde sexual e reprodutiva das transmasculinidades. No campo da saúde, eu acho que não estamos caminhando. Não estamos estudando gênero, ainda. Na minha graduação, que é bem diferente no campo da saúde, a gente não estudou gêneros não normativos, só a binaridade homem-mulher”.
Ele relata que há na grade curricular uma matéria sobre gênero, na qual são abordadas organizações e lutas femininas, que reivindicavam atenção para a saúde das mulheres não só durante a gravidez. “A saúde da mulher foi construída sob muita luta. E aí, quando a gente tem as transmasculinidades acessando esse serviço e trazendo novas pautas e novos temas, como a gente vai desconstruir um campo — o de saúde da mulher — que foi construído com muita luta?”, questiona o obstetriz.
Para ele, o caminho mais promissor é a inclusão de pessoas trans na academia: “Eu entendo o meu lugar de construção de conhecimento puramente epistêmico. Não sou um homem trans e não vivencio isso. Que bom que estou construindo isso, mas que lindo seria se um homem trans estivesse construindo isso. Aí, vem a discussão sobre cota para pessoas trans: é sobre tirar essas pessoas da margem e trazer para a academia, para eles construírem a própria história, não apenas em textos de pós-graduação”.
Como vamos mudar essa realidade se ainda temos uma formação, não só universitária e acadêmica, uma formação de base que é binária? Para a gente mudar a ponta, os hospitais, temos que começar lá atrás, na educação institucionalizada das crianças. É um grande desafio"
Gabriel Marttin
Gabriel cita a Política Nacional de Saúde Integral LGBT do Ministério da Saúde como um exemplo da defasagem de orientação aos profissionais sobre as transmasculinidades: “[a Política] fala do exame de papanicolau para mulheres lésbicas e bissexuais, mas não menciona os homens trans. Mas os homens trans também têm colo do útero, têm prática sexual, têm manuseio do colo de útero e podem desenvolver o câncer também; então, por que não estão mencionados?”, provoca o pesquisador. O documento não é atualizado desde sua publicação, em 2011.
Em contrapartida, “em São Paulo, existe um documento muito completo: o Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo. Ele é um manual de atendimento para pessoas com gêneros não normativos e travestis”, elogia o obstetriz. A política foi revisada e ampliada em 2023.
O documento produzido pela Secretaria Municipal de Saúde foi revisado pelo Comitê Técnico de Saúde da População LGBTIA+ e por profissionais de saúde de diversas instituições públicas - Foto: prefeitura.sp.gov.br
*Estagiário sob supervisão de Antonio Carlos Quinto
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.