Alunas ouvintes marcaram o início da participação feminina na Engenharia da USP

Histórias das primeiras mulheres a ocuparem a engenharia são algumas das transformações da Escola Politécnica da USP, descritas em uma página especial dedicada aos 130 anos da instituição

 27/09/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Luana Takahashi*

Arte: Gabriela Varão**

Imagem histórica do acervo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo, do livro Tecnologia em Preto e Branco, Versal Editores, p. 38 - Foto: Reprodução / Poli-USP

A participação feminina na Escola Politécnica (Poli) da USP começou de maneira bastante tímida. O livro Mulheres Politécnicas: Histórias e Perfis, organizado pelas professoras Maria Cândida Reginato Facciotti e Eni de Mesquita Samara, conta que, historicamente, as ciências exatas foram concebidas como um campo profissional masculino, onde as mudanças, apesar de lentas, ocorreram somente na segunda metade do século 20. Histórias das primeiras mulheres a ocuparem a engenharia são algumas das transformações da Poli, descritas em uma página especial dedicada aos 130 anos da instituição.

No ano de 1899, há o registro da primeira aluna mulher ouvinte nas aulas, seis anos depois da fundação da escola. De família conhecida e influente, Eunice Peregrino de Caldas não era formalmente matriculada na Poli, mas aos 20 anos foi pioneira da presença feminina entre os engenheiros homens.

A estudante, após sua passagem na escola e ao longo de sua vida, dedicou-se às questões pedagógicas em sua carreira, escreveu e publicou diversos livros didáticos e infantis. Além de ter sido professora em muitas instituições de ensino, foi também fundadora do Liceu Feminino em Santos, criado para formar professoras especializadas na educação infantil.

Eunice Peregrino de Caldas - Foto: reprodução / Poli-USP

No ano de 1930, Eunice é internada forçadamente no Sanatório do Pinel, onde ficou até sua morte. Em artigo publicado na Revista Estudos Feministas, as pesquisadoras Maria de Matos e Bruna Pereira entendem que “as internações [da maioria das mulheres na época] estavam relacionadas ao que era considerado como desvios frente aos comportamentos e normas socialmente desejáveis no momento histórico em foco. A maioria foi internada por familiares contra a sua vontade”. A pesquisa realizada também mostra que o desejo de independência e interesse genuíno pelos estudos fizeram com que Eunice fosse vista como “fora dos padrões” da época.

Desafiaram importantes barreiras sociais e culturais, e atingiram as esferas da ciência e da tecnologia, reservadas até então ao universo do trabalho masculino”

O livro Mulheres Politécnicas: Histórias e Perfis é de autoria de Maria Cândida Reginato Facciotti, engenheira química e professora da Escola Politécnica da USP, e de Eni de Mesquita Samara, historiadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Alcina Maria Moura foi outra aluna ouvinte. Em 1904, com apenas 15 anos, assistia às aulas de Engenharia Civil, e depois mudou para o curso de Engenheiros Arquitetos. Já em 1928, Ana Frida Hoffmann recebe o título de engenheira química, e é a primeira mulher a se formar na Poli, posteriormente se tornando funcionária do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo. No entanto, segundo o livro Mulheres Politécnicas, “a história das mulheres na ciência não foi caracterizada por uma marcha progressiva, mas por uma sequência de avanços e recuos”. Na década de 1920, apenas uma mulher se formou, e na década seguinte, nenhuma.

Documento de admissão de Frida Hoffmann no IPT, primeira mulher a se formar na Poli - Foto: Reprodução / Instituto de Pesquisas Tecnológicas

Nos anos 1950, 27 engenheiras foram graduadas: 22 civis, 2 mecânicas, 1 química e 5 elétricas. O alto crescimento feminino ocorreu principalmente na década de 1970, o número de mulheres cresceu para 157, com predominância no curso de Engenharia Civil. “Quantitativamente, esses dados parecem irrisórios, entretanto, eles significam um começo de abertura da engenharia às mulheres, que adquirem gradativamente seu espaço”, entendem as autoras.
 
De acordo com os dados divulgados pelo Escritório USP Mulheres, os homens constituem a maioria dos alunos da Universidade, oscilando de 57% em 2000 para 55% em 2019, ao passo que as mulheres constituem 43% e 45% no mesmo período. Dentro do período analisado, entre os anos 2000 e 2019, as mulheres apresentaram um crescimento interno da ordem de 57%, enquanto os homens cresceram 42,8%.

Elas na Engenharia

No dia 8 de março de 2018, um momento histórico aconteceu: a Poli elegeu a primeira mulher para diretoria, após 124 anos de sua fundação. Liedi Bernucci, professora formada em Engenharia Civil, abriu portas e buscou servir de exemplo para outras mulheres que querem seguir carreira na área. “Quando mulheres e meninas não são integradas, a comunidade perde habilidades, ideias e perspectivas que são pontos críticos para enfrentar os desafios globais”, entende. É o caso de Geovanna Bispo Almeida, estudante de Engenharia Mecatrônica do primeiro ano da Poli, que, junto de outros colegas de classe, criou um estabilizador de celular a partir de canos PVC para democratizar o acesso à produção audiovisual. O projeto deve ser apresentado nos Centros Educacionais Unificados (CEUs) de São Paulo. “É muito legal poder apresentar a engenharia como algo acessível, e como é um lugar majoritariamente composto por homens, se a gente realmente for nos CEUs, seria importante também mostrar para as meninas que se interessam pela área que existe lugar para elas.”

Liedi Bernucci, a primeira diretora da Escola Politécnica da USP - Foto: Assessoria de Comunicação da Poli

“O fato de as mulheres estarem menos presentes em determinadas áreas de conhecimento tem muito mais relação com questões sociais e com expectativas que pais e comunidade propagam desde muito cedo”, explica Fabio Eon, coordenador de Ciências da Unesco no Brasil durante debate ocorrido em 2019 na Organização das Nações Unidas. A agência da ONU para Educação, Ciência e Cultura possui um amplo banco de dados, aberto ao público, com estatísticas detalhadas sobre meninas e ciências. Acesse o relatório Decifrar o Código: educação de meninas e mulheres em STEM.

Primeira mulher negra engenheira do Brasil

Enedina Alves Marques, formada em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, entrou para a história como sendo a primeira engenheira negra do Brasil. “A sua formatura foi marcada, essencialmente, como um feito de grande curiosidade para a sociedade curitibana, pelo fato de ter conseguido transpor um espaço masculino e branco”, explica Jorge Luiz Santana em seu artigo para a Revista Vernáculo. Ao lado de 32 homens,  Enedina recebeu o diploma, causando estranhamento nos convidados.

A engenheira, que em 2023 completaria 110 anos, era filha de um lavrador e uma empregada doméstica. Santana também conta que Enedina enfrentou diversos embates com a instituição, colegas e, sobretudo, professores. “O espaço acadêmico na década de 1940 foi hegemonicamente masculino, elitizado econômica e socialmente, com distinções étnicas que reproduziam os valores da sociedade paranaense da época, principalmente de exclusão e invisibilidade do outro”, conta.

Enedina Alves Marques - Foto: Wikimedia Commons/Domínio Público

Em 1946, ela se tornou auxiliar de engenharia na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas. No ano seguinte, o governador Moisés Lupion a transferiu para o Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica, onde trabalhou no Plano Hidrelétrico do Paraná e atuou no aproveitamento das águas dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu.

Iniciativas politécnicas

O Diretório Acadêmico da Escola Politécnica realiza, desde 2020, o projeto Meninas na Poli, em que meninas de quaisquer idades e que estejam estudando no ensino médio em escola pública podem se inscrever para participar. No evento, por meio de palestras e atividades interativas, a Poli e a carreira de engenharia são apresentadas. “A engenharia ainda é uma profissão muito associada ao sexo masculino e, neste contexto, a organização acredita que é importante estimular o interesse das meninas na área das exatas, e principalmente mostrar que esta é uma possibilidade, e que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na engenharia”, explica a organização.

Palestra durante a edição de 2022 do Meninas na Poli - Foto: Poli-USP

Clube Minerva, grupo integrante da organização de egressos da Poli, a Associação de Engenheiros Politécnicos, reúne engenheiras e engenheiros formados, estudantes e professores da Poli para iniciativas de equidade de gênero na carreira. “Procuramos dar referências às meninas e mulheres que se interessam pelas carreiras STEM. Fazemos posts trazendo mulheres cientistas e profissionais da área, bem como indicando páginas e conteúdos que possam inspirar nossas garotas a seguirem firme trazendo o olhar feminino, que é inclusivo e abrangente, às exatas”, explica Adriana Kavan, integrante do clube. Kavan se graduou como engenheira entre os anos 1997 e 2002, e ressalta que, apesar das meninas ainda serem minoria, “muitas líderes dos centros acadêmicos são mulheres hoje, coisa impensável na minha época da Poli”.


*Com texto de Luana Takahashi, da Assessoria de Comunicação da Poli, e edição de Tabita Said
 
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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