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Uma das características mais marcantes da arquitetura contemporânea é o nublamento. Edifícios camaleônicos, que parecem trocar de roupa.
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Feita essa afirmação, assim a exemplifica o arquiteto Guilherme Wisnik, professor de História da Arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP: “Volumes biomórficos de contorno indefinido, como o Pavilhão Britânico na Expo 2010 em Xangai, que se assemelha a um ouriço fora de foco. Fractais de nuvem metálica formando um espaço etéreo, como o Pavilhão Serpentine de Sou Fujimoto em Londres, em 2013. Ou, principalmente, edifícios construídos à maneira de caixas de luz, cuja aparência se transforma radicalmente do dia para a noite, pelo efeito de ambiguidade criado entre a iluminação cambiante do interior e suas peles feitas de plásticos e resinas ondulados, de leves chapas metálicas perfuradas, de blocos de vidro côncavos e convexos, ou de placas de vidro translúcido”. É nesse território que se movimenta o novo livro de Wisnik, Dentro do Nevoeiro.
O autor compara esses edifícios sedutores ao primeiro iMac, criado em 1998 e responsável pelas vendas mais rápidas da história da Apple, no qual o interior da máquina é entrevisto através de membranas verde‑azuladas. Ou ainda ao raio X. “Se a profusão das torres de vidro modernas, com seus esqueletos estruturais à mostra, teve um equivalente semântico na difusão dos exames médicos por raio X, que tornaram transparentes as peles e os tecidos humanos, permitindo isolar em imagens as estruturas ósseas dos corpos, os atuais edifícios com fachadas translúcidas, ou semiopacas, nos quais a ossatura estrutural se esfuma, parecem dialogar com o sistema de busca de informações na internet.”
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Para o historiador e crítico de arquitetura Anthony Vidler, professor da Irwin S. Chanin School of Architecture da The Cooper Union, “a modernidade se erigiu sobre o mito da transparência”, conforme Wisnik cita em seu livro. A modernidade associa-se à transparência dos materiais de construção e à ideia de penetração espacial, segundo a qual o contínuo fluxo de ar, de luz e de movimentos físicos através dos edifícios garante a indivisibilidade do espaço contínuo. “(…) com fachadas de vidro e pisos térreos desbloqueados, graças à presença dos pilotis, os edifícios modernos não são mais barreiras no espaço. E sua substância fundamental é o ar”.
Dentro do Nevoeiro é o resultado da tese de doutorado defendida por Wisnik, em 2012, na FAU. Entre a defesa e a publicação do livro, passaram-se seis anos, e o autor sentiu a necessidade de reescrevê-la. “Depois de 2013, o mundo mudou muito, e no Brasil, em especial”, afirma, acrescentando que isso impactou diretamente na obra, que tem como tema central a relação entre arquitetura, arte e tecnologia contemporâneos. Rastros dessa atualidade aparecem nos comentários sobre as novas tecnologias – como as nuvens por onde circulam e são armazenadas as informações digitais – e as perspectivas econômicas – a chamada nuvem de capital financeiro –, traçando uma reflexão sobre o estado de incerteza do mundo atual.
Metáfora da vida
A imagem do nevoeiro surge como um elemento crucial na arte e na arquitetura – das obras de Olafur Eliasson (como The weather project, Tate Modern, Londres, 2003) e dos tornados perseguidos por Francis Alÿs às arquiteturas efêmeras e performáticas, como o Blur building, de Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, feito para a Expo 2002 na Suíça. “Ao pensar essa relação, fui encontrando trabalhos que lidam com a questão da névoa, da nebulosidade, do fora de foco, da imagem pouco definida, e isso passou a ser uma grande metáfora do mundo contemporâneo, em que tudo é nebuloso e a clareza sobre os processos históricos e a política foi perdida”, compara Wisnik.
Por outro lado, ao tomar o nevoeiro como metáfora, o autor mostra que os nós centrais do mundo atual estão ligados a aspectos catastróficos. “Os grandes marcos de inauguração das novas eras no mundo contemporâneo foram marcos de destruição, de catástrofes que levantam fumaças”, lembra. O mais evidente, como conta Wisnik, é o ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, que estampa a capa do livro, mas essa genealogia começa antes. Precisamente, em 1972, com a demolição do conjunto habitacional de Pruitt-Igoe, em Saint-Louis, nos Estados Unidos. “Era um conjunto habitacional moderno e enorme, que foi implodido com transmissão ao vivo pela televisão e é considerado um marco do pós-modernismo”, relata.
Segundo Wisnik, a demolição representou a morte do movimento moderno e também inaugurou uma sequência de fatos trágicos: essa implosão, em 1972, a queda do muro de Berlim, em 1989, e o 11 de setembro, em 2001. “E isso se junta aos tsunamis, furacões e erupções de vulcão, fenômenos cada vez mais presentes no mundo atual, e que estão ligados ao trágico no mundo contemporâneo, seja pelo terrorismo, seja pelos eventos da natureza”, completa.
Para o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, que assina a orelha do livro, “Guilherme Wisnik mapeia o concomitante ocaso da razão iluminista, com todo o seu cortejo de atributos solares. Como na pintura clássica chinesa, o clima muda: tudo se torna nebuloso, ambíguo, fragmentário, alusivo, translúcido, espectral, implícito mas poderoso, tal o espírito que habita as paisagens de Shitao. Vai se impondo uma sensibilidade mais secreta, misteriosa, mais permeável às transformações e ao tempo, mais reticente com as supostas estabilidades e afirmações peremptórias. Uma arte e uma arquitetura mais abstratas, sutis, menos voltadas para o narcisismo e o culto da imagem, mais permeáveis à impermanência — força e não forma. Arquitetura como atmosfera”.
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Lúcio Costa, Lina Bo Bardi e Mendes da Rocha
Além da obra de Wisnik, as livrarias recebem no início deste ano três outros lançamentos de arquitetura. Um dos destaques é a obra-testamento de Lúcio Costa (1902-1998), que está de volta depois de 20 anos. Registro de uma Vivência (Editora 34/Edições Sesc), começou a ser escrita quando o arquiteto já estava com 93 anos (ou seja, três anos antes de falecer) e teve uma vida curta, chegando somente à sua segunda edição.
Para esta terceira edição, sua filha e também arquiteta Maria Elisa Costa assina dois textos introdutórios, enquanto a historiadora e crítica de arquitetura Sophia da Silva Telles, assina o posfácio. No livro – um fac-símile da edição original, organizada pelo próprio Costa – estão desenhos do jovem estudante de artes ao lado de fotos de família, projetos esquecidos, perfis de outros arquitetos, recordações e cartas, além de vários textos sobre sua carreira.
Segundo Wisnik, essa é uma obra fundamental. “É um livro que Lúcio Costa organizou no final da vida e que reúne tudo o que ele fez de mais importante.” Figura seminal, como define Wisnik, Lúcio Costa é um dos pais da arquitetura moderna brasileira. “Foi ele que introduziu o Modernismo no Rio de Janeiro”, pontua o professor. Dentre os grandes feitos de sua trajetória, destacam-se sua atuação na defesa do patrimônio histórico nacional e a autoria do Plano Piloto de Brasília. Essa atuação rica e abrangente está presente nas mais de 600 páginas do livro.
Outros dois lançamentos que chegam às livrarias são as antologias de ensaios de Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha, também arquitetos modernos, acerca da paixão pela casa. Uma Ideia de Arquitetura (Annablume), organizado por Marina Grinover, resgata ensaios de Lina Bo Bardi que foram publicados em revistas italianas na década de 1940. Já Futuro Desenhado (Editora Monade), organizado por Daniela Sá, Guilherme Wisnik e João Carmo Simões, reúne artigos e entrevistas de Paulo Mendes da Rocha.
Dentro do Nevoeiro (Ubu Editora, 192 págs., R$ 54,90), de Guilherme Wisnik. Mais informações no site da editora.