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O professor Florestan Fernandes (1920-1995) – Fotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP
“O mais erudito dos cientistas sociais brasileiros”
Em Florestan Fernandes, sociologia é a "autoconsciência científica da sociedade", afirma José de Souza Martins
Por: Claudia Costa
Arte:Vinicius Vieira
26/06/2020
Considerado expoente da sociologia no Brasil, Florestan Fernandes (1920-1995) foi um intelectual de primeira grandeza que transformou o pensamento social no País e estabeleceu um novo estilo de investigação sociológica. Mas a informação de que seria o fundador da sociologia crítica no Brasil é incorreta, e quem esclarece a questão é o sociólogo José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Florestan não é considerado fundador da sociologia crítica no Brasil senão na perspectiva de uma informação viesada que vem de setores que definem sua obra, sem conhecê-la, de um ponto de vista partidário e ideológico. Florestan era um cientista rigoroso, o mais erudito dos cientistas sociais brasileiros. Grande conhecedor dos clássicos da sociologia, vários de seus trabalhos devem ser interpretados como elaboradas expressões do pensamento crítico”, afirma Martins. No próximo dia 22 de julho, completa-se o centenário de nascimento de Florestan – data que o Jornal da USP está celebrando com uma série de reportagens.
“No Brasil difundiu-se a equivocada concepção de que a sociologia crítica é a sociologia do contra, a sociologia da contestação, a ‘sociologia militante’, uma sociologia ‘de esquerda’”, explica Martins. “E atribui-se a Florestan a suposta virtude de ter feito isso com a sociologia, justamente o que a sociologia não é. Ele era um cientista, não um panfletário”, observa. No entanto, como diz o professor, há correntes na teoria sociológica, difundidas em diferentes sociedades, conhecidas como sociologia crítica. “Ainda que por diferentes caminhos, há diferentes orientações de sociologia crítica, que, no meu modo de ver, são variantes da sociologia do conhecimento. Uma sociologia que nos remete, no caso de Florestan, à obra de Karl Mannheim, que ele conhecia bem”, exemplifica.
Segundo Martins, as originais e criativas incursões de Florestan Fernandes nessa direção foram estimuladas por seu professor Roger Bastide, sucessor de Claude Lévi-Strauss na cadeira de Sociologia da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. “De certo modo, já aparecem no seu estudo sobre os grupos infantis do bairro do Bom Retiro, em São Paulo”, relata, citando As Trocinhas do Bom Retiro, que foi premiado em concurso do grêmio da faculdade. O professor conta que nessa pioneira pesquisa com crianças, “em uma cidade e em um bairro de imigrantes”, Florestan descobriu que as crianças socializavam como brasileiras seus pais e avós estrangeiros. “Uma crítica sociológica da concepção dominante de socialização, em que a criança é apenas personagem passiva da socialização, cujo agente seria o adulto. Caso em que o mundo real está invertido em relação à sociedade pressuposta na teoria”, comenta Martins.
Além disso, diz o professor, foi também Roger Bastide quem atraiu Florestan Fernandes para a pesquisa sobre o negro em São Paulo, um projeto robusto que inovou nos estudos sobre o negro e a escravidão no Brasil, sobretudo os desdobramentos da escravidão na situação do negro da sociedade pós-escravista. Martins conta que Bastide insistiu com ele para que participassem juntos de um projeto proposto pela Unesco, e acabou por convencê-lo. “A pesquisa teve inovações técnicas que nunca foram reconhecidas. A principal delas, a de ter sido um trabalho precursor da pesquisa participante, ou pesquisação. Nela o entrevistado entrevista-se. Não é agente passivo de conhecimento, mas autor de conhecimento. Nesse sentido, os estudos sobre o negro, tanto de Bastide quanto de Florestan, dela resultantes, são derivações na área da sociologia do conhecimento de senso comum”, compara Martins. E acrescenta que essa modalidade de pesquisa, com os nomes de “pesquisa participante” ou de “pesquisação”, se difundiria com muita originalidade teórica nas obras do sociólogo colombiano Orlando Fals-Borda e, no Brasil, na de Carlos Rodrigues Brandão, que fez doutorado na Faculdade de Filosofia da USP.
Segundo Martins, foi a Missão Francesa – como ficou conhecido o grupo de professores franceses integrantes dos primeiros quadros docentes da USP, nos anos 30 – que introduziu a sociologia científica. “Até então, os estudos pré-sociológicos que aqui se fazia eram ensaios sociais. Muitos de excelente nível e teoricamente bem informados. Os Sertões, de Euclides da Cunha, constitui uma obra modelar do ensaísmo social brasileiro pré-sociológico. Mas há nesses estudos, mesmo com referências bibliográficas a obras científicas, uma tendência à análise e interpretação impressionistas. Os franceses da USP ensinaram a seus alunos, especialmente de sociologia e de antropologia, que ciência depende de método científico”, afirma o professor. E acrescenta: “Florestan esmerou-se nesse cuidado. Distinguiu os métodos explicativos, expostos em Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, dos métodos técnicos. São instrumentos de momentos diferentes do trabalho sociológico, uma distinção fundamental para fazer ciência. E, sobretudo, enfatizou a importância da sociologia como ciência empírico-indutiva, bem diversa do que é próprio do dedutivismo dos ensaios sociais”. Além disso, lembra Martins, na USP a Sociologia já estava na segunda e na terceira geração de sociólogos quando começaram a ser formados sociólogos na Itália, Inglaterra, Espanha e Portugal.
Florestan era um cientista rigoroso, um grande conhecedor dos clássicos da sociologia.”
A ciência que Florestan Fernandes praticava era socialmente comprometida, engajada e militante. Nos anos 50, tornou-se conhecido pela participação na Campanha Nacional em Defesa da Escola Pública, que, segundo Martins, teve um núcleo importante na USP e envolveu professores e alunos. “Não tinha cor ideológica e era fortemente apoiada por Júlio de Mesquita Filho e seu jornal, O Estado de S. Paulo”, conta o professor, explicando que a campanha era uma reação contra o substitutivo do projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que estava em discussão na Câmara dos Deputados e favorecia as escolas privadas, católicas e laicas e minimizava a escola pública.
Martins lembra que o envolvimento de Júlio de Mesquita Filho naquela campanha tem pleno sentido: “Foi na redação de seu jornal que se formou um pequeno núcleo de intelectuais que discutiram a possibilidade de criação da USP. Mesquita foi o ‘pai’ da nossa Universidade, a alma do que esta Universidade veio a ser. Ele a concebeu na cadeia, quando foi preso por conta de seu envolvimento na Revolução Constitucionalista de 1932. Na cadeia, pediu que a esposa lhe levasse dois livros: o de Émile Durkheim, Éducation et Sociologie, e o de seu discípulo Célestin Bouglé, Les Idées Égalitaires – Étude sociologique. Saiu da cadeia com o projeto da USP na cabeça”.
Martins conta como se deu o processo. “A USP de Júlio de Mesquita Filho seria pública, laica e gratuita. Era um projeto de, através da educação, transformar esta sociedade numa sociedade democrática. Era tal sua preocupação republicana com a questão da educação nessa perspectiva que, decidida a criação da USP, foi enviado à França o professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica, para recrutar os docentes para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que formaria o núcleo central da Universidade. Na França, Ramos foi orientado por Georges Dumas, amigo de Mesquita, que conhecia o Brasil e estivera em São Paulo nos anos 1920. Dumas era protestante e Ramos levava uma recomendação de Mesquita: nada de clericais. A intenção do grupo fundador da USP era a de evitar que a USP se tornasse uma universidade pública aparelhada pela Igreja Católica. Pensava no pluralismo das ideias, essencial ao desenvolvimento de uma verdadeira universidade.”
A Campanha em Defesa da Escola Pública, de 1959, retomava as inspirações do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932, e a proposta de criação da USP, como assegura Martins. “O deputado Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, apresentara um substitutivo ao projeto da Lei de Diretrizes e Bases que equiparava escola pública e particular nas obrigações do Estado. Havia um claro propósito de favorecer as escolas católicas”, diz, reiterando que a campanha foi uma reação dos educadores contra a tentativa de quebrar o princípio da laicidade da educação. “Um grande número de educadores da USP, especialmente dos cursos de Ciências Sociais e de Pedagogia, empenhou-se numa cruzada de esclarecimentos. Além da capital, percorreram escolas e cidades do interior e de outros Estados, fazendo conferências e pondo em questão o substitutivo da Lei de Diretrizes e Bases.”
Aos poucos, Florestan foi ganhando destaque na Campanha Nacional em Defesa da Escola Pública, contabilizando mais de 50 conferências em escolas, sindicatos, lojas maçônicas e igrejas. “Em 1959 e 1960, eu estava fazendo o Curso Normal numa escola pública, o Instituto de Educação Dr. Américo Brasiliense, em Santo André. Lá esteve, para falar da campanha, o professor Fernando Henrique Cardoso, assistente de Florestan. No ano em que a campanha terminou, 1961, eu estava ingressando na USP”, relembra Martins, que algumas semanas antes da morte de Florestan, em 1995, conversou com ele sobre aquele movimento. “Além da importância do apoio do jornal O Estado de S. Paulo, os maçons foram os maiores apoiadores da campanha. Evangélicos e espíritas também a acolheram e apoiaram. O substitutivo Lacerda acabou sendo aprovado. Mas o movimento mobilizou os educadores e mesmo os estudantes acima de partidos, classes sociais, religiões. Foi um grande movimento democrático em favor da educação e da escola pública, que não voltaria a se repetir.”
Boa parte da obra de Florestan é dedicada à educação e na Faculdade de Filosofia ele sempre se bateu pela importância da sociologia da educação no curriculum de Ciências Sociais.”
Florestan Fernandes deixou uma extensa obra com mais de 50 títulos, que segundo Martins cobre um vasto campo de temas e de problemas sociológicos. O professor destaca algumas, que recomenda como imprescindíveis: Mudanças Sociais no Brasil, A Sociologia numa Era de Revolução Social, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, A Integração do Negro na Sociedade de Classes e Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica. “São livros em que Florestan expõe o fundamental de sua sociologia diversificada e desafiadora. São livros que ensinam o que essa sociologia é, como ‘autoconsciência científica da sociedade’, uma definição de Hans Freyer que Florestan adotava”, afirma Martins.
“Boa parte da obra de Florestan é dedicada à educação e na Faculdade de Filosofia ele sempre se bateu pela importância da sociologia da educação no curriculum de Ciências Sociais. Dois de seus ex-alunos, que se tornaram seus assistentes, foram preparados para ministrar essa disciplina: Marialice Mencarini Foracchi e Luiz Pereira. Foi uma forma clara de reconhecimento de que cursos como o de Ciências Sociais tinham como propósito fundamental a formação de educadores”, conclui.
O texto acima, “Florestan Sociólogo”, é o segundo da série de reportagens Florestan 100 Anos, produzida pelo Jornal da USP em comemoração ao centenário de nascimento do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995), a ser completado no dia 22 de julho de 2020.
O próximo texto da série, “Florestan Militante”, será publicado no dia 3 de julho, sexta-feira.
O mestre de várias gerações de sociólogos
Leia a seguir uma carta do sociólogo José de Souza Martins enviada em 1994 ao professor Florestan Fernandes:
“Cambridge, 21 de junho de 1994
Estimado professor Florestan,
Desde o meu concurso de livre-docência desejava fazer-lhe uma visita para agradecer-lhe a delicadeza de gesto do seu comparecimento à arguição final. Só não o fiz por temer roubar-lhe as horas de sua permanência em S. Paulo e de sua convivência com filhos e netos. A afobação dos preparos da minha vinda para Cambridge também prejudicou essa intenção.
Faço-o, porém, agora e por carta. E para juntar-me às homenagens que lhe estão sendo prestadas, pelo término de seu honrado mandato parlamentar, às quais minha esposa Heloisa comparece também em meu nome.
Escrevo-lhe de Cambridge para dar a esta carta a dimensão simbólica que ela deve ter. Sou o terceiro brasileiro, em 25 anos de existência da cátedra Simón Bolivar, a ser eleito seu titular, antecedido por Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. Sou, também, o terceiro sociólogo, depois do próprio Fernando Henrique e de Pablo González Casanova. A eleição para esta cátedra é considerada na América Latina e, sobretudo, aqui, com razão, uma grande honraria, principalmente porque ninguém a ela se candidata. É a própria Universidade de Cambridge que faz a escolha. Essa escolha é, antes de tudo, reconhecimento. Tenho dito aos colegas com quem convivo aqui que a eleição de dois titulares da cátedra procedentes do mesmo grupo, o da antiga Faculdade de Filosofia da USP, deve-se aos méritos excepcionais de uma pessoa que eles também conhecem (e reconhecem): Florestan Fernandes. Trata-se de uma honraria que o tem como destinatário, pela qualidade do seu trabalho de sociólogo, mas também pela sua história pessoal exemplar, na coerência, no compromisso e no empenho de transformar o nosso país num lugar digno para todos; libertado de todas as misérias e opressões; lugar de um povo que possa viver a poesia e as promessas da vida livre do jugo de todas as carências e do látego de todas as violências.
Creio que este é o lugar e o momento para expressar-lhe diretamente meus agradecimentos profundos pela honra de ter sido seu aluno e de ter aprendido consigo não só um modo de pensar, mas também um modo de viver. Venho da periferia, de uma família de pobres colonos de café convertidos em operários de fábricas do ABC. Eu mesmo cresci nas ruas e nas fábricas, estudei à noite desde menino, tendo que ajudar a sustentar uma família pobre. Cheguei à Universidade de São Paulo e ao curso de Ciências Sociais da Rua Maria Antonia na escuridão da noite, no cansaço de dias de fadiga, para estudar depois do trabalho e ainda voltar para o subúrbio em horas tardias e despertar de madrugada para começar tudo de novo. Tive sorte, porque me foi dado o privilégio do acesso a uma escola pública e a um grupo de professores universitários competentes e comprometidos com a ideia de uma comunidade de destino dos homens que são livros e têm esperança, venham de onde vierem.
Agradeço-lhe, ainda, o privilégio de ter sido seu auxiliar de ensino, no início de minha carreira. Aprendi muito com o professor exemplar, devotado à missão de ensinar, como nos tempos antigos era próprio dos profetas, que semeavam saber e esperança, conhecimento e dever para com o destino de todos.
Sou-lhe, também, agradecido pelas várias vezes em que sua intervenção generosa impediu que minha carreira profissional fosse interrompida pelas tempestades de uma vida acadêmica empobrecida pelo poder pessoal dos que não sabiam usá-lo com desprendimento. Pobreza, enfim, que nos privou a todos da possibilidade de reconstruir a escola de trabalho e pensamento de que o senhor foi e tem sido patrono, inspirador e alma.
Na cerimônia solene de minha admissão como professor da Universidade de Cambridge, no dia 12 de outubro do ano passado, na pequena capela, de 1350, de Trinity Hall, o meu College, diante dos fellows e scholars, solenemente vestidos com as becas e insígnias de suas distinções, como é costume aqui, ao assinar o velho livro com a caneta de prata, como é uso, diante do altar e do Master, tive consciência, como tenho tido, que o meu nome naquele livro antigo era justo tributo a quem me ensinou uma boa parte das coisas que sei e que me trouxeram a este lugar: o filho de dona Maria, o menino das ruas do Bexiga, o mestre de várias gerações de sociólogos brasileiros que se chama Florestan Fernandes.
Um abraço forte do
José de Souza Martins”
A carta acima foi publicada como apêndice no livro A Sociologia como Aventura – Memórias, de José de Souza Martins, lançado em 2013 pela Editora Contexto.