PAULO SALDIVA, diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP
Gostaria de prevenir a todos os presentes que, do que acharem positivo na minha fala, quase nada me é próprio, e sim o resultado do convívio com os pesquisadores do IEA, com seus conselheiros e ex-diretores, bem como os funcionários. Confesso que nesses diálogos, pela sua qualidade, sentia-me como se tivesse que pagar não um couvert artístico, mas sim cultural.
O foco da presente cerimônia não é o IEA e sim o todo da USP, sua missão e suas relações com a sociedade brasileira. O local da posse, cujo acesso nos foi possível pela generosidade de Ricardo Ohtake, tem um valor simbólico, por representar um ponto claro de ancoramento entre a cultura e a sociedade, valor central da Universidade de São Paulo.
O IEA foi criado pela visão do então reitor José Goldemberg e completará neste ano 30 anos de existência. Uma síntese bastante apropriada de sua missão foi feita pelo professor João Steiner, um de nossos diretores, em que coloca como finalidade do IEA realizar estudos e reuniões públicas sobre questões fundamentais e palpitantes da ciência e da cultura, bem como estar atento aos desafios estratégicos com que a sociedade brasileira se defronta, oferecendo a ela subsídios, alternativas e formulações que contribuam para a elaboração de políticas públicas.
Esta definição alinha-se perfeitamente ao espírito e missão definidos pelos fundadores da USP no momento de sua criação. Sendo mais sintético, a USP e, por consequência, o IEA têm por missão fundamental produzir a melhor ciência, formar os melhores recursos humanos e propiciar o debate de ideias visando ao progresso do País.
O primeiro IEA ligado a uma universidade foi o de Princeton, fundado em 1930 a partir de uma doação de 5 milhões de dólares por dois benfeitores – Louis Bamberger e Felix Fields. Foi dirigido durante uma década por um educador chamado Abraham Flexner, mais conhecido pelo famoso Relatório Flexner, que mudou as bases do ensino médico norte-americano e mundial no início do século 20.
Flexner foi escolhido, no meu entender, por duas qualidades. A primeira delas foi a compreensão da missão de um IEA, devido ao seu perfil de educador, como exemplificado pela sua frase: “Estou plenamente ciente de que criei o esboço de uma utopia educacional”. A segunda qualidade foi a sua capacidade de manter-se fiel à utopia, sem descuidar de pintá-la com tinturas de realidade e trabalhar para a sua materialização.
Soube Flexner, como ninguém, dirigir e harmonizar os membros do IEA de Princeton, que contava com vários prêmios Nobel (Albert Einstein era um deles) e recipientes da Medalha Fields, bem como renomados humanistas. Em suma, como verdadeiro professor, soube conviver com formar novas pessoas, melhores e mais capazes do que ele.
Os IEAs proliferaram no mundo, estando congregados em uma rede internacional com mais de 30 membros, em diferentes latitudes, longitudes e culturas. Cada um possui a sua identidade vocacional. Tóquio congrega, quase exclusivamente, prêmios Nobel das chamadas ciências duras. Bielefeld, na Alemanha, nasceu antes da respectiva universidade, que foi planejada a partir do seu IEA.
O da USP tem como diferencial a sua diversidade de interesses e a interação com a sociedade. Ou seja, o IEA-USP é, entre todos os componentes da Ubias, o que melhor se relaciona com a sociedade e o mais diversificado, como um cadinho a amalgamar diferentes áreas e saberes.
Voltemos ao desafio das universidades em todo o mundo, qual seja, o seu papel de produzir o melhor conhecimento possível, ser um espaço para o debate das ideias e a sua relação com a sociedade.
Há questões relacionadas ao progressivo financiamento por parte do setor produtivo, que pode limitar o desenvolvimento de temas das áreas de humanidades ou das ciências exatas e naturais que não tenham perspectiva de aplicação imediata. Há questões relacionadas com o fundamentalismo religioso ou político, o preconceito e outras doenças da alma, que podem dificultar a livre expressão de ideais e de aceitar o contraditório.
Neste cenário, o IEA, pelas suas características, pode ser um dos mecanismos para assegurar o livre pensamento da Universidade, combustível vital para o seu funcionamento. Mais especificamente, o IEA tem a possibilidade de ser uma das plataformas para estimular a produção de conhecimento da melhor qualidade através da produção de artigos e teses, como também de suas correspondentes narrativas.
A narrativa é uma forma de tornar compreensíveis a toda a sociedade a pesquisa, o ensino e a importância do que acontece na USP, em um mundo em que a ciência se torna cada vez mais ininteligível. O IEA pode também ser uma plataforma para avaliação e proposição de soluções para problemas complexos, que podem ser melhor compreendidos por meio de abordagem multidisciplinar, de estabelecimento de nexos talvez não aparentes entre saberes distintos.
O IEA pode ainda ser uma das áreas com a flexibilidade suficiente para consolidar a imagem da USP como um cais onde aportam ideias e sonhos, que, processados pela energia que emana do espírito humano, são transformados em peças concretas de conhecimento e que, a partir do mesmo cais, sejam as bases para a construção de políticas públicas.
Depois de apresentar os aspectos gerais do papel do IEA como uma das áreas de interface entre a USP e a sociedade, é oportuno apresentar alguns dos projetos previstos para os próximos quatro anos, que se somarão àqueles já em pleno curso. O IEA pretende criar quatro novos núcleos de pesquisa que, se conduzidos a bom termo, poderão transformar-se em centros de ensino e pesquisa externos a ele mesmo.
- Seminários Avançados de Formação de Lideranças Políticas
O Brasil carece de mais lideranças com credibilidade e conhecimento suficientes para o enfrentamento de questões críticas. As consequências negativas desse cenário são por demais evidentes e descrevê-las em sua inteireza foge do escopo deste documento.
Em nosso melhor entendimento, os atuais partidos políticos falham no processo de preparação de lideranças com formação e conhecimento amplo a respeito das grandes questões vitais para o desenvolvimento do Brasil.
Para abordar desafios complexos – como energia, saneamento, meio ambiente, logística, trabalho, habitação, educação, saúde e cultura (entre outros) –, é altamente desejável que os futuros líderes de nossa nação sejam expostos a todos os matizes de saberes que compõem o quadro necessário para a tomada de decisões baseadas no melhor conhecimento. Iniciativas como a Harvard Kennedy School of Government têm se mostrado exitosas, mas estão distantes das peculiaridades do Brasil e da América Latina.
Nossa proposição é que o IEA abrigue, durante o período inicial de um ano, pessoas com potencial expressivo de ocupar posições de liderança na sociedade, para um processo de semi-imersão. Serão elas expostas a toda a gama de variáveis relacionadas à gestão de questões complexas e importantes para a formulação de políticas públicas voltadas para o progresso de nossa nação, valendo-se da riqueza de saberes disponível na USP em todas as suas unidades.
Mais especificamente, as atividades dessa iniciativa seriam centradas em dois eixos. O primeiro deles é a realização de seminários e discussões quinzenais, onde serão discutidos os aspectos centrais da gestão democrática e os princípios republicanos necessários para a consecução de políticas de Estado exitosas.
O segundo eixo baseia-se no desenvolvimento de projetos mais específicos por parte dos participantes. À guisa de exemplo, tomemos o tema da mobilidade urbana, em que o(a) participante seria exposto(a) a especialistas de diferentes áreas de conhecimento pertinentes ao tema, que podem ser tão variadas como planejamento urbano, zoneamento, engenharia automotiva e ferro-metroviária, combustíveis, poluição do ar e sonora, comportamento humano, segurança pública e gestão, entre outras.
Espera-se que, após a exposição a essa ampla gama de informações, o(a) participante possa elaborar uma síntese que privilegie as concordâncias e proponha políticas que integrem as maiores virtudes dentro dos limites da factibilidade.
Os seminários serão liderados pelo professor José Álvaro Moisés, além de tutores, docentes da USP, a serem definidos a partir dos temas de interesse dos participantes.
- Estudos sobre a urbanidade e qualidade de vida
As cidades oferecem ao ser humano oportunidades e, ao mesmo tempo, podem ser causadoras de deterioração da qualidade de vida. Pode-se afirmar que as cidades constituem um ecossistema peculiar, que transforma em importantes determinantes da saúde temas como acesso aos serviços fundamentais, mobilidade, clima, matriz energética e uso e ocupação do solo.
De uma parte, as regiões metropolitanas do Estado de São Paulo podem ser consideradas como laboratórios naturais para o estudo dos problemas e soluções das megacidades. Ao mesmo tempo, a Universidade de São Paulo possui em seus quadros grupos de pesquisa com sólido conhecimento em todas as áreas que afetam a qualidade de vida no ambiente urbano.
Nesse sentido, propomos a criação de um espaço de diálogo e convergência de todos os grupos interessados na proposição de estudos científicos e pesquisas voltados para a melhoria do viver dos habitantes das regiões metropolitanas. A presente proposta está alinhada a um movimento global que busca estreitar o relacionamento entre as universidades e as cidades onde estão localizadas.
O núcleo será coordenado pelo professor Marcos Buckeridge.
- Da transformação da universidade à universidade transformadora
A universidade é instituição ou organização? Uma organização deseja perpetuar-se, mas é somente a instituição que consegue que também outros segmentos influentes da sociedade considerem que ela é vital para o conjunto social.
Ser reconhecido como instituição vai bem além de obter um posicionamento destacado nas cada vez mais numerosas classificações (rankings). Em particular, o que é a Universidade de São Paulo? A sociedade paulista e/ou brasileira considera-a vital, necessária, imprescindível? Como criar – ou aumentar – essa convicção?
Diversos modelos inovadores, como o da universidade empreendedora, vêm sendo implementados para potencializar a produção de conhecimento e a sua transposição, articulando o papel da universidade no processo de desenvolvimento econômico, social e cultural num contexto de sociedades em mudança acelerada.
O IEA tem sido locus de sucessivos e importantes estudos, eventos, propostas e publicações acerca da evolução e perspectivas da universidade em geral e da USP em particular. Nossa proposta tem dois focos complementares.
O primeiro é tornar o instituto um centro de referência, talvez em formato de observatório, consolidando iniciativas voltadas ao entendimento profundo dos processos e perspectivas de transformação da Universidade que prosperam no próprio IEA ou em outros espaços da USP, como o da “Universidade em Movimento”, retratado na Revista USP nº 105. Esse centro naturalmente se conectará com grupos, entidades e redes, no Brasil e no exterior, que esposam objetivos convergentes.
O segundo foco é incubar iniciativas inovadoras de atuação da USP como universidade transformadora da sociedade. Um exemplo é tornar o IEA um canal de conexão da USP com as casas legislativas (Assembleia Legislativa do Estado, Congresso Nacional e Câmaras de Vereadores dos municípios em que há campi), em harmonia com ações de articulação naturalmente exercidas pela Reitoria.
O objetivo da ação específica do IEA é contribuir para a qualificação da legislação sobre temas capitais, como saúde e educação, geração de trabalho e renda, saneamento e meio ambiente, energia e transportes, segurança pública e segurança alimentar, sustentabilidade e emancipação social, mediante internalização do conhecimento acadêmico abundante na USP, adequadamente transposto.
Parceiros potenciais na Câmara dos Deputados são o Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica ou o Centro de Estudos e Debates Estratégicos, enquanto na Assembleia Legislativa o ponto focal pode ser o Instituto do Legislativo Paulista. Ainda que essa seja uma atividade naturalmente distribuída na USP, de acordo com as competências específicas necessárias, necessitará o IEA sediar o centro animador e coordenador dessa iniciativa.
- Núcleo de estudo sobre novas metodologias de aprendizado voltadas ao ensino fundamental e médio
Talvez o maior desafio a ser enfrentado pelo Brasil seja aumentar a eficiência do aprendizado dos nossos jovens. Embora os indicadores de performance educacional venham apresentando melhoras nos últimos anos, esta melhora ainda é lenta e desigualmente distribuída no País.
Recursos digitais têm sido propostos como importantes para o aceleramento e maior eficiência do processo de aprendizado. O Portal do Professor do MEC possui milhares de conteúdos digitais de apoio ao aprendizado.
Em discussões com vários especialistas da área, aparentemente esse conteúdo não é plenamente eficaz, provavelmente pela natureza da sua concepção. Assim como um e-book continua sendo um livro, aulas e conteúdos expositivos, embora repaginados por mídias eletrônicas, continuam sendo conteúdos expositivos e pouco interativos e desafiadores para os estudantes dos dias de hoje.
Todos os que atuam como professores, nos diferentes níveis de ensino, notam que o processo de aprendizado dos dias de hoje é regido por novas vias de processamento mental, muito provavelmente gerado pela exposição precoce às mídias digitais. É como se o processo de transmissão do conhecimento, inicialmente baseado na oralidade, seguido pela leitura, tivesse sido dominado por algo que poderia ser definido por cibercidade.
Em outras palavras, é como se a escola, concebida segundo o regramento do século 19 e contando com professores do século 20, tivesse que se adaptar a um aluno do século 21. Em face deste cenário, há diversas tentativas internacionais e locais que buscam aproveitar-se da linguagem digital para facilitar o processo de aprendizado dos jovens na atualidade.
Games educacionais, aulas interativas poderiam ser técnicas que trariam o estudante para a realidade a que estão habituados. Mal comparando, seria possível tentar reproduzir o que foi a Funbec [Fundação Brasileira para o Desenvolvimento de Ensino de Ciências, que teve sua origem na Universidade de São Paulo em 1967 e encerrou suas atividades em 1988] do passado para um aparelho multifuncional, criando espaços virtuais para o letramento, o desenvolvimento do raciocínio lógico e para recuperar o encantamento pela ciência.
A tarefa em si não é trivial por demandar a convergência de vários atores, incluídos educadores, professores, cientistas, alunos, game designers, entre outros. O IEA propõe criar o ambiente para o diálogo entre as áreas acima citadas e explorar a possibilidade de criar algo à semelhança do que foi a Funbec, como já mencionado, desta vez estabelecida no ciberespaço. Este núcleo será coodenado pelo professor Hamilton Varela.
Definidas as iniciativas de continuidade e de novas propostas, a tarefa passa a ser transformar intenções em ações concretas, visto que boas intenções não podem ser implementadas com base em improvisos. Que tenhamos a capacidade e competência para levar a bom cabo as intenções e propostas.