Kucinski lança romance para intervir na “realidade inexplicável”

Em novo livro, professor da USP narra um Brasil governado através de decretos e com ódio ao pensamento crítico

 15/07/2019 - Publicado há 5 anos
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O livro A Nova Ordem, do professor da USP Bernardo Kucinski: referências à atualidade brasileira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Brasil, ano de 2019. Uma Nova Ordem é quem governa o País de cores verde e amarelo. Suas medidas são tomadas através de “éditos”, vindas do alto comando para controlar a sociedade. O Ministério do Trabalho e todas as secretarias não existem, nem Justiça para investigar infrações trabalhistas nem associações como sindicatos. Para se aposentar no regime de capitalização, a idade mínima é de 80 anos — o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) foi extinto. Ele e vários outros institutos e autarquias. O que restava de estatais foi privatizado. Como política econômica, uma das medidas é que todo brasileiro maior de 18 anos tem a obrigação de abrir uma conta bancária e contrair um empréstimo automaticamente. As emissoras de televisão só veiculam programas que vão de acordo com os valores da Nova Ordem e da família. Também há restrições nas mídias digitais, como Whatsapp e Twitter. O Estatuto do Desarmamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente são declarados caducos. A Polícia tem licença legal para matar. Merendas escolares são rações humanas feitas com o que sobra da produção agrícola. As universidades federais, os institutos de pesquisa e bolsas de estudo não existem mais. Tudo isso é uma ficção criada pelo professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Bernardo Kucinski.

O professor lançou no dia 18 de junho o livro A Nova Ordem, pela Editora Alameda, em evento realizado no Centro Universitário Maria Antonia da USP, em São Paulo. “Diferentemente do que escrevi na maior parte das minhas ficções, esta tem uma intenção: de intervir. É como se fosse um protesto. Continuo achando que a realidade é inexplicável. É um momento de loucura”, afirma.

Kucinski já havia publicado Jornalistas  e Revolucionários, sua tese de doutorado, e Jornalismo Econômico, que recebeu o Prêmio Jabuti em 1997. No ramo da ficção, publicou K – Relatos de Uma Busca, a coletânea de contos Você Vai Voltar para Mim e o romance Pretérito Imperfeito.

Segundo o professor, a distopia da vez traz diversos episódios que dialogam com a atualidade brasileira. Kucinski já tinha partes e contos escritos anteriormente, que agora foram unidos e completados. “Essas partes ficaram inacabadas na época. Achei que dava para reunir esses pedaços numa novela que fizesse referência ao momento que nós estamos vivendo.”

A trama começa com a prisão de pesquisadores e professores na secreta Operação CátedraAlém dela, outras missões militares são colocadas em prática para combater e aniquilar os membros do movimento utopístico: os detentores de pensamento crítico, considerados inimigos da pátria. Uma delas é para capturar padres que estão envolvidos com aquele movimento. A Nova Ordem também planeja um “saneamento demográfico”. Na sua economia gerada pela agropecuária — que já conquistou espaços na Amazônia —, 200 milhões de pessoas são um exagero para o mercado interno. Apenas 30 milhões são o ideal.

Kucinski: “Eu imaginava uma maldade e, no dia seguinte, o governo anunciava uma coisa muito parecida” – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O capitão e médico Ariovaldo é quem coordena as pesquisas científicas da Nova Ordem. Ele desenvolve programas para arrancar informações dos utopistas, além de trabalhar para condicionar o pensamento das pessoas. Com isso, vai conquistando patentes militares e ganhando projeção nacional e internacional por seus feitos.  Em certo momento, a ambição é capturar os sonhos, algo raro nos novos tempos brasileiros. Ele é casado com Marilda, que na infância tinha 11 irmãos. Hoje, ela não tem contato com nenhum deles, apenas vagas lembranças.

“Essa parte da trama em que as pessoas não conseguem mais sonhar é uma coisa que me ocorreu na hora em que estava terminando de escrever. Por exemplo, quando Ariovaldo implanta o chip de customização nas pessoas.”

Dentro desse cenário desolador, talvez a única raspa de esperança venha em passos cambaleantes e cheirando a álcool. Angelino é um ex-engenheiro que virou catador de rua, por conta do fechamento de várias indústrias. Leva uma vida que se divide em horas de sobriedade e horas tomado pela bebida. “Ele representa um pouco a consciência social. Representa a humanidade. Aí que está o paradoxo: é um catador de rua, tem períodos longos em que fica embriagado, mas quando está lúcido é a consciência social. É o sujeito que reflete, pensa, lê. E, no final, ele está fazendo justiça.”

Perda de memória 

Além da história principal, há no livro um segundo plano, que é criado nas notas de rodapé. Nelas, os éditos são colocados na íntegra, com textos explicando suas medidas e até onde as regulamentações impostas pela Nova Ordem podem chegar. Elas oferecem uma possível explicação dos motivos que levaram o País para o cenário vivido pelas personagens. “Essa parte não existia. Eu fui escrevendo muito inspirado nas propostas que o atual governo ia fazendo”, explica Kucinski. “Era muito interessante porque eu imaginava uma maldade e, no dia seguinte, o governo anunciava uma coisa muito parecida.”

Para a criação dos éditos que desmontam o Estado democrático de direito, Kucinski reuniu as ações públicas asseguradas no País. “À medida que fui escrevendo os éditos, fui percebendo com mais concretude a quantidade de políticas públicas que existem no Brasil e que este governo vai desmantelar. Um exemplo é quando, no livro, ocorre a extinção do Ministério do Trabalho. E ele realmente foi extinto.”

O autor também se utiliza de fatos passados para compor a narrativa do presente fictício. Em certa altura, o sargento Messias é designado para prender padres subversivos. Mas nem tudo sai conforme o ordenado. “Isso me remete a um episódio da época da ditadura. Eu e mais um colega jornalista, o Italo Tronca, escrevemos um livro denunciando as torturas no Brasil e o levamos clandestinamente para o exterior. E foi publicado lá.”

Kucinski conta que, para a construção do personagem do major Humberto, pesquisou as declarações de oficiais nazistas durante o Tribunal de Nuremberg, criado para julgar crimes cometidos pelo alto escalão do regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial. “As reflexões do Humberto quase que reproduzem ao pé da letra as auto-explicações que os oficiais nazistas davam para si mesmos. Eles diziam que obedeciam ordens, que as coisas foram indo aos poucos, não se deram conta…”

Em seu novo livro, Kucinski também chama a atenção para a perda de memória da sociedade. “Para a minha geração, é muito chocante. Nós lutamos contra a ditadura, estávamos na USP quando dezenas de professores da mais alta qualidade foram presos, expulsos, tiveram que ir para o exterior. É como se tudo isso tivesse sido esquecido pela população. É impressionante.”

Responsabilidade da imprensa

Para Kucinski, o livro A Nova Ordem é resultado de um processo criativo sem pretensões de explicar o presente, que, entretanto, tem o objetivo de “sacudir um pouco” a sociedade. “Não é a literatura que vai explicar isso. Nem os sociólogos. Talvez daqui a décadas a gente consiga explicar. Mas é um momento muito pesado. A cada dia, quando acordamos de manhã e vemos o noticiário, ficamos estupefatos. Como é que um grupo de tão baixa qualificação assumiu o comando do País?”

Segundo o professor, a mídia brasileira tem responsabilidade no processo que conduziu o País ao momento atual. “A mídia é mais que um partido político. É o think tank da burguesia brasileira, que indica o que ela deve fazer. Temos uma burguesia muito débil do ponto de vista ideológico, sem grandes pensadores. A mentalidade de subserviência é tão grande que ela já nem tem opinião própria. Então a grande imprensa vem e diz a ela o que tem que fazer”, destaca Kucinski, citando como exemplo a pauta da reforma da Previdência. “A grande imprensa martela todo dia que tem que fazer essa reforma, senão o mundo acaba.”

Kucinski aponta uma deficiência no País – a falta de uma imprensa ligada aos interesses populares. “A imprensa foi coadjuvante no processo da Lava-Jato. Hoje sabemos, pelas revelações do Intercept, como eles (os procuradores da Lava-Jato) agiam com a imprensa. O próprio ministro Sérgio Moro e a equipe da Lava-Jato não negam que tinham como modelo operacional trabalhar muito com a imprensa, para ter a opinião pública a seu favor. A imprensa fez o papel dela. Ela reflete os interesses dominantes da elite. A pergunta é: por que não temos uma outra imprensa? Por que o campo popular não tem uma imprensa forte?”

Kucinski teve forte atuação no jornalismo alternativo da década de 1970 e foi um dos precursores do jornalismo econômico – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Jornalismo no passado

Com décadas de carreira no jornalismo, Bernardo Kucinski afirma ter migrado para a literatura, um ofício que considera muito mais prazeroso. “A criação literária não tem deadline, não tem hora, ela não tem assunto. Também pode ser mais dolorosa quando não consegue avançar. O jornalista vai lá e fecha (a matéria) de qualquer maneira e pronto. É outro universo.”

Kucinski estudava no Instituto de Física da USP quando ocorreu o golpe militar de 1964. Ele trabalhou em Veja, BBC de Londres, Opinião, Gazeta Mercantil The Guardian, entre outros veículos de informação. Teve intensa participação à frente de jornais alternativos de resistência ao regime militar, na década de 70, como Movimento e Em Tempo. Em sua tese de livre-docência, fez uma análise da circulação desses veículos de 1964 a 1980. Atuou como professor de Jornalismo na ECA entre os anos 80 e 2000. Em 2002, Kucinski trabalhou na Assessoria Especial da Presidência da República. Em 2018, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog.

Quando saiu da Assessoria Especial da Presidência e retornou à Universidade, veio a aposentadoria compulsória. Ele conta que naquele momento ficou “um vazio” e a ficção ocupou esse espaço. Entre os recursos propiciados pela escrita literária, Kucinski aponta um que possivelmente foi utilizado em A Nova Ordem: “Às vezes, a literatura se alimenta de sensações das quais nem o autor tem muita percepção na hora”, afirma.

Aos 82 anos, Kucinski deixa bem claro seu movimento em direção à literatura: “A minha vida de jornalista é o passado. Agora eu sou escritor.”

A Nova Ordem, de Bernardo Kucinski, Editora Alameda, 180 páginas, R$ 46,00


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