Quadro de Pedro Américo "Independência ou Morte" - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Identidade nacional e a simbologia de uma data

O 7 de setembro na história, no imaginário popular e na forma de construção de uma ideia de nação

 02/09/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 09/09/2022 às 11:44

Texto: Marcello Rollemberg

Arte: Guilherme Castro

Preste atenção na cena, mais do que conhecida por qualquer brasileiro, da famosa obra de Pedro Américo – o quadro Independência ou Morte, exposto no Museu Paulista da USP, que está às vésperas de reabrir suas portas. A cena é icônica: Dom Pedro em roupa de gala, montado em um belo cavalo marrom, cercado por dragões da Independência vestindo uniformes imaculadamente brancos. O futuro imperador está com sua espada levantada, em gesto de bravura e coragem: os laços com Portugal acabavam de ser cortados.

No entanto, a cena, que faz parte da mitologia particular da história brasileira, não coaduna em nada com a realidade – como também muitos devem saber. Aquele 7 de setembro de 1822, às margens do riacho do Ipiranga e nos arrabaldes da pequena São Paulo, habitada por cerca de 7 mil almas, flagrou Dom Pedro vestido com uma roupa que mais lembrava um tropeiro do que um príncipe e cavalgando uma mula – roupa e animal muito mais apropriados para subir a inóspita e íngreme Serra do Mar. Além do mais, dado pouco heroico mas demasiado humano, o então príncipe fez a viagem da volta de Santos – onde havia ido visitar sua marquesa – lutando contra problemas gástricos dos mais severos. E, claro, não havia exatamente nem dragões e muito menos independência naquele momento: a guarda de Dom Pedro foi arrebanhada ao longo dos 630 quilômetros do trajeto original – do Rio de Janeiro para São Paulo – e não havia nenhuma gala nisso.

Mas, já se disse inúmeras vezes, se a ficção é mais interessante do que a realidade, publique-se a ficção. E o quadro icônico de Pedro Américo – só terminado em 1888, quando a República já estava nos calcanhares de D. Pedro II – se tornou a realidade idealizada de uma história brasileira que precisava de heróis, datas e ícones, com o 7 de setembro ajudando a forjar uma espécie de identidade nacional, de reconhecimento e pertencimento. E, como atestam muitos estudiosos, a colocar São Paulo no centro dos acontecimentos.

“Um processo de ruptura carece sempre de um ato simbólico; um ato para ser lembrado. O mais inusitado, porém, é que, no caso da Independência, ele ficaria guardado na memória nacional sobretudo em função de uma tela”, escreve Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP no dossiê Bicentenário da Independência: Cultura e Sociedade da Revista USP, recentemente publicado (leia aqui).  

O dossiê faz parte de uma tetratologia especial da revista em homenagem à efeméride. Mas continua Lilia, falando da “cristalização dessa imagem”: “A fabricação do 7 de setembro como gesto inaugural do Brasil independente foi uma operação construída a partir de circunstâncias que faziam de São Paulo o centro nevrálgico da política nacional em finais do século 19 e inícios do 20”, afirma ela, lembrando em seu artigo a ocultação de uma série de eventos anteriores que compõe o processo de Independência, assim como eventos posteriores ao “grito do Ipiranga”, com luta armada travada no Maranhão, na Bahia e no Piauí, por exemplo. “Pode-se aferir que o 7 de setembro de 1822, com as lutas de independência na Bahia no mesmo ano, é o ponto de partida, e não de chegada, desse longo caminho que culmina na separação política entre Brasil e Portugal. Na verdade, com a tela de Pedro Américo, consuma-se uma espécie de ‘sequestro da Independência’”.

Lilia Schwarcz - Foto: Leonor Calasans / IEA/ USP

A professora Lilia Schwarcz - Foto: Leonor Calasans/IEA/USP

"A fabricação do 7 de setembro como gesto inaugural do Brasil independente foi uma operação construída a partir de circunstâncias que faziam de São Paulo o centro nevrálgico da política nacional em finais do século 19 e inícios do 20."

Independência como símbolo

Na verdade, o 7 de setembro teve o condão de forjar uma unidade para a nação que estava se criando, mesmo que a data não fosse imediatamente adotada. Em um primeiro momento, por exemplo, a data a ser comemorada era o 12 de outubro, dia da aclamação de Dom Pedro como imperador.  E mesmo depois de sua adição ao calendário, outras datas passaram a rivalizar com ela Brasil afora: na Bahia, por exemplo, uma data tão forte quanto a do 7 de setembro é o 2 de julho – afinal, foi nesse dia, em 1823, que os baianos expulsaram definitivamente os portugueses de suas terras. E as comemorações na Bahia incluem elementos populares e da cultura afro-brasileira que não se encontram no 7 de setembro, por exemplo.

What’s in a name?”, perguntou há cinco séculos o bardo de Stratford-upon-Avon. O que há em uma data?, pode-se perguntar agora. No caso do Dia Sete, há muita coisa em jogo, muito mais do que um simples dia marcado no calendário pode sugerir. Mais do que uma data na folhinha, o 7 de setembro é um símbolo.

“Durante o século 19 e ao longo do século 20, a data de 7 de setembro de 1822 foi mobilizada politicamente, por diferentes grupos e partidos, para construir consensos sociais e culturais que criassem laços de cunho nacional e identitário entre segmentos sociais e raciais desiguais e que se relacionavam por hierarquias e formas múltiplas de dominação”, responde e explica a professora e ex-diretora do Museu Paulista da USP Cecília Helena de Salles Oliveira. “Nas últimas décadas, em razão dos processos de globalização e descolonização, esses consensos se desfizeram simultaneamente ao esgarçamento da memória que sustentava uma narrativa linear, continuísta e pacífica para a história do Brasil. Nesse contexto, o 7 de setembro perdeu forças e muitas datas regionais relacionadas à Independência, a exemplo do 2 de julho, ganharam projeção, a despeito de jamais integrarem o calendário oficial de comemorações”, afirma ela, que acaba de publicar Ideias em Confronto – Embates pelo Poder na Independência do Brasil (1808-1825), pela Editora Todavia, e é co-organizadora do também recém-lançado Dicionário da Independência do Brasil (Edusp).

“O 7 de setembro é um elemento importante da memória nacional. Ela não é uma data tão importante do ponto de vista da história da Independência, mas sim das construções posteriores que foram feitas a partir da Independência do Brasil. Ela foi sendo criada como uma data da memória muito mais do que da história, porque hoje sabemos que o 7 de setembro não foi decisivo para a Independência brasileira, justamente para criar um sentimento de pertencimento. E é por isso que ela é importante”, explica o professor do Departamento de História da FFLCH João Paulo Garrido Pimenta, que compartilha a organização do Dicionário da Independência com a professora Cecília Helena. “E a memória tem seus próprios critérios. A memória olha para o passado não para entendê-lo ou respeitá-lo, mas sim para aplicar ao passado seus critérios de presente. Assim sendo, virou uma festividade nacional e foi sendo reforçada, principalmente no começo do século 20, com o crescimento político e econômico de São Paulo. Porque, afinal de contas, esse grito de independência – que hoje nós nem temos certeza que ocorreu de fato – teria sido em São Paulo. Então, foi uma versão paulista da Independência que acabou por triunfar com o 7 de setembro de 1822”, afirma Pimenta, lembrando, como fez Lilia Schwarcz, uma gênese paulista da memória independentista brasileira.

Cecília Helena de Salles Oliveira - Foto: PPGHS/USP

A professora Cecília Helena de Salles Oliveira - Foto: PPGHS/USP

"Nas últimas décadas, em razão dos processos de globalização e descolonização, esses consensos se desfizeram simultaneamente ao esgarçamento da memória que sustentava uma narrativa linear, continuísta e pacífica para a História do Brasil. Nesse contexto, o 7 de setembro perdeu forças e muitas datas regionais relacionadas à Independência, a exemplo do 2 de julho, ganharam projeção."

João Paulo Garrido Pimenta - Foto: IEA/USP

O professor João Paulo Garrido Pimenta - Foto: IEA/USP

Data instrumentalizada?

Com todo esse peso simbólico que o dia 7 de setembro carrega, é interessante saber que a data só foi de fato oficializada no século 20 – e por governos conservadores ou mais nitidamente autoritários. Se não, vejamos: ele virou “Dia da Pátria” com um decreto de 20 de novembro de 1934, nos primeiros anos do governo de Getúlio Vargas. Virou feriado nacional pela Lei Federal 662, de 7 de abril de 1949, na presidência do marechal Eurico Gaspar Dutra. E uma outra lei federal, essa de novembro de 1969 – durante a ditadura militar –, estabeleceu o protocolo para as comemorações do Dia da Independência. O 7 de setembro foi instrumentalizado, afinal?

“Sem dúvida. A questão, entretanto, é mais complicada porque o 7 de setembro, como marco do tempo e da história da nação, está alicerçado em narrativas históricas erguidas no momento mesmo das lutas políticas da Independência. Nessas narrativas prevaleceu a interpretação dos grupos mais beneficiados pelo governo de D. João e pela separação de Portugal – decisão que não era consensualmente aceita. Historiadores e gerações de políticos que construíram o Império transformaram essas narrativas em evidências factuais, desqualificando oposições e apagando outros projetos políticos, o que contribuiu para que se consolidasse um enredo em torno da Independência, de cunho conservador, que foi retomado pelos organizadores da República”, explica a professora Cecília Helena, do Museu Paulista. “Somente nas décadas mais recentes essa memória vem sendo amplamente questionada. A ditadura militar, em 1972, com as comemorações em torno dos restos mortais de D. Pedro, só fez fortalecer essa narrativa, hoje em dia replicada e simplificada pelas redes sociais. Narrativa conservadora e autoritária porque faz supor que a sociedade brasileira necessite do protagonismo de lideranças ou indivíduos para se organizar e ser administrada, dissimulando-se a capacidade da sociedade em se autogovernar e decidir sobre seu destino e conflitos”, afirma ela.

O coração de Dom Pedro fica conservado num mosteiro da cidade do Porto, em Portugal - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“As datas de um calendário cívico são criadas por governos e também por grupos sociais, a partir de uma série de fatores. Isso é normal. Os governos autoritários do Brasil sempre utilizaram muito o calendário cívico para promover seus regimes, suas pautas de governo, suas concepções de país”, acrescenta João Paulo Pimenta, da FFLCH.

Nesse quesito de utilização do 7 de setembro para autopromoção, o governo do general Emílio Médici soube se aproveitar do Sesquicentenário da Independência, em 1972. Além de receber os restos mortais de Dom Pedro I – como lembrou há pouco a professora Cecília Helena –, também se ocupou de reforçar o imaginário popular. E o filme Independência ou Morte, de Carlos Coimbra, cumpriu à risca essa missão. Além de emular com requintes de detalhes a famosa cena do “grito” eternizada por Pedro Américo em sua tela descomunal – até um dragão da Independência olhando meio de esguelha no quadro reaparece no filme –, a produção legou para a posteridade o Dom Pedro I de Tarcísio Meira. Para toda uma geração, Tarcísio era a encarnação de Dom Pedro – e o imperador tinha a cara do galã morto ano passado.

Tarcísio Meira como Dom Pedro I e Glória Menezes como a Marquesa de Santos - Foto: Reprodução

Para sorte de Pedro, vale ressaltar, já que, apesar do histórico de mulherengo e conquistador – teve 13 filhos com dona Leopoldina, com a Marquesa de Santos e com a imperatriz Maria Amélia –, ele estava longe de apresentar uma beleza, digamos, “tarcísica”. Culpa da genética pouco recomendável dos Orleans e Bragança e dos Bourbons que impregnava o sangue que corria nas veias imperiais.

A, digamos, “instrumentalização” do 7 de setembro e da imagem de Dom Pedro ganhou mais um ato há pouco mais de dez dias, quando o governo brasileiro recebeu a urna contendo o coração de Pedro I do Brasil e Pedro IV de Portugal. O órgão é guardado em um convento na cidade do Porto, onde Dom Pedro lutou suas últimas batalhas contra o irmão usurpador Dom Miguel para garantir que sua filha, dona Maria da Glória – mais tarde dona Maria II –, subisse ao trono. A vinda da urna imperial criou rebuliço em Portugal, já que muitas autoridades e especialistas eram contrários à sua vinda para o País. Mas não chegou nem perto da reação causada pelo discurso de Jair Bolsonaro ao receber a peça. Com a sagacidade de sempre, o atual mandatário aludiu, em sua fala de recepção, à importância da tríade “Deus, pátria e família”. E a declaração, sem tirar nem pôr o slogan que o governo salazarista utilizou durante as quase cinco décadas em que afundou Portugal no atraso, foi criticada e atacada aqui e além-mar. Para cientistas políticos portugueses, a utilização do slogan foi “infeliz”, “despropositada” e uma “afronta à história liberal” de Dom Pedro.

Um dia ainda importante

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Mas, apesar de processos de instrumentalização tão bicentenários quanto a própria data, o 7 de Setembro continua a ser importante – e a fazer parte do imaginário nacional –, indo muito além de ser apenas um feriado. Um caso de simbologia.

“Eu vejo o 7 de setembro, atualmente, como um bom pretexto para falarmos de história. As datas comemorativas têm esse papel. Elas podem levar as pessoas a parar e pensar na história de seu país, na história de sua sociedade, e refletir sobre o que foi, o que é e o que pode ser essa história. São momentos interessantes de reflexão”, acredita o professor João Paulo Pimenta. “Por mais que essas datas sejam comemoradas de maneiras diferentes dentro de uma sociedade, é importante que elas sejam sempre valorizadas a partir de uma perspectiva crítica e não como se elas traduzissem uma história perfeita. Os símbolos nacionais, inclusive essas datas, não são descrições perfeitas da história. São apropriações, manipulações, inserções da história”, afirma ele.

A professora Cecília Helena, do Museu Paulista, vai por um caminho semelhante. “Todas as nações selecionam uma data para demarcar seu surgimento. O 7 de setembro acabou se consolidando. No presente momento, a data e o modo como foi selecionada e sedimentada podem ancorar questionamentos sobre o passado e sobre a memória com a qual chegou até nós”, reflete. “Não se trata, porém, de substituir uma narrativa sacralizada pela política e memória pela imposição de outra qualquer. Mas de compreender a complexidade e multiplicidade racial de pessoas e grupos que atuaram na Independência. Compreender o quanto nossa história foi marcada por confrontos, conflitos armados, mortes, exclusões e extermínios. Buscar o passado com outros olhos, menos viciados pelo saber já sabido, mais abertos para sementes lançadas e derrotadas lá trás, mas que podem iluminar outras independências no presente”, conclui ela. 


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