Para o pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), política se faz com ações. É através delas que um governante pode enfrentar os infortúnios, aproveitar a sorte, conquistar ou perder o poder. Em O Príncipe, seu mais conhecido e celebrado trabalho, o autor se detém sobre o que é necessário para um soberano consolidar sua posição, sobretudo se ele é um príncipe recém-alçado ao posto. Dentre suas considerações, dois conceitos despontam como cruciais para examinar os sucessos e desastres do jogo político, a fortuna e a virtù. A primeira poderia ser entendida como sorte, acaso ou todo tipo de imponderável que escapa da ação. Já a segunda tem a ver com a habilidade no agir.
Em Maquiavel, a Democracia e o Brasil, o professor Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, recupera esses conceitos e faz o irresistível: propõe pensar a chegada e a permanência no poder de todos os presidentes do Brasil desde a redemocratização. De José Sarney a Jair Bolsonaro, passando por Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, cada pessoa que ocupou o Palácio do Planalto nos últimos 37 anos é avaliada segundo a virtù demonstrada (ou não) para enfrentar as marés da fortuna.
Antes de mais nada, é importante entender no que consiste o conceito de virtù para evitar conclusões apressadas. “Maquiavel separa a ideia de virtù da ideia de virtude moral, cristã”, explica Janine Ribeiro. “Ela está muito mais associada ao que eu chamo ação humana deliberada, consciente, conduzida por um líder para obter a vitória.” Segundo o professor, a moral na qual o escritor florentino trabalha não é cristã, mas pagã. “Desse ponto de vista, a vitória é importante, mas não qualquer vitória. E aí está o problema para entender Maquiavel hoje em dia, porque o panorama social em que se vive mudou totalmente.”
Para Maquiavel, explica Janine Ribeiro, a vitória pela virtù supõe que haja honra no que foi feito. Entretanto, o próprio conceito do que seja honra se transformou. “Para nós, honradez é sinônimo de honestidade. No tempo de Maquiavel, honra era a imagem pública de alguém. Como a honra do homem que mata a mulher que o traiu, como o duelista que enfrenta seu adversário e mostra que a honra é mais importante do que a própria vida. Esse é o sentido maquiaveliano da honra e da virtude. E, nesse sentido, não basta vencer.”
Pode parecer um pouco fora de lugar lançar mão de constatações feitas por Maquiavel – que pensava em principados quando escreveu sua obra – para abordar o contexto brasileiro contemporâneo, mas Janine Ribeiro mostra que não é bem assim. A ênfase do autor em O Príncipe recai justamente sobre a legitimidade dos principados novos – aqueles que não vieram ao colo do soberano pela hereditariedade. Considerando que nas democracias todo governante pode ser visto como um príncipe novo, precisando inclusive provar seu valor antes de chegar ao poder, durante as eleições, as ideias de Maquiavel se revelam bastante atuais.
Janine Ribeiro analisa, por exemplo, que Sarney chegou à Presidência da República graças a um golpe da fortuna, pois foi a morte de Tancredo Neves que possibilitou ao vice assumir o cargo. A fortuna também tumultuou os anos do primeiro mandatário pós-ditadura, sobretudo por conta da inflação. Contudo, no balanço do professor, se Sarney não mostrou virtù suficiente para os tempos difíceis pelos quais passou, ao menos conseguiu se manter no cargo e terminar seu mandato.
Trajetória oposta teve Fernando Collor, que demonstrou grande virtù para conquistar a Presidência, fazendo-se “o homem certo na hora certa”, mas, depois disso, não soube mantê-la. Para Janine Ribeiro, o “caçador de marajás” parece ter confundido virtù com impetuosidade. Diferentemente de Itamar Franco, outro presidente levado ao cargo pela fortuna e que soube aproveitá-la através da virtù. Desvencilhando-se da figura de Collor e combatendo a inflação graças ao Plano Real, Itamar teria demonstrado uma virtù discreta, que inclusive seria atribuída não a ele, mas a seu sucessor.
Essa atribuição seriam as “armas alheias” com as quais Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda no governo Itamar, chegaria ao poder. Para Janine Ribeiro, foi a fortuna que fez de FHC presidente – pois Itamar poderia ter escolhido qualquer outro nome de sua base política para a candidatura. Porém, se a sorte foi a maior responsável pela conquista da Presidência, em sua manutenção teve lugar uma ampla virtù, caracterizada pela habilidade de comunicação com amplos setores da sociedade e negociação com os demais atores políticos, cujos resultados, entre outros, foram a reeleição em 1998 e a conclusão do segundo mandato, mesmo com a popularidade em baixa.
“Fernando Henrique soube mostrar virtù no exercício do cargo”, diz o professor. “Soube conter os excessos daqueles que o apoiaram. Basta ver o final de Antônio Carlos Magalhães, líder político baiano que praticamente mandava no Brasil. Restringiu-se depois a seu papel regional e mesmo esse papel acabou perdendo após uma sucessão de vitórias do PT na Bahia.”
Já Lula é visto pelo professor como o único caso de virtù tanto na conquista do poder quanto em seu exercício. Se Collor apareceu como o candidato certo no momento certo, Lula teria moldado seu próprio tempo. Ao longo de duas décadas, construiu sua imagem e a de seu partido, o PT, demonstrando uma virtù processual capaz de fazer, em 2002, com que sua eleição parecesse uma necessidade histórica. Assim como FHC, soube tratar com os atores políticos e sobreviver às crises, além de se comunicar amplamente com vários setores da sociedade. Sua virtù também foi responsável por fazer sua sucessora, Dilma Rousseff.
“Lula mostrou muita virtù”, afirma Janine Ribeiro. “Ele chegou ao poder depois de ter perdido três eleições e conquistou o cargo justamente na hora em que colocou o PT diante de uma questão séria: se vocês querem que eu me eleja presidente, precisam me dar carta branca, tanto para escolher o marqueteiro quanto para escolher a propaganda política, quanto para estabelecer o programa de governo. E foi assim que, em 2002, Lula fez uma série de alianças e acordos que o permitiram não só chegar ao poder, mas exercê-lo. Durante 14 anos, o PT governou o Brasil através de quatro eleições sem nenhum vício de forma ou de conteúdo. Ele mostrou muita virtù na conquista e também no exercício do cargo porque soube enfrentar as dificuldades sem com isso ceder no projeto básico do PT, que era reduzir a desigualdade social e acabar com a fome. Nisso ele ganhou.”
Outro caso de fortuna com as armas alheias, Dilma não apresentou a virtù necessária para sobrepujar os infortúnios de seu segundo mandato. Falhou na articulação com os atores políticos e não conseguiu ao menos um terço de apoio em qualquer das casas do Congresso, o que seria suficiente para impedir o impeachment. Michel Temer, por sua vez, teria chegado à Presidência com um misto de fortuna e virtù. A primeira por conta da própria derrocada de Dilma, a segunda por sua habilidade na costura necessária para ascender ao poder. Também mostrou alguma virtù em sua sobrevivência política, apesar de não ter se saído tão bem quanto Itamar e disputar com Café Filho – vice de Getúlio Vargas, que assumiu o poder após o suicídio deste em 1954 – o troféu de traidor do titular do cargo.
Bolsonaro, por sua vez, oferece um cenário extraordinário para análise, segundo Janine Ribeiro. Com o esvaziamento das alternativas tradicionalmente democráticas, abriu-se espaço para sua vitória. A destruição mútua da antiga centro-direita e da centro-esquerda não poderia ser atribuída simplesmente à fortuna. Contudo, tampouco seria exato falar que sua eleição foi fruto da virtù. A aposta do professor é que Bolsonaro deve à fortuna sua permanência no poder, resultado mais das falhas dos outros do que de seus próprios méritos.
“Na primeira eleição que disputou, em 2018, podemos dizer que Bolsonaro venceu pela fortuna. Mas faço uma ressalva: se a história da facada foi inventada, aí foi virtù. Mas, aparentemente, não foi”, comenta Janine Ribeiro. “Os jornais investigaram e parece que não foi mesmo algo planejado por ele. Nesse caso, ele ganhou pela fortuna, pela sorte, digamos, não pela capacidade de planejar o assalto aos poderes de Estado.”
Uma avaliação que, segundo o professor, não vale imediatamente para o panorama atual. “Se Bolsonaro ganhar a eleição de 2022, será muito complicado dizer que foi só sorte, porque terá havido toda uma mobilização política que o terá levado à vitória, não importando os meios”, analisa Ribeiro. “Não importando que tenha feito a economia entrar em colapso, não importando que tenha utilizado do orçamento secreto e outras questões que não são rosas.”
O primeiro turno das eleições de 2022 não está dentro das análises de Maquiavel, a Democracia e o Brasil, mas pode também ser pensado sob a ótica da fortuna e da virtù. Nessa perspectiva, Janine Ribeiro vê ações erradas da parte de Lula e, mais uma vez, certa problemática em classificar o comportamento de Bolsonaro.
“O que vemos como resultado do primeiro turno, e falando apenas disso, é que o PT acreditou demais na vitória. O PT e o Lula fizeram uma série de movimentos de quem acredita que vai ganhar as eleições e, por isso, não precisa ceder muito. Houve declarações do próprio Lula, por exemplo, que eu considero equivocadas, como a comparação da Constituição brasileira com o Manifesto do Partido Comunista. Ele sabe que muitas pessoas no Brasil têm uma visão contrária ao comunismo e até acreditam que ele ainda exista, mesmo que, como forma de governo, não seja encontrado em nenhum país. China, Vietnã e mais ainda a Rússia são países capitalistas, e mesmo os países que se dizem comunistas cederam na maior parte dos valores”, analisa o professor.
“Ao mesmo tempo”, continua Janine Ribeiro, “Bolsonaro fez uso de todos os expedientes para conseguir votos, desviando dinheiro seja para o orçamento secreto, seja para o que em outra época seria chamado compra de votos. Contudo, não sei se é possível falar em virtù, porque muito disso foi escorado pelos apoios políticos ou pela inércia das instituições. O Congresso não devolveu medidas provisórias totalmente inconstitucionais, como a 1.135 e a 1.136, uma que sabotou a cultura e outra que sabotou a ciência. O Supremo Tribunal Federal não julgou inúmeros casos sobre Bolsonaro, inclusive o pedido para que se verificasse sua incapacidade cognitiva e emocional de exercer o cargo. Em suma, ele foi favorecido por uma série de atores externos e, dessa forma, não se pode dizer que sua votação, maior do que o esperado, tenha sido virtù. Mas, como o jogo ainda não terminou, ainda não sabemos o que dizer.”
Maquiavel, a Democracia e o Brasil, de Renato Janine Ribeiro, Editora Estação Liberdade e Edições Sesc São Paulo, 160 páginas, R$ 52,00.