Para quem tiver olhos, haverá música até o dia 29 de abril no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo. E não se pense que são notas musicais a serem solfejadas nas partituras de um quarteto de cordas de Villa-Lobos, de uma partita de Bach ou de uma sonata para violino e piano de Mozart. Ao contrário, são coisas que nunca esperaríamos. São casas, jardins e florestas pintadas pelo pintor suíço Paul Klee (1879-1940) e expostas no CCBB que nos dizem essa música. E o dizem em boa quantidade: a exposição Paul Klee – Equilíbrio Instável apresenta mais de 100 obras – entre elas, 16 pinturas, 58 desenhos e cinco gravuras –, constituindo a primeira grande mostra latino-americana desse artista que ocupa um papel central na história moderna da arte devido à musicalidade de seu trabalho. A curadoria é de Fabienne Eggelhöfer, do Zentrum Paul Klee, de Berna, na Suíça.
Paul Klee é um pintor com uma trajetória muito peculiar. Sua formação inicial não foi a esperada nas artes plásticas. Klee começou a estudar violino aos 7 anos de idade e aos 11 foi aceito como membro excepcional da orquestra da Academia de Música de Berna. Quando adulto, Klee integrou um quarteto de cordas e se interessou muito pela música de Bach e de Mozart. Foi apenas quando completou 19 anos que Klee começou a estudar pintura formalmente, tendo adquirido notoriedade nas artes plásticas depois da Primeira Guerra Mundial e se tornado professor da escola de arte Bauhaus a partir de 1921. Por alguma razão, talvez desconhecida, sua esposa era pianista.
Para o professor Sílvio Ferraz, do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, essa escolha mais tardia pela pintura indica o quanto a música permeia a obra de Paul Klee. Essa musicalidade está presente no ritmo musical de seus trabalhos, principalmente naqueles feitos depois de sua viagem à Tunísia, realizada em 1914. Veja-se, por exemplo, a repetição de pequenas formas, tais como as barras verticais, o X ou os retângulos coloridos, no quadro Nas Moradias de Santo Germain (In den Häusern von St. Germain), pintado em 1914 e exposto na mostra brasileira.
Segundo Ferraz, Paul Klee, em seus cursos publicados no livro La Pensée Creatice (O Pensamento Criador), imagina que o quadro não é visto de uma só vez, mas que o olho passeia ao longo deste, tendo seu movimento guiado por “pesos” presentes na própria obra. Para Klee, esses pesos podem ser combinados como uma estrutura: eles podem puxar o olho para um lado ou para outro, podem se contrastar, variar, podem dispersar a visão ou atraí-la. Podem, através do movimento do olho dentro da pintura, dizer a passagem do tempo na pintura e por isso torná-la musical. Um exemplo disso é o uso do branco puro, que chama a atenção do olhar, ou a combinação de cores a partir de uma mesma forma, criando rimas internas à composição. Na mostra do CCBB, o quadro Harmonia da Flora Setentrional (Harmonie der Nördlichen Flora), de 1927, exemplifica essa ideia de Klee com muita felicidade ao combinar uma rica paleta de cores em apenas quadrados e retângulos.
De acordo com Ferraz, Klee parte também da observação da natureza para pensar esse caminhar do olho no quadro. Em suas aulas na escola Bauhaus, Klee dá o exemplo do moinho, em que analisa o movimento da água corrente e o traduz em um diagrama de flechas, uma ideia parecida com a sucessão de notas que uma partitura musical informa ao músico para tocar.
Ferraz observa que a música também aparece no trabalho de Klee de maneiras mais diretas. Em trabalhos mais tardios como a Entrada da Trompa ou Grenze, ambos presentes na mostra, instrumentos ou símbolos musicais, como a clave de Fá ou indicações de arcada, são representados de maneira discreta, quase que invisíveis para quem não atentar a eles ou conhecê-los de antemão – diferentemente de seus trabalhos de começo de carreira, em que Klee figura o próprio instrumentista, como no desenho O Pianista, de 1909.
Para Ferraz, essas diferenças em como a música é trazida para a pintura possibilitam dividir a trajetória de Klee em três momentos. No primeiro, ele representa os músicos ou o ritual do concerto. No segundo, essa relação com a música é mais estrutural, e ele tenta fazer com que a pintura seja vista como se fosse uma partitura, incorporando a passagem do tempo, jogos de ritmo e a forma musical. Já no terceiro momento, os signos musicais aparecem como traços da própria composição.
Conforme Ferraz, é importante notar que essa preocupação de Klee em ver a pintura através da música é também uma proposta pedagógica nova, que se incorpora no projeto da escola Bauhaus de reformulação das artes plásticas. Em suas aulas, Klee explicava a combinação das linhas do quadro tendo como modelo a maneira com que Bach combinava as linhas melódicas em suas peças para violino; o jogo de cores através da harmonia musical; ou mesmo a relação entre as formas do quadro tendo como horizonte a estrutura musical dos quartetos de cordas de Mozart.
É importante dizer que nos trabalhos de Klee a estrutura da música não se revela na pintura como algo vazio de significado, como um puro lance estrutural. Para Sílvio Ferraz, a pintura de Klee traz algo de fundamentalmente humano. Ela pode dizer, por exemplo, a infância, a dor sofrida na perseguição nazista ou mesmo o maravilhamento com a Tunísia.
Além de realizar a primeira grande mostra dos trabalhos de Paul Klee na América Latina, a mostra do CCBB também tem o mérito de abranger a diversidade de estéticas que Klee perfez em sua trajetória. Veja-se o ritmo de cores em Nas Moradas de Santo Germain, os trabalhos muito sintéticos, próximos da corrente da Bauhaus, no Harmonia da Flora Setentrional e os muitos desenhos de anjos da década de 30.
A exposição Paul Klee – Equilíbrio Instável fica em cartaz até 29 de abril, de quarta a segunda-feira, das 9 às 21 horas, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), localizado na Rua Álvares Penteado, 112, centro, em São Paulo, próximo à estação São Bento do Metrô. Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3113-3651 e no site do CCBB.
VITOR RAMIREZ