Modernidade e tradição não estão tão distantes quanto se costuma pensar. Na verdade, o diálogo entre passado e inovação, muitas vezes, é exatamente o que garante a permanência de um e o surgimento da outra. Isso é verdade no caso da viola caipira, tão associada no imaginário coletivo a um mundo rural antigo, com seus carros de boi e estradas de terra e que parece cada vez mais distante. É justamente esse casamento, aparentemente improvável, um dos responsáveis pela força com que o instrumento se apresenta nos dias de hoje.
Isso porque boa parte dos novos aprendizes de viola caipira se valem em seus estudos das tecnologias digitais que rodeiam o nosso cotidiano. Videoaulas no Youtube, troca de arquivos por Whatsapp ou Telegram e aulas síncronas via Google Meet ou Zoom são algumas das facilidades da vida moderna que hoje afinam o lamento da velha viola.
A presença dessas tecnologias digitais no aprendizado da viola caipira foi justamente o tema da pesquisa de mestrado de André Moraes, realizada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Violeiro e professor de música, Moraes analisou suas experiências e a de seus alunos durante o período da pandemia de covid-19, mapeando os desafios e as perspectivas que os recursos digitais agregam para o ensino do instrumento. O resultado foi a dissertação Viola Caipira e Tecnologias Digitais: Uma Análise de Experiências de Ensino Remoto, orientada pelo professor Marcos Câmara de Castro.
Trazida ao Brasil pelas mãos dos portugueses, a viola está presente no País desde a colonização, tendo sido usada por José de Anchieta na catequização dos indígenas. Foi graças aos bandeirantes e aos tropeiros que ela se difundiu pelo território, ganhando influências negras e indígenas e cores locais. Desde então, tornou-se parte da cultura de uma série de regiões do País, sobretudo nas áreas rurais, recebendo modificações e ganhando diferentes nomes: viola caipira, viola dinâmica, viola de cocho, viola de buriti, viola de cabaça e viola caiçara.
Associada tradicionalmente à música caipira e sertaneja, a viola caipira vem ganhando espaço como um instrumento versátil, capaz de ser utilizado na execução de quaisquer gêneros musicais, além de também poder ser explorada dentro do universo da música instrumental. Com um aprendizado historicamente ligado ao ensino oral e ao autodidatismo, calcado muitas vezes na figura de mestres violeiros e nos ambientes de manifestações culturais caipiras, como as Festas do Divino, as Folias de Reis e a Dança de São Gonçalo, a viola há alguns anos vem se beneficiando de um processo de formalização e institucionalização.
Tendo como marco inaugural desse processo a criação, em 1985, do primeiro curso de viola caipira na Escola de Música de Brasília, o instrumento está hoje presente em cursos de conservatórios e universidades do País. Na USP, essa expansão da viola é reconhecida através da existência de dois bacharelados dedicados ao instrumento, um na ECA (onde recebe o nome de Viola Brasileira) e outro na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP).
Mas, além da tradição oral e do ensino formal, a publicação de livros, métodos de aprendizado e outros recursos cada vez mais tecnológicos vêm contribuindo para o interesse crescente no instrumento. Se nos anos 1960 eram editadas revistas que procuravam sistematizar algum conhecimento para os iniciantes, a partir dos anos 1980 e 1990 videoaulas em CD e DVD passaram a ser outra possibilidade de aprendizado. E, em seguida, sobretudo no século 21, surgiram as ferramentas da internet, acompanhadas dos aplicativos, plataformas e redes sociais.
É nessa área que se situa a pesquisa de Moraes. Seu campo de trabalho consistiu em dois cursos on-line ministrados em unidades do Sesc de São Paulo (Campinas e Campo Limpo) e um curso on-line realizado pela Prefeitura de São Bernardo do Campo. Vindo de experiências presenciais nessas instituições, o pesquisador precisou reestruturar as atividades e seu método de ensino quando a pandemia fechou as portas das salas de aula e exigiu o distanciamento social.
Na esquerda, vídeo gravado com estudantes do projeto Roda de Viola On-Line do Sesc Campo Limpo. Na direita, vídeo dos estudantes do projeto Roda de Viola On-Line do Sesc Campinas – Fonte: Reprodução/Youtube
Foi uma coincidência. Moraes havia ingressado na pós-graduação em 2019, interessado então em investigar como as tecnologias digitais poderiam contribuir no ensino presencial da viola, algo com que ele já lidava tanto em seu dia a dia como professor quanto através da sua história com o instrumento. Conforme o próprio violeiro relata, ele mesmo havia se beneficiado da internet durante sua formação, que começou em 2012, assistindo a aulas no Youtube, fazendo downloads de vídeos e usando softwares como o Audacity para alterar a velocidade de execução ou o tom das músicas estudadas.
Inesperadamente, a situação pandêmica fez seu problema de pesquisa ganhar centralidade e urgência inimaginadas. O acessório tornou-se fundamental e os recursos pensados como complementares ao aprendizado passaram a ser condição para a continuidade do ensino. Equilibrando os desafios de se familiarizar com tecnologias desconhecidas ou pouco utilizadas, garantir a qualidade do aprendizado e manter os estudantes interessados, Moraes foi delineando o potencial, as limitações e as dificuldades de cada recurso, tanto para ele quanto para os alunos.
De imediato, o professor atestou a importância do Whatsapp para manter o contato com a turma, estimular a troca entre os alunos, esclarecer dúvidas e enviar materiais de apoio regularmente, como videoaulas, letras, cifras, partituras e tablaturas das músicas. Essa dinâmica não era exatamente nova, visto que Moraes já utilizava a ferramenta nas aulas tradicionais, como um complemento para otimizar o tempo dos encontros presenciais e agilizar a interação. Na pandemia, entretanto, o aplicativo mostrou-se, num primeiro momento, o principal canal de comunicação com o grupo de estudantes.
Contudo, em pouco tempo as limitações do Whatsapp forçaram o pesquisador a procurar alternativas. O limite de tamanho dos arquivos que podem ser enviados e o armazenamento dos downloads diretamente nos celulares e computadores dos usuários foi tornando impeditiva a troca de vídeos entre professor e estudantes. A duração máxima dos vídeos era insuficiente para transmitir os conteúdos e faltava espaço na memória dos celulares. O próprio Moraes precisou formatar seu aparelho em poucos meses, graças ao volume de vídeos recebido de seus alunos.
A solução encontrada veio a partir do Telegram, o concorrente russo do Whatsapp, que apresenta algumas funcionalidades superiores às do rival. Seu armazenamento feito na nuvem e a capacidade de transmitir e receber arquivos maiores resolveram os problemas do pesquisador. Mas a procura de novas ferramentas não pararia aí.
Outro recurso utilizado e analisado pelo professor foi o das plataformas de videoconferência, como o Google Meet e o Zoom. De acordo com Moraes, apesar de essas ferramentas não terem sido desenvolvidas para o ensino musical e apresentarem limitações importantes no que diz respeito à qualidade do áudio, elas foram fundamentais para garantir encontros síncronos com os estudantes.
Só isso, porém, não parecia suficiente e novas tecnologias entraram no radar do pesquisador. A dificuldade que alguns estudantes relatavam em localizar arquivos e links nas mensagens de Whatsapp ou mesmo a perda de celulares e consequentemente do conteúdo armazenado nos aparelhos levaram Moraes a buscar uma forma de deixar o material das aulas disponível de maneira mais acessível e permanente. Foi aí que o professor passou a usar o Google Classroom com suas turmas, disponibilizando e organizando vídeos, PDFs, arquivos de texto, áudios e links na plataforma.
Para o pesquisador, contudo, a grande descoberta foi uma ferramenta chamada Soundslice. Uma plataforma desenvolvida por músicos especialmente para professores, o Soundslice permite a publicação de vídeos com partituras e tablaturas sincronizadas, a diminuição da velocidade de exibição das videoaulas e a repetição de trechos específicos, além de outras funcionalidades. Elementos que Moraes já havia identificado como importantes no processo de aprendizado via Youtube, por exemplo, aparecem reunidos de maneira facilitada na ferramenta.
O violeiro analisou ainda o papel das videoaulas publicadas no Youtube e a oferta de materiais em sites como o Cifra Club. Conforme aponta o pesquisador, muitos professores de viola caipira publicam no Youtube e outras redes sociais, como o Facebook e o Instagram, conteúdos curtos, trazendo dicas ou pequenas aulas relacionadas ao universo do instrumento. São explicações sobre os diversos ritmos caipiras, o uso da dedeira (acessório usado no polegar para tocar as cordas da viola), trechos de introduções e solos de músicas famosas. Com esses materiais, além de fornecer repertório aos iniciantes, as redes tornam-se vitrines para músicos e professores divulgarem seus trabalhos.
“Observamos que em algumas videoaulas de viola caipira a linguagem utilizada é de fácil assimilação, não envolve nenhum tipo de leitura, quer seja de tablatura, quer de partitura. O conteúdo é apresentado e voltado à prática, ou seja, para tocar o instrumento através da imitação, como se o professor estivesse ao seu lado. Os professores que utilizam o Youtube como forma de transmissão de conhecimento para ensinar a viola caipira, em sua maioria, usam uma abordagem que se assemelha à transmissão oral, em que o professor toca uma determinada música do cancioneiro caipira ou instrumental, sempre detalhando o posicionamento dos dedos, os pares de cordas a serem pisados, a digitação dos dedos de mão esquerda e direita. O aluno, por imitação, estuda e aprende aquele conteúdo que lhe foi proposto.”
André Moraes
O mapeamento, aprendizado e utilização de todo esse aparato digital fizeram Moraes sentir na pele não só os benefícios, mas os desafios que as novas tecnologias oferecem aos professores. Em primeiro lugar, segundo relata o pesquisador, nem todos os estudantes estão familiarizados ou têm facilidade com esses recursos, o que exige do educador um trabalho de ensino também dessas ferramentas. Uma formação, salienta Moraes, que ainda é bastante reduzida nos currículos dos professores de música.
“Espera-se que possamos reconhecer que os imperativos tecnológicos do atual contexto apontam para a necessidade de incluir, nos cursos de formação para professores de música, disciplinas que abarquem os usos da tecnologia para o ensino musical.”
André Moraes
Ao longo dos três cursos que ministrou, o violeiro presenciou a dificuldade de vários alunos no acesso às plataformas digitais, o que exigiu a produção de manuais sobre essas ferramentas. Aí, o aprendizado também foi do professor: Moraes participou de webinários sobre estratégias para aulas on-line, assistiu a tutorias no Youtube e foi ele mesmo aprendendo, quase simultaneamente, como usar os novos recursos e ensiná-los para os estudantes.
Determinante para o sucesso da implementação dessas tecnologias, destaca o pesquisador, é conseguir mostrar aos aprendizes que os recursos propostos podem ajudar na organização do estudo, trazendo praticidade e agilidade. E, no caso de estudantes idosos, uma parcela considerável dos alunos com que Moraes teve contato, o auxílio de um familiar também se revelou necessário para que eles pudessem acessar os conteúdos oferecidos.
Agora, com o relaxamento das restrições impostas pela covid-19, o retorno às aulas presenciais é a oportunidade de experimentar os benefícios das tecnologias usadas durante a pandemia no ensino frente a frente. Videoaulas, grupos em aplicativos de mensagens e sites como o Google Classroom podem ser de grande auxílio na aplicação de um conceito batizado como “sala de aula invertida”, afirma Moraes. Vindo da metodologia ativa, o conceito propõe que os alunos tenham acesso ao material de estudo previamente, consultando-o por conta própria e levando as dúvidas para os encontros com o professor, sejam eles presenciais, sejam síncronos, otimizando assim o processo de aprendizagem.
“Por meio da expansão das videoaulas on-line, em especial via link, o aluno pode hoje assistir diversas vezes, até aprender, ao que lhe foi proposto. Sem esse recurso, presencialmente o aluno só poderia ver o ensinamento no momento da aula, exigindo alto grau de foco, memorização, interpretação e elaboração do conteúdo, tendo apenas uma chance de assistir a uma determinada aula antes de praticar por si mesmo (…). Observamos ainda que, com as videoaulas, os alunos passaram a fazer uma mais acurada leitura de si mesmos, comparando sua própria execução com o material enviado pelo professor. A possibilidade de rever ponto a ponto, com atenção minuciosa, permitiu a eles observar cada detalhe dos gestos físicos e sonoros demonstrados, possibilitando, assim, uma autoavaliação de seu estudo.”
André Moraes
Para Moraes, o uso das tecnologias digitais se tornou imprescindível no ensino musical. Por isso, independentemente do instrumento ensinado, a atualização dos professores é uma necessidade. Segundo o pesquisador, não se pode falar hoje em uma forma única de aprendizado. O conhecimento não está mais apenas com o professor na escola, mas participa do que considera uma “interligação simbiótica entre o físico e o digital”. A educação, de modo geral, segundo o pesquisador, caminha para o ensino híbrido, e o papel do professor passa cada vez mais para o de um mediador da relação entre os alunos e o conhecimento disponível.
Interligação, não substituição, defende Moraes. No caso do ensino da viola caipira, o pesquisador é enfático ao falar sobre a importância do professor, em especial o mestre violeiro, como fonte não apenas do conhecimento técnico sobre o instrumento, mas de todo o ambiente cultural no qual ele existe e do qual é tributário.
“Devemos entender que isso [a tecnologia digital] não substitui o aprendizado com um mestre violeiro em sua comunidade e a consequente imersão no contexto cultural do instrumento, seja em Folias de Reis, Catira, entre outras manifestações, e não substitui a relação direta com um professor em uma escola. Aprender a tocar a viola caipira é apenas uma parte de um grande contexto que devemos considerar, uma vez que na interação entre o mestre violeiro e a comunidade há inúmeras sutilezas que a escolarização certamente não contempla.” André Moraes
Mais informações: e-mail andremoraes@usp.br, com André Aparecido de Souza Moraes