Em livro, intelectuais declaram seu amor por Dante Alighieri

Volume recupera obra editada em 1965 e traz novos autores com relatos da importância do poeta florentino em suas formações

 12/08/2024 - Publicado há 5 meses
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Dante Alighieri: 700 anos depois, poeta florentino exerce fascínio perpétuo entre os leitores – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Sandro Botticelli/Domínio Público e Gustave Doré/Domínio Público via Wikimedia Commons

Ninguém deve ter dúvidas de que entranhar-se no Inferno, atravessar o Purgatório e ascender ao Paraíso já seria currículo bastante para gravar qualquer um na história, seja quem for. Mas relatar essa excursão através de uma poética soberbamente estruturada, inovadora e universal é que fez do florentino Dante Alighieri (1265-1321) imortal. Já se passaram 700 anos de sua partida deste mundo – para qual lugar da trilogia, quem sabe? – e o fascínio de suas letras parece perpétuo.

A publicação de O Meu Dante é mais um episódio dessa perenidade. O livro organizado pela professora Maria Cecilia Casini, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, reúne uma série de depoimentos, em geral de caráter pessoal, elaborados por professores e pesquisadores que se dedicaram ao estudo do poeta florentino ou, de alguma forma, receberam o impacto de sua obra. O livro será lançado pela Ateliê Editorial neste sábado, dia 17, às 14 horas, no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, em São Paulo.

Capa do livro O Meu Dante, que será lançado neste sábado, dia 17, em São Paulo – Imagem: Divulgação/Ateliê Editorial

Trata-se, contudo, de dois livros contidos em um único tomo. A primeira parte da publicação traz a íntegra de O Meu Dante original, lançado em 1965 por ocasião dos 700 anos de nascimento do poeta e jamais reeditado. Iniciativa de Edoardo Bizzarri (1910-1975), adido cultural do Consulado Geral da Itália em São Paulo e diretor do Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro (Icib), que convidou a intelectualidade brasileira para uma série de “reuniões não acadêmicas”, depois transformadas em livro. Haroldo de Campos, Otto Maria Carpeaux, Henriqueta Lisboa, Miguel Reale, Homero Silveira e Cândido Mota Filho são alguns dos nomes que participaram do projeto.

A segunda parte do presente volume traz novas contribuições, reunidas por Maria Cecilia no sétimo centenário de morte de Dante, em 2021 (a pandemia de covid-19 foi responsável pela atraso no lançamento da obra). Agora, destacam-se pesquisadores vinculados sobretudo à USP, como Alfredo Bosi, Hilário Franco Júnior, Lincoln Secco, Marisa Midori Deaecto e Eduardo Henrik Aubert. Apesar das quase seis décadas separando os dois projetos, o espírito que os anima se mantém: em vez de estudos acadêmicos rebuscados, acham-se no volume relatos centrados em inquietações e impactos causados pela leitura do poeta nas trajetórias pessoais e profissionais dos autores.

Do livro originalmente editado em 1965 surge o jornalista e escritor Otto Maria Carpeaux, revelando que, uma vez por ano, reservava seu tempo para uma nova leitura da Divina Comédia. Leitura que começou jovem, quando ainda vivia na Europa e se valia de uma edição “para a mocidade”, “fartamente ilustrada por um artista medíocre qualquer” e “cuidadosamente expurgada”. Depois vieram as edições para ensino secundário, sem supressões de texto nem ilustrações, “mas com muitas notas explicativas ao pé da página”. Tais mudanças foram acompanhadas, no correr da vida, por transformações na própria maneira como Carpeaux leu e releu Dante.

“Olhando para trás, para o caminho percorrido, acredito perceber que as fases da minha leitura de Dante coincidem, embora em diferente ordem cronológica, com as fases que a crítica dantesca percorreu”, escreve. “A leitura cheia de curiosidade de fatos reais, mas remotos e estranhos, corresponde à crítica fatual dos positivistas; o relacionamento dos episódios e versos emocionantes à experiência própria da vida corresponde à crítica dos românticos; e a compreensão do poema como um todo enquadrado em seu tempo e válido para todos os tempos corresponde à crítica historicista. Haverá, amanhã, outras compreensões críticas e mais outras e mais outras, e meu Dante já terá deixado de ser meu, porque ele sobrevive a todos nós.”

Haroldo de Campos, outro autor da publicação de 1965, escapa do caráter pessoal que atravessa a maioria dos relatos para fazer uma apreciação de Dante como poeta experimental, criador de formas e pesquisador incansável da linguagem. Em seu texto, toma como objeto de análise um trabalho menos conhecido do poeta, o ciclo das quatro Canções Pedrosas, compostas provavelmente em 1296, antes da Divina Comédia.

Campos entende as canções como um “exercício de dicção”, trabalho laboratorial para a grande obra de Dante. O ciclo – que aparece traduzido pelo autor ao final do artigo – seria um dos momentos altos da criação linguística do poeta florentino, mostrando-se atual tanto em sua construção como em seu despojamento. “Muito diferente da imagem romântica do poeta inspirado, cultivador da poesia-coração”, escreve Campos, “o Dante é o poeta doctus, e sua poesia uma poesia do intelecto”.

Eis-me chegado à posição da rota
em que o horizonte, quando o sol se põe,
dá nascimento ao geminado céu,
e a estreia do amor fica remota
pelo raio luzente que a transpõe
tão de viés como se fora um véu;
e o planeta gelado, frente ao meu
olhar, mostra-se todo no grande arco
onde cada um dos sete sombra exígua
faz: nem por isso míngua
um pensamento só dos que eu abarco
de amor na minha mente, dura pedra
que conserva uma imagem de outra pedra.


(Trecho da primeira das Canções Pedrosas, de Dante Alighieri, em tradução de Haroldo de Campos)

Quem também procura uma abordagem orientada para a investigação crítica é o próprio organizador do volume de 1965, Edoardo Bizzarri, que assina artigo no qual discute a presença de citações a Dante e sua obra na produção de Machado de Assis. “Entre os escritores brasileiros que mais cultuaram Dante, devemos colocar, e talvez mesmo em primeiro lugar, o próprio pai da prosa brasileira, Machado de Assis – que de Dante e da Divina Comédia fez objeto de estudo e de culto durante toda sua vida”, aponta Bizzarri. “Essa predileção não pode causar estranheza se considerarmos as exigências estilístico-estéticas de Machado e seu íntimo conjugar-se com uma severa estrutura moral.”

Segundo o autor, a primeira citação a Dante aparece na obra de Machado de Assis em 1864 e a última, em 1908, no romance Memorial de Aires, publicado no mesmo ano da morte do Bruxo do Cosme Velho. Ao todo, Bizzarri contabiliza 24 citações – deixando de lado referências diretas ou indiretas ao poeta –, distribuídas ao longo de 44 anos de produção literária. Destaca ainda o interesse de Machado de Assis pelo terceto – forma imortalizada na Divina Comédia – e também apresenta a própria tradução que o escritor brasileiro fez do Canto XXV do Inferno. Mais do que uma análise rigorosa e conclusiva, entretanto, o texto incluído em O Meu Dante, como o próprio Bizarri salienta, constitui um convite para pesquisas mais aprofundadas nessa relação ítalo-brasileira.

Acabara o Ladrão e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
Olha, Deus, para ti o estou fazendo!”

E desde então me foi a serpe amada,
Pois uma vi que o colo lhe prendia,
Como a dizer: “não falarás mais nada!”

Outra os braços na frente lhe cingia
Com tantas voltas e de tal maneira
Que ele fazer um gesto não podia.


(Trecho do Canto XXV do Inferno, de Dante, traduzido por Machado de Assis)

Se o tema é pesquisa, o relato do professor da FFLCH Eduardo Henrik Aubert, incluído no grupo atual de O Meu Dante, é exemplar da significância que o poeta pode exercer em trajetórias acadêmicas. Aubert conta que leu pela primeira vez a Divina Comédia no intervalo entre o ensino médio e o ingresso no curso de História da USP, dentro de um projeto pessoal de conhecer os “grandes clássicos”. Em seguida, fez do livro tema para sua iniciação científica e, anos mais tarde, mesmo trabalhando com outros temas na pós-graduação, continuou próximo do poeta, pesquisando as biografias escritas a seu respeito, projeto que culminaria no livro Vidas de Dante: Escritos Biográficos dos Séculos XIV e XV, de 2011.

Mais alguns anos, outras pesquisas, novas graduações e doutorados e, quando já se imaginava longe do poeta, Aubert se viu novamente envolto em seus círculos. A proximidade dos 700 anos da morte de Dante o trouxe de volta ao livro de 2011, às biografias e à própria Divina Comédia. “Estou experimentando plenamente os efeitos de reencontrar Dante, que foram se desdobrando a ponto de desfazer todos os planos que eu traçara para 2021”, conta o professor. “Além da revisão de Vidas de Dante, eu tenho ministrado cursos sobre Dante, venho apresentando conferências e publicando textos algo longos, que espero em breve transformar em uma Introdução à Divina Comédia.”

O próprio orientador de Aubert, o professor da FFLCH Hilário Franco Júnior, também está presente no volume. Traz um relato pessoal, classificado como um “exercício de introspecção e memória”, próximo do que é a própria

Comédia. “Dante talvez seja, ao menos para mim, uma daquelas figuras que geram tal admiração que inconscientemente delineamos uma linha vermelha que não se arrisca a ultrapassar”, escreve. Isso porque reconhece não ter se batido de frente com a obra do autor florentino em seus estudos, mas intui a importância para sua própria trajetória intelectual. Franco Júnior questiona mesmo se seus interesses e curiosidades não teriam sido inoculados pela própria leitura de Dante, no qual se reúnem literatura, filosofia, teologia, linguística, política, história e cosmologia.

Maria Cecilia aproveita ainda a edição para incluir um texto oriundo de palestra realizada pelo também professor da FFLCH Alfredo Bosi em 2015. Bosi estava entre os nomes cotados pela organizadora para integrar a coletânea, mas sua morte, em 2021, impediu uma contribuição original. No relato, descreve sua experiência como professor de Literatura Italiana no curso de Letras da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, e cita o projeto organizado por Bizzarri, que resultaria em O Meu Dante de 1965.

“O que mais me empenhou como professor foi a volta à leitura da Divina Comédia”, recorda Bosi. “A ocasião se deu em 1965, durante as comemorações do sétimo centenário do nascimento de Dante. Os eventos não se limitaram a conferências na USP e no Instituto Ítalo-Brasileiro – onde o scholar Edoardo Bizzarri fazia a sua Lectura Dantis todas as quartas-feiras. A Comédia passou a ser matéria de cursos de graduação. E, se nossos cursos de italiano precisavam de receber uma lufada de realismo, quem melhor do que o poeta do além e o juiz aspérrimo dos vivos e mortos para trazer-nos às realidades deste mundo?”

O Meu Dante constrói uma presença, que transmuta a satisfação intelectual de seus versos em deleite emocional. Razão e sentimento parecem se fundir, tornando Dante uma espécie de Virgílio para os autores da coletânea – um guia e amigo de jornada. Se Haroldo de Campos prefere vê-lo como o poeta doctus, o volume não se esquiva de trazê-lo para perto do coração e do afeto, como sublinham as palavras de Giulio Ferroni, que foi professor da Università della Calabria e da Università La Sapienza de Roma, presentes na Apresentação do livro. “Uma poesia que nos convida a buscar o essencial, a amar o mundo e a ter consciência da brevidade de nossa própria vida, a buscar justiça, solidariedade, respeito pela terra que tivemos como dom.”

O Meu Dante, de Maria Cecilia Casini (organização), Ateliê Editorial, 472 páginas, R$ 119,00.

O livro será lançado neste sábado, dia 17, das 14 às 17 horas, no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro (Rua Frei Caneca, 1.071, Cerqueira César, em São Paulo).


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