Diário de Anita Malfatti retrata o início de sua carreira

Caderno reencontrado em arquivo do IEB traz desde exercícios de geometria até o relato da primeira exposição da pintora

 08/03/2017 - Publicado há 7 anos
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Detalhes do Diário de Anitta Mafalti - Foto Cecília Bastos/USP Imagens
Detalhes do Diário de Anita Malfatti – Foto Cecília Bastos/USP Imagens

“Trinta de maio foi sábado e dele só me lembro quando ao lusco-fusco apareceu Freitas Valle com todos seus satélites, sendo os principais Zadig e Elpons (…) quando mamãe perguntou se ele gostava do retrato de Georgina, disse ele – Minha senhora, não se ofenda se sou franco, mas esse quadro está crivado de erros, o desenho é fraco e é um carnaval de cores. O valor artístico não tem nenhum”, narra Anita Malfatti em seu caderno recentemente reencontrado no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

O trecho se refere à recepção da primeira exposição individual da modernista, em 1914, e foi publicado na biografia Anita Malfatti no Tempo e no Espaço, da historiadora do IEB Marta Rossetti Batista, em 1985. Ainda sim, por muito tempo, o caderno do qual o trecho havia sido extraído não fora achado. O livro era a única pista da existência de um diário perdido de Anita, cujo paradeiro permaneceu desconhecido até o início de fevereiro deste ano.

Enquanto analisava a 28ª caixa do arquivo de Mário e Emilie Chamie, em busca de material para o projeto de pós-doutorado, o pesquisador Carlos Pires encontrou um envelope destinado a Marta Rossetti. Nele, havia o caderno de Anita Malfatti, no qual Pires identificou as passagens que a historiadora havia usado em seu livro.

“O fato de retratar uma situação muito particular e típica do que acontecia na década de 1910 aqui no Brasil, relacionada a Freitas Vargas e ao mercado de arte, é um aspecto muito importante do diário”, argumenta o pesquisador, que pretende analisar a obra mais profundamente.

No caderno, além do relato sobre a primeira exposição individual da artista, há também exercícios de geometria, listas de palavras em alemão e inglês e esboços de desenhos mais livres. “O caderno é o espaço do talvez”, comenta Elisabete Ribas, chefe do Serviço de Arquivo do IEB, parafraseando o pintor brasileiro Daniel Senise. “Nele pode haver uma receita, uma confissão, um momento de drama, e o da Anita é bem assim. O caderno permite tudo”, explica.

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Da teoria ao vernissage

"Georgina", retrato da irmã de Anita exposto em 1914 e criticado por Freitas Valle. Óleo sobre tela
Georgina, retrato da irmã de Anita exposto em 1914 e criticado por Freitas Valle. Óleo sobre tela

Após a morte do pai, de origem italiana, a jovem artista foi educada pela família materna, de descendência germânica, que mandou Anita para Berlim, onde estudou arte entre 1910 e o início de 1914. As primeiras páginas do caderno foram preenchidas nessa época, com estudos sobre perspectiva, formas geométricas e língua alemã.

Em Berlim, Anita teve contato com movimentos vanguardistas europeus e foi especialmente influenciada pelo expressionismo. “Ela foi muito impactada pelo trabalho com a cor, pela explosão de cores, muito mais do que pelo cubismo, que era um estudo mais voltado para as formas”, afirma Regina Teixeira de Barros, curadora da exposição Anita Malfatti: 100 Anos de Arte Moderna, no Museu de Arte Moderna, que comemora o centenário da exposição de 1917, a segunda individual de Anita.

Mesmo que inspirada pelo trabalho expressionista, seus quadros da exposição de 1914 ainda carregavam fortes referências acadêmicas. “Esse momento é um misto de aprendizado e experimentação, mas a experimentação dela é muito mais próxima do impressionismo do que do expressionismo”, explica Regina. “Na exposição de 1914, as pessoas atribuíam a ‘mão pesada’ de Anita — falavam que o trabalho dela tinha uma força masculina — ao fato de ser uma pintura de quem ainda estava se iniciando. Esses primeiros trabalhos eram entendidos como exercícios de pintura e não como uma pintura com pretensão de ter autonomia”, diz.

"Homem Amarelo" é um dos quadros de 1917 que mostra o desenvolvimento do expressionismo nas obras da Anita Malfatti
Homem Amarelo é um dos quadros de 1917 que mostram o desenvolvimento do expressionismo nas obras de Anita Malfatti – Foto: Reprodução

As críticas, no entanto, não recaiam apenas em Anita. Em seu diário, a artista se sentia à vontade para avaliar o que acontecia em seu entorno também. “Ela faz uma análise realmente crítica da situação da arte, como funciona o mercado de arte, quais são as pessoas que vão visitá-la na exposição e por que vão visitá-la. Ela expõe isso de uma forma muito clara, com a qual nós não tínhamos tanto contato, a não ser pelas cartas que ela escrevia”, explica Elisabete, ao lembrar das muitas “cartas de pijama” que Anita trocava com Mário de Andrade, sempre muito francas.

“O que é bonito no diário é que ela é um pouco mais jovem do que em outros momentos que estão documentados. Ela é mais inocente, talvez um pouco mais natural”, completa. Um exemplo disso é a história de como Anita tentou se preparar para o seu vernissage de 1914. Comprou sapatos novos para a ocasião, mas, ao chegar ao local, ainda os levava nas mãos. Além disso, a pintora fez questão de pregar ela mesma as telas da exposição.

“Uma coisa que a gente percebe no arquivo, no diário e em tantos outros locais, é que ela se dedica muito àquilo que faz”, analisa Elisabete. Para a pesquisadora, Anita e outros intelectuais da época “foram pessoas que se dedicaram profundamente, de modo a marcar a área em que elas atuaram, a mudar um ciclo, a reformular um pensamento, a representar um povo de uma maneira diferente. No caso da Anita, de uma forma mais colorida”, conclui.

Passada a estreia no Brasil, no final de 1914, Anita viaja a Nova York para estudar arte e finalmente consegue digerir as referências expressionistas que viu na Alemanha. Além disso, começou a produzir os quadros que fizeram parte de sua segunda exposição individual, três anos depois de seu début.

“Em 1917, ela tem uma pintura muito mais gestual, muito mais livre em termos de escolha de cores, que deixam de ser uma referência ideal e passam a ter uma carga mais psicológica, mais interpretativa”, descreve Regina. “Além disso, ela tem um afastamento do espaço, ela deixa de fazer uma perspectiva buscando o tridimensional, a profundidade. As telas vão ficando mais planas e, na figura humana, ela faz cortes que são pouco ortodoxos, pouco acadêmicos.”

O diário perdido

Elisabete Ribas, pesquisadora do IEB -Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Elisabete Ribas, do IEB – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Ainda não se sabe com certeza como o caderno chegou até o acervo de Emilie Chamie, mas pesquisadores do IEB supõem que Marta Rossetti o havia emprestado para que a designer — que organizou a parte gráfica da biografia de 1985 — pudesse desenvolver um projeto sobre Anita Malfatti. “Provavelmente ela estava trabalhando num livro com a Marta, sobre a Anita, e o material iria compor trechos do projeto, mas ela precisava do original para reproduzir aquilo”, presume Elisabete. Supõe-se que a pesquisa de Emilie não chegou a ser concluída em razão de sua morte em 2000, além de não ter conseguido devolver o diário a Marta, falecida em 2007.

De volta ao arquivo, o diário será incorporado à coleção de cadernos de Anita Malfatti. “Ele, com certeza, vai completar o conjunto e o conjunto irá completá-lo. São estudos infinitos”, diz Elisabete.


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