Diário de Anita Malfatti de 1914 é tema de seminário on-line

Evento ocorre nesta quinta-feira, às 16 horas, na página do Instituto de Estudos Brasileiros da USP no Facebook

 16/03/2021 - Publicado há 4 anos
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A arte de Anita Malfatti antecipa aspectos do Modernismo quase uma década antes da Semana de 22 – Arte: Bianca Dettino/IEB-USP

 

“Quando chego mamãe me conta da visita de um tal Guido Garoti, que se interessou muito pelos desenhos e falou repetidas vezes que parecia mais trabalho de homem do que de uma signorina”, escreveu a artista plástica paulista Anita Malfatti (1889-1964) em 25 de maio de 1914, num diário que foi reencontrado pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP em 2017. Nele, Anita narra sua primeira exposição individual, na Casa Mappin, em São Paulo, entre outros fatos vividos por ela na época.

A riqueza histórica do diário até então oculta — motivou estudos como os do professor Carlos Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutor pelo IEB. Pires será um dos palestrantes do seminário on-line O Diário de Anita Malfatti de 1914, que acontece nesta quinta-feira, dia 18, às 16 horas, com transmissão ao vivo pela página do IEB no Facebook. O evento terá a mediação da pesquisadora Ana Paula Simioni, do IEB. Pires e Ana Paula vão abordar o Modernismo paulista no início do século 20, centrado na figura de Anita, através dos registros do diário de 1914. 

Anita Malfatti, Autorretrato, 1922 – Foto: Coleção de Artes Visuais, IEB-USP

Alguns trechos do diário foram publicados nos anos 80 pela professora da USP e historiadora da arte Marta Rossetti Batista (1940-2007). Eles eram a única pista da existência do caderno, até que, em fevereiro de 2017, fazendo pesquisas no acervo do IEB, Pires o encontrou dentro de um envelope e fez dele o tema de seu pós-doutorado. Quatro anos depois, a pesquisa de Pires está concluída e dá continuidade e aprofundamento aos estudos de Marta Rosseti.

Segundo Ana Paula Simioni, que foi a supervisora do pós-doutorado de Pires, o estudo do diário de Anita traz avanços na compreensão do ambiente paulistano daquele período e da trajetória da produção artística de Anita Malfatti, num momento anterior à Exposição de Pintura Moderna, que a artista realizou em 1917, em São Paulo. 

De acordo com Pires, grande parte dos livros didáticos sobre história da arte no Brasil reproduz a ideia de que essa exposição de Anita foi o momento inaugural do Modernismo no Brasil, que culminaria na Semana de Arte Moderna, cinco anos depois. Entretanto, os relatos da artista sobre a sua exposição em 1914 já evidenciam muitos aspectos modernistas.

O professor Carlos Pires – Foto: Arquivo pessoal

“Nesse diário, nós conseguimos jogar luz em problemas da cultura brasileira e do campo artístico brasileiro, enfrentando certos mitos”, afirma Pires. Entre esses problemas, o professor destaca as questões de gênero vivenciadas por uma mulher que tenta se inserir no campo artístico dominado por homens. “Consegui entender melhor pequenos trechos que Marta havia publicado, onde Anita relata como estavam percebendo a obra dela em 1914. Muitos pintores e apreciadores daquele momento olham os trabalhos dela e falam: ‘Eu não vejo aqui o trabalho de uma mulher, vejo aqui a mão de um homem’, por conta da expressão, dos gestos, da maneira dela de configurar o desenho”, afirma. Essa questão transparece neste trecho do diário: “Mais dois pintores brasileiros, um Sr. Amazonas e Ant. de Freitas, que muito olharam e não falaram muito, mas hoje, 26, soubemos que ele disse que se via em tudo a mão de um muito hábil professor e que meu trabalho nunca foi meu pois em tudo se via a força do homem. Foi o maior cumprimento que me foi feito”.

Ana Paula adianta que há relatos em que a desaprovação e a ironia vinham também por parte das mulheres:

“Há uma passagem muito interessante em que ela aborda a reação do público de São Paulo a um estudo de academia feito na Alemanha que ela expôs, na qual comenta que as pessoas riram, especialmente mulheres, e murmuravam coisas. Ou seja, ainda em 1914 já causava espanto”.

Na exposição de 1914, Anita buscava apoio financeiro para estudar artes nos Estados Unidos, bolsa que dependia do senador José de Freitas Valle. “F. Valle está tão engorgitado de injeções de vaidade que estes satélites lhe aplicam todos os dias que ele mesmo cairia das nuvens se percebesse algum dia que realmente ele é um incompetente”, escreve a artista. Além de não conceder a bolsa, Freitas ainda criticou as obras de Anita publicamente. A artista continua: “Que pena tenho desses artistas que dependem do Freitas Valle para seu pão! Adeus liberdade e franqueza de opiniões”. Pires afirma que Freitas era um sujeito poderoso na política e nas artes, responsável pela invenção do pensionato artístico, anos antes, que dava prêmios de viagens para formação no exterior. Nesse contexto, “é possível mapear um prêmio institucionalmente novo e ver um campo artístico se formando e ganhando instituições que começam a funcionar como pilares”, completa.

Arte: Bianca Dettino/IEB-USP

Segundo Pires, o que torna o diário mais interessante é que o registro pessoal subjetivo é secundário. “O ponto central é a carreira artística de Anita. Temos uma mulher, em 1914, que está em busca da construção de uma carreira artística naquele meio. Ali dá para ver toda a parte de construção dessa estratégia para se inserir no campo artístico. Diferente do costume de se escrever em diários, no qual se destina um caderno específico e se cola uma data na primeira página, os relatos se iniciam no meio de um caderno de rascunhos que Anita levou para a Alemanha”, afirma o professor. “Ela abre, põe data e passa a contar as principais coisas relacionadas à sua exposição de abril, contexto que se apresenta como algo muito particular.”

“Eu me vesti voando e ainda fui trocar meus sapatos no Clarks, mas cheguei no Mappin pouquinho antes das 13h (hora da inauguração), mas lá ainda achei os cartazes todos, e os números para enumerar os quadros não tinham sido colocados. Eu, com a pressa de ver os cartazes na porta e no elevador, vou pregar o papelão na porta da entrada com uns preguinhos pouco delicados, e estava no ato de bater os pregos com meu sapato quando chega um senhor que deu ordens para o empregado ir buscar embaixo uns pregos mais finos e pregar o cartaz para ‘miss Malfatti’, e eu, muito espantada e encabulada, de sapato na mão, convido o Mr. Colthurst a entrar e ver minha exposição”, narra Anita.

Pires ressalta a relevância do diário de Anita: “Esse documento é bastante importante dentro do acervo do IEB para se entender o Modernismo paulista e as principais figuras relacionadas a esse momento fundamental de constituição de uma cultura brasileira menos dependente, com um grau de autonomia interna”. 

O evento O Diário de Anita Malfatti de 1914 será realizado nesta quinta-feira, dia 18, às 16 horas, na página do  Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) no Facebook. Grátis. Não é preciso fazer inscrição.


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