“Carolina Maria de Jesus é referência para quem contesta o poder”

Reedição de “Quarto de Despejo”, publicado há 60 anos, e homenagens mostram importância da “escritora favelada”

 17/03/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 19/03/2021 as 16:46
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Publicado em livro pela primeira vez em 1960, Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus, ganha edição comemorativa e peça de teatro – Arte de Lívia Magalhães sobre foto de Wikimedia Commons

 

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tinha muito contra ela. Negra, mãe solo, pouca escolaridade – chegara até o segundo ano do fundamental –, catadora de papel, favelada. A vida não parecia sorrir muito para aquela mulher nascida em uma comunidade rural de Sacramento, Minas Gerais, e que os caminhos levaram para São Paulo, onde trabalhou como empregada doméstica até engravidar, ficar sem emprego e ir parar no Canindé, na primeira grande favela da capital paulista.

A luz dos seus dias vinha das leituras no barraco e das anotações cotidianas registradas nos cadernos que encontrava pela rua. E foram desses relatos que surgiu Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960), seu primeiro e mais famoso livro, um arrasa-quarteirão literário que a projetou internacionalmente.

A história de sua publicação passa pela visita do jornalista Audálio Dantas, na época trabalhando para a Folha da Noite, pela favela do Canindé. Incumbido de escrever sobre a comunidade que se estendia às margens do Tietê, lá topou com Carolina e suas dezenas de cadernos de anotações. Percebeu de imediato a força daqueles escritos – eles já eram a própria matéria que deveria escrever. Tratou de publicá-los, com a história de Carolina, na edição de 9 de maio de 1958 da Folha da Noite. O interesse foi intenso e no ano seguinte a prosa da autora preenchia também as páginas da revista O Cruzeiro. Editado por Dantas e publicado em 1960, Quarto de Despejo se tornaria um best-seller, tendo sido traduzido para 13 idiomas e adaptado para o teatro e a televisão.

“O sucesso do livro – uma tosca, acabrunhante e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante de vida – foi também o sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade”, escreveu Dantas no prefácio de uma edição de 1993 da obra.

Composto a partir dos diários de Carolina, escritos entre 1955 e 1960 com notações de acontecimentos e reflexões do dia a dia, o livro impacta por sua lucidez e crueza. Mesmo com o trabalho realizado por Dantas, que suprimiu trechos considerados repetitivos e alterou a ortografia de algumas palavras para tornar o texto mais palatável, o estilo da autora continua direto como um murro na cara. O português lapidado pela conjugação do baixo aprendizado escolar e o grande ensino da vida fazem a prosa fluir com vigor:

“Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”

Capa da nova edição de Quarto de Despejo, da Editora Ática, comemorativa de 60 anos do lançamento da principal obra de Carolina Maria de Jesus – Foto: Reprodução

 

Na sucessão de dias que correm nas páginas do livro, Carolina expõe e analisa sua condição de mãe solteira e moradora da favela. Não guarda palavras para falar dos vizinhos – ora com críticas agudas, ora com elogios ternos – e circunscreve os limites de seus prazeres e suas dores. E junto da história da própria Carolina é uma São Paulo dos oprimidos, dos desfavorecidos e dos persistentes que vai se desenhando.

“Ela rejubilou-se e começou dizer que o Dr. Adhemar de Barros é um ladrão. Que só as pessoas que não presta é que aprecia e acata o Dr. Adhemar. Eu, e D. Maria Puerta, uma espanhola muito boa, defendíamos o Dr. Adhemar. D. Maria disse:

– Eu, sempre fui ademarista. Gosto muito dele, e de D. Leonor.

A Florenciana perguntou:

– Ele já deu esmola à senhora?

– Já, deu o Hospital das Clínicas.”

“Carolina é uma realista irônica; Lukács diria que é uma realista crítica”, pontua o escritor e jornalista Alberto Moravia no prefácio de uma edição italiana de Quarto de Despejo, de 1962. “De fato, o realismo de sua prosa simples, plana, clara, familiar nunca é naturalista: uma ironia sutil e difusa lhe dá uma dignidade clássica. Trata-se provavelmente de uma ironia, por assim dizer, coletiva, a ironia da favela da qual essa mulher inculta soube tornar-se a porta-voz.”

Edições comemorativas

Agora, em seus 60 anos, completados em 2020, a obra acaba de ganhar edição comemorativa pela Editora Ática. O volume reúne manuscritos originais da autora, fotografias, prefácios, ensaios acadêmicos e artigos de jornal – como os textos de Dantas e Moravia dos quais as citações acima foram extraídas.

Um segundo tomo também faz parte das comemorações e traz a adaptação para teatro de Quarto de Despejo, feita por Edy Lima e nunca publicada em livro. A direção da montagem original, datada de 1961, ficou sob responsabilidade de Amir Haddad. No papel de Carolina estava Ruth de Souza, que iniciara a carreira no Teatro Experimental do Negro (TEN) e foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1945, além de ostentar o título de primeira brasileira a ser indicada ao prêmio de Melhor Atriz em um festival internacional de cinema – no caso, o de Veneza, em 1954.

“Em geral, quem leu Quarto de Despejo mostra-se curioso em saber como o tema foi transposto para o palco”, escreve Edy Lima no prefácio do livro. “Quando se fala em adaptação, pensa-se logo em transformar em ação dramática o entrecho de uma obra de ficção. Sendo Quarto de Despejo um diário e principalmente um levantamento sociológico, não tem entrecho no sentido em que este ocorre na obra de ficção; portanto, no sentido literal, não há possibilidade de transpô-lo. Era necessário escrever uma peça e não adaptar uma história. Foi o que fiz. E fazendo isso mantive a atmosfera do diário, o problema por ele levantado e o sentimento que o inspirou.”

Capa da adaptação teatral de Quarto de Despejo, escrita por Edy Lima – Foto: Reprodução

 

Depois de Quarto de Despejo

Com o sucesso da obra e o retorno financeiro, Carolina partiu da favela do Canindé para o bairro de Santana, mudança registrada em seu livro seguinte, Casa de Alvenaria (1961). “São os anos dourados da transformação que atravessa sua vida”, escreveu em 1983 Carlos Vogt, Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Viagens, jantares, contatos com presidentes, entrevistas, participação em congressos, vida de artista. Em 1961, por exemplo, participa do 2º Festival de Escritores, realizado no Rio de Janeiro.”

Contudo, o reconhecimento de Carolina desapareceria tão rápido quanto veio. Casa de Alvenaria não causa o mesmo impacto que a estreia literária e os livros seguintes – Provérbios e Pedaços da Fome, ambos de 1963 – amargam o mesmo destino. A “escritora favelada” ou “a favelada que escreve” deixara de ser novidade. Ainda segundo Vogt, a autora sairia de Santana em 1964 para morar em um sítio na região de Parelheiros e dificuldades econômicas a levariam mais uma vez ao trabalho de catadora de papel, já em 1966.

“A se dar crédito aos jornais e às poucas entrevistas que se fizeram com ela no retiro do pequeno sítio de Parelheiros, morreu triste, abandonada e incompreendida”, comenta Vogt no texto que também integra a nova edição de Quarto de Despejo. “Ao que parece, sem compreender que os mecanismos sociais que promoveram o seu destaque laboraram também o seu esquecimento.”

Carolina morreria em 1977, aos 62 anos, e três obras póstumas viriam a público: Diário de Bitita (1986), Antologia Pessoal (1996) e Meu Estranho Diário (1996).

Interesse acadêmico

De acordo com a pesquisadora Elena Pajaro Peres, pós-doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e estudiosa de Carolina Maria de Jesus, a obra da autora vem recebendo mais atenção da academia desde os anos 1990. Parte disso tem a ver com o processo de microfilmagem de grande volume de seus manuscritos, realizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em convênio com a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

“Aos poucos, pesquisadores de diversas áreas foram elaborando estudos e analisando aspectos da vida e dos escritos memorialísticos e ficcionais da escritora, que antes só era mencionada como autora do diário Quarto de Despejo”, comenta Elena para o Jornal da USP. “Nos últimos dez anos, esses estudos foram ganhando corpo e, ao mesmo tempo, foi surgindo uma demanda, vinda de diferentes grupos, pelo conhecimento de sua produção literária e de detalhes de sua vida. Com a ampliação e aprofundamento do debate sobre o racismo, sobre a luta das mulheres, com a força dos movimentos sociais e pela diversidade, a luta pelo reconhecimento da arte que vem das ruas, das favelas e das periferias, a literatura de Carolina Maria de Jesus foi encontrando mais espaço de diálogo.”

Ao lado disso, explica Elena, a escritora vem sendo também cada vez mais reconhecida como uma referência para trajetórias artísticas e de vida que contestam o poder e os privilégios. “Merece nossa atenção neste momento, e esse foi um dos aspectos que procurei ressaltar em minhas pesquisas sobre a autora, lembrar que Carolina teve um percurso criativo e literário anterior a Quarto de Despejo e que continuou produzindo seu trabalho intelectual e artístico após o sucesso obtido com esse primeiro livro. Também é importante fugir dos clichês que muitas vezes são lançados sobre a autora. Para isso é preciso ler e estudar Carolina, ressaltando que sua produção artística e intelectual não surgiu da carência, daquilo que falta, mas sim de uma confluência cultural afro-mineira e afrodiaspórica que ela retrabalhou com singularidade criativa ao longo de sua vida como migrante.”

Homenagens

Além dos lançamentos editoriais, 2021 traz outras homenagens que procuram reavaliar o papel da autora na cultura nacional. No dia 25 de fevereiro, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) concedeu a Carolina o título de Doutora Honoris Causa, reconhecimento oferecido a pessoas com contribuições decisivas para a arte, a ciência e a cultura brasileiras.

“Carolina Maria de Jesus é fundamental como alguém para trazer consciência sobre a realidade do pobre, do povo negro, dos favelados, daqueles que são relegados à margem da história, da literatura e da academia no nosso país”, declarou a estudante e conselheira universitária da UFRJ Júlia Vilhena, na reunião do Conselho Universitário que conferiu o título para a autora. “E para nós, enquanto UFRJ, enquanto universidade, no século 21, em um ano de tantos retrocessos em nosso país, em um ano em que tanta gente passa fome, em um ano em que cada vez mais o espetáculo do pobre é de fato a possibilidade de comer, é fundamental conseguirmos dar esse título a Carolina Maria de Jesus e, sobretudo, ter um comprometimento para que esses títulos sejam cada vez menos póstumos. É triste pensar que Carolina, em vida, teve muito menos reconhecimento do que teve em morte.”

Já para julho está prevista no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, a mostra Carolina Maria de Jesus – Um Brasil Para os Brasileiros. De acordo com o IMS, a mostra abordará a sua trajetória e produção literária, revelando a autora como uma intérprete fundamental para a compreensão do País. O instituto possui dois manuscritos de Carolina sob sua guarda, intitulados Um Brasil Para os Brasileiros. No dia 14 de março – data de nascimento da escritora -, o IMS já havia feito uma homenagem a ela com a ocupação Carolina Maria de Jesus, Presente, que reuniu depoimentos de escritoras e escritores negros em seu perfil no Instagram. Os vídeos podem ser acessados neste endereço.

Ao refletir sobre o percurso criativo de Carolina, a pesquisadora Elena Peres destaca que os diários da escritora, sobretudo as passagens de Quarto de Despejo, sempre chamaram atenção pelo seu caráter testemunhal. É importante, contudo, ler o conjunto de sua obra – diários, poemas, romances, memórias, peças teatrais e contos – para além desse caráter testemunhal, prestando atenção aos componentes éticos e estéticos de sua escrita, indica a pesquisadora.

“Dessa maneira, é possível lançar questionamentos que levem em conta o percurso criativo da autora, seus caminhos artísticos e literários e sua forma de escrita”, afirma Elena. “A literatura de Carolina foi composta por interconexões que passam pela citação direta e indireta de autores, entre os quais estão os poetas e escritores românticos, mas também por uma intertextualidade que vai além de suas leituras. Em sua escrita encontram-se presentes suas interações com o cinema, a dramaturgia circense, as radionovelas e as cantoras e cantores do rádio, as narrativas orais e leituras coletivas das notícias ouvidas na infância, as falas das mulheres da favela, as ideias de pensadores e políticos como Rui Barbosa, por exemplo. Todos esses elementos foram importantes na composição de sua literatura, que se destaca por seu teor autobiográfico e um chamamento intenso da palavra, uma necessidade de comunicar, de reconfigurar o mundo por meio da expressão criativa, característica também encontrada em outras autoras e autores das diásporas negras”, finaliza a pesquisadora.


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