Ouça no link abaixo entrevista do professor Vagner Camilo, um dos organizadores do livro O Sino e o Relógio – Uma Antologia do Conto Romântico Brasileiro, da Editora Carambaia, transmitida ao vivo no dia 19 de março de 2020 no programa Via Sampa, da Rádio USP (93,7 MHz).
Depois de mais de dez anos de pesquisas, os professores da USP Hélio de Seixas Guimarães e Vagner Camilo acabam de lançar o livro O Sino e o Relógio – Uma Antologia do Conto Romântico Brasileiro, que reúne 25 narrativas publicadas entre 1836 e 1879 por autores então já consagrados, como José de Alencar, Bernardo Guimarães e Machado de Assis, e outros até hoje desconhecidos e mesmo anônimos. O lançamento é da Editora Carambaia.
Recolher num mesmo volume esses 25 textos foi uma tarefa árdua. Boa parte deles se encontra somente em jornais do século 19, onde apareceram pela primeira vez, como o Echo da Juventude – Publicação Destinada a Litteratura, o Correio das Modas – Jornal Crítico e Litterario das Modas, Bailes, Theatros, Etc. e A Ilustração Brasileira. Outros estão publicados em livros produzidos há mais de 140 anos, que não tiveram reedição. Para localizá-los, Guimarães e Camilo pesquisaram cada edição daqueles jornais e livros, hoje disponíveis em hemerotecas e coleções digitais como as mantidas pela Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP. “O livro amplia a visão que a gente tem do período romântico”, disse o professor Vagner Camilo, em entrevista no programa Via Sampa, da Rádio USP (93,7 MHz), transmitido no dia 19 de março (ouça no link acima a íntegra da entrevista). Guimarães e Camilo são professores do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
O trabalho valeu a pena. O Sino e o Relógio traz a público uma coleção de textos que dão boa noção do fazer literário no Brasil do século 19, que é marcado pela diversidade de temas, e não limitado à trama romântica, ao indianismo e à exaltação da natureza, como a crítica literária caracteriza esse período da literatura brasileira. Essa diversidade fica clara já na estrutura do livro, dividido em quatro partes temáticas: Fantástico, Histórico, Cotidiano e Intriga. A primeira parte contém textos relacionados a lendas, mitos e relatos populares, como O Sino Encantado, de Franklin Távora (1842-1888). A segunda traz narrativas que registram fatos históricos, como a invasão holandesa no Nordeste brasileiro, tema de As Duas Órfãs, de Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891). Já a terceira parte apresenta histórias ligadas à experiência urbana dos protagonistas, que se aproximam da crônica, como é o caso de Minhas Aventuras Numa Viagem de Ônibus, de Martins Pena (1815-1848). A quarta parte se refere a relatos em que predomina a subjetividade das personagens ou do narrador, como Lembra-te de Mim, de José de Alencar (1829-1877). “Claro que essas afinidades não aparecem exclusivamente em nenhuma das histórias, que de maneira geral misturam os vários registros”, escrevem os organizadores na introdução da obra.
Além da riqueza literária do chamado período romântico brasileiro, O Sino e o Relógio oferece verdadeiras raridades ao leitor. Uma delas é o conto O Grande Vaso Chinês, de Flávio d’Aguiar, escritor sobre quem nada se conhece. Sabe-se apenas que ele assinou uma crítica literária e meia dúzia de contos em diferentes edições de A Ilustração Brasileira, que podem ser enquadrados nos gêneros filosófico, regional e fantástico. Guimarães e Camilo consideram que o conto de D’Aguiar publicado no livro é um dos melhores entre sua pequena obra conhecida, “não só pelas notas de fantástico como também por certa matéria e imaginário orientalistas, bastante explorados pelo exotismo romântico europeu, mas pouco comuns na literatura brasileira da época”.
A literatura produzida por mulheres no século 19 é outro atrativo de O Sino e o Relógio. Além de textos de escritoras conhecidas, como Nísia Floresta (1810-1885) e Maria Firmino dos Reis (1822-1917), o livro destaca contos escritos por autoras como Corina Coaracy (1858-1892), elogiada por nomes como Artur Azevedo mas hoje pouco lembrada, e Escolástica P. de L., sobre quem também nada se sabe.
Os textos anônimos presentes em O Sino e o Relógio são O Baú, que transita entre o tenebroso, o cômico e o moralizante, e Que Desgraça!, que visa ao efeito humorístico. “É curioso pensar nesse anonimato em um contexto como o romântico, que prima pela afirmação do autor, indicando que a ocultação do nome é também uma das muitas estratégias de valorização da autoria”, notam os organizadores.
No Brasil, o conto surgiu no século 19, em pleno auge do Romantismo – e por isso com ele imediatamente identificado -, como mostram os organizadores no prefácio. “O aparecimento do conto confunde-se com o da própria produção escrita que reivindica para si o status de ‘literatura brasileira’, possibilidade aberta a partir da independência do País de Portugal, em 1822, em plena vigência do ideário romântico na Europa e também nas suas colônias e ex-colônias europeias”, escrevem Guimarães e Camilo. “Por causa dessa correlação histórica, a forma breve traz em si muitas marcas do movimento romântico e ganhou forte impulso justamente nas Américas.”
No início, o conto no Brasil se caracterizou por um formato impreciso, razão por que recebeu diferentes denominações, entre elas causo, raconto, novela, noveleta, romance e romancete. “A oscilação dos termos para nomeação de histórias mais curtas que o romance e a novela mostra justamente a indefinição de um gênero que, a princípio, se alimentou de narrativas de origem incerta, transmitidas oralmente de geração a geração, acumulando versões sobre versões, até ganharem a forma mais estável da escrita”, consideram Guimarães e Camilo.
Os organizadores destacam que a pesquisa nos jornais brasileiros do século 19 revelou como foi se formando a noção do conto como gênero escrito, para ser lido. “Desde a década de 1840, há nos jornais do Rio de Janeiro os contos morais, alguns escritos em verso, que vinham sendo praticados desde o século 18 por autores franceses, como Marmontel, que tinham grande nomeada no Brasil”, escrevem. “Em geral, eram histórias curtas contendo algum conselho ou lição, caso de Os Burros, os Camelos e os Guardadores, publicado no Correio Mercantil em 13 de janeiro de 1848.” O Jornal das Famílias – registram ainda Guimarães e Camilo – manteve a partir de 1866 uma seção intitulada Romances e Novelas, talvez a primeira voltada para a publicação de narrativas curtas na imprensa brasileira.
O Sino e o Relógio – Uma Antologia do Conto Romântico Brasileiro, de Hélio de Seixas Guimarães e Vagner Camilo (organizadores), Editora Carambaia, 416 páginas, R$ 119,90.