Narrado em primeira pessoa, o romance conta o episódio de uma desastrosa troca de embrulhos feita pelo personagem Teodorico – Fotomontagem: jornal.usp.br
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A irreverência, o humor e o questionamento das verdades no cotidiano do romance A Relíquia, considerado um dos mais polêmicos de Eça de Queirós (1845-1900), vão surpreender os vestibulandos de 2018. O novo livro exigido pela Fuvest – em substituição do romance A Cidade e as Serras, do mesmo autor – é considerado um dos mais importantes do escritor português.
Para orientar a leitura, o Jornal da USP e a TV USP conversaram com Helder Garmes, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Apesar da distância temporal e do português do século 19, o leitor vai se divertir bastante com a história de Teodorico.” O professor, no entanto, faz uma ressalva: “É preciso tomar cuidado para não aderir às teses do protagonista, todas elas de alguém que não tem a menor consideração por valores sociais e coletivos.”
Lançado em 1887, o livro foi publicado na cidade do Porto, em Portugal. “É sem dúvida uma obra muito importante do autor, mas gerou uma grande polêmica, quando a Academia Real de Ciências de Lisboa abriu um concurso literário no qual o texto de Eça foi preterido”, conta Garmes. “Grande parte da crítica literária considera que A Relíquia foge um pouco ao gênero do romance realista, sobretudo por conta do episódio fantástico que ocorre no meio do livro, quando Teodorico, em sua viagem para Jerusalém, vive uma espécie de retorno para o passado e assiste pessoalmente a todo o sofrimento de Jesus Cristo, descobrindo que não ressuscitou, e sim morreu de fato.”
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O episódio, no entanto, instiga e passa. “O restante da trama do romance é marcado por uma linguagem e ações realistas, com críticas severas à Igreja, à corrupção, à manipulação da boa-fé dos indivíduos, à desfaçatez do homem capitalista do século 19, que não valoriza mais nada além de dinheiro e prestígio social, sem qualquer princípio ético. O autor narra em um tom muito leve e divertido, que ganha facilmente a simpatia do leitor.”.
O tema é a questão central da construção de verdades religiosas, sociais e políticas, que estão na pauta do nosso dia a dia.”
É essa trama de A Relíquia que compõe um retrato da sociedade contemporânea. “A decisão da Fuvest de incluir esse livro foi muito acertada, sobretudo porque tem como tema central a questão da construção de verdades religiosas, sociais e políticas, que estão na pauta do nosso dia a dia”, observa Helder Garmes.
O professor destaca que o estudante verá a realidade brasileira refletida na história de Eça. “Tem relação direta com temas como as fake news, os processos de corrupção que temos visto ocorrer no Brasil, onde cada um procura provar sua verdade, deixando de lado qualquer princípio ético, além do crescimento exponencial de religiões que manipulam seus fiéis da forma mais abjeta.”
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O leitor, com certeza, vai ter muito para refletir e criticar. Garmes faz uma síntese do enredo: “O livro narra a história de Teodorico, cujo avô era um padre e o pai, tendo se beneficiado dessa influência, conseguira um bom emprego, o que lhe possibilitou transitar em um meio social endinheirado e casar-se com uma das filhas do comendador Godinho. No entanto, a mãe de Teodorico morre logo após o parto, seguida pelo avô e pelo seu pai. O menino fica totalmente órfão aos sete anos de idade. Vai morar com a tia, Dona Maria do Patrocínio, mulher muito devota. Passa a ter uma educação religiosa, que nada se coaduna com sua personalidade.”
Teodorico faz uma falsa coroa de espinhos para entregar como relíquia à tia.”
Teodorico sonha em conhecer Paris, porém, sua tia considerava aquela cidade como um lugar de perdição. “Para conseguir maior liberdade, resolve propor que a tia, ou Titi, financiasse uma peregrinação para Jerusalém. A beata consente e lhe pede para que traga uma relíquia”, conta Garmes. “Nessa viagem, conhece a inglesa Miss Mary, com quem tem um caso. Quando se separam, ainda no meio da viagem, ela lhe dá de presente sua camisola embrulhada em um pacote.”
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A peregrinação continua. “Teodorico faz uma falsa coroa de espinhos para entregar como relíquia à tia. No meio do caminho, uma mendiga pede uma esmola e o rapaz entrega a camisola. Mas, quando chega em Portugal, há uma grande cerimônia pública para a entrega da coroa de espinhos. Porém, a tia, ao abrir o pacote, se depara com a camisola. Titi fica humilhada e rompe relações com o sobrinho, deserdando-o de toda a fortuna da família.”.
O protagonista aprende o valor de uma coroa de espinhos. Mas nem tanto. Lamenta por não ter dito que a camisola era de Maria Madalena. “Teodoro chega à conclusão de que, se tivesse afirmado a mentira com a devida convicção, todos acreditariam nele, pois as verdades são feitas somente de convicções fortes e nada mais”, diz Garmes. “Com isso, suprime a ética como um bem social, ou seja, a necessidade de um conjunto de valores, regras, preceitos, importantes para se viver bem e em paz na sociedade.”
O livro A Relíquia, de Eça de Queirós, está disponível para download em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000017.pdf
Para quem prefere a edição impressa do livro, há a publicação da Ateliê Editorial, com apresentação e notas de Fernando Marcílio Lopes Couto e ilustrações de Marco Aurélio Silva S. de Aragão, com 368 páginas. Preço: R$ 35,60.
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