Técnicas ajudam a elucidar mortes de animais com suspeitas de maus-tratos

Estudo com cães e gatos exumados atesta eficiência de métodos para estabelecer a causa da morte de animais. Pesquisadoras envolvidas também ajudaram nas investigações de casos de grande repercussão conhecidos como “Búfalas de Brotas” e “Bezerras de Cunha”

Fotomontagem com imagens de Rawpixel e Wikimedia Commons

 03/11/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Valéria Dias

Arte: Rebeca Fonseca

Você tem um animal de estimação e, do nada, ele morre. Alguns dias após enterrá-lo, você começa a suspeitar que a morte pode ter ocorrido em decorrência de maus-tratos. Antes de lamentar que o criminoso ficará impune, os tutores precisam saber que existe uma possibilidade de estabelecer um diagnóstico sobre a causa mortis, mesmo após o animal ter sido enterrado, ajudando, inclusive, nos casos que envolvem investigações policiais. É o que mostra uma pesquisa de mestrado da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP. Com as técnicas adequadas, foi possível estabelecer a causa da morte de seis dos oito animais exumados no estudo.

O estudo também aponta para a necessidade da criação, pelos órgãos públicos, de um instrumento de preservação e registro dos despojos, da possível cena do crime e da exumação, a chamada “cadeia de custódia”, semelhante à existente para cadáveres humanos. “A cadeia de custódia tem o intuito de conservar e garantir o nexo causal entre os fatos, atestando a originalidade da procedência das amostras ou do material a ser periciado, para evitar que seja incluído ou retirado material da amostra”, diz o texto da pesquisa.

Os resultados do estudo foram obtidos com o auxílio de diversas técnicas, como necropsia, exame histopatológico (análise microscópica dos tecidos para a detecção de possíveis lesões existentes), radiografia, tomografia computadorizada, PCR (para verificar a presença de DNA de agentes infecciosos), imuno-histoquímica (para reconhecer antígenos, identificar e classificar células específicas dentro de uma população celular), entre outras, algumas delas realizadas por pesquisadores parceiros. Quatro animais sofreram trauma (tiro por arma de fogo, facada, queimadura, trauma craniano) e dois morreram devido a doenças infecciosas (cinomose e peritonite infecciosa felina). Para dois animais, as causas da morte foram indeterminadas.

Processo de fotografia de cada crânio separadamente, junto com uma etiqueta de identificação individual - Foto: Claudia Momo

“Nós podemos pensar que esse número de oito animais é pouco, mas não encontramos nenhum outro estudo que falasse de tantos casos. Existem relatos de casos individuais, por isso a importância desse trabalho”, destaca ao Jornal da USP a professora Claudia Momo. Ela foi a orientadora da médica veterinária Celina Seiko Takenaka na dissertação de mestrado Aspectos legais e técnicos em casos de exumação em animais de companhia.

Apresentada em 2020, a pesquisa é um estudo retrospectivo e prospectivo de cães e gatos exumados recebidos para necropsia no Serviço de Patologia Animal da FMVZ entre 2008 e 2019. A veterinária fez a residência com a professora Claudia e depois entrou no mestrado. Na residência, ela acompanhou algumas das necropsias, que foram incluídas na dissertação, a partir da análise das fichas dos atendimentos.

Claudia Momo – Foto: Arquivo pessoal

Claudia conta que os quatro animais que apresentaram traumas, e que foram analisados no estudo, chegaram até o Serviço de Patologia Animal por meio de agentes públicos, como Polícia Militar, Polícia Civil ou Ministério Público. Geralmente, é o tutor quem aciona um desses agentes ao desconfiar que o animal foi morto, mas há casos em que foi feita uma denúncia anônima de maus-tratos. Depois, uma investigação é aberta, levando à exumação dos cadáveres e envio para análise na FMVZ. Toda a necropsia é documentada, com fotos e relatórios que são anexados ao processo. Os outros casos analisados chegaram ao Serviço sob demanda dos tutores.

A professora ressalta que, devido à redução do quadro de funcionários, o Serviço de Patologia realiza necropsias de animais que vierem a óbito no Hospital Veterinário da USP e de animais encaminhados pela polícia. “Não realizamos necropsia de animais de tutores particulares”, diz a professora Claudia.

“Sempre existiram maus-tratos a animais, isso não é algo novo. O que acontece é que agora, nos últimos anos, existe uma divulgação maior de diagnósticos de causa mortis e de maus tratos, além de uma quantidade maior de leis de proteção aos animais. Então, sabendo que existe uma quantidade grande de casos de animais exumados que podem ser diagnosticados, as pessoas têm uma chance maior de denunciar os casos e quem praticou esses maus tratos pode ser punido.”

Cadeia de custódia

Esse aumento de denúncias e de investigações é ótimo, afinal, animais são seres sencientes (têm capacidade de ter sensações e sentimentos de forma consciente) e precisam ser tratados eticamente. Por outro lado, tal subida na procura acabou por evidenciar um problema: a falta da manutenção da cadeia de custódia para exumação de animais, semelhante à existente para seres humanos. Tanto é que, para a realização da pesquisa, muito da bibliografia utilizada pela médica veterinária Celina Seiko Takenaka se refere à exumação de cadáveres humanos.

A ausência dessa cadeia de custódia para exumação de animais não impede que a necropsia seja realizada, porém, traria mais segurança ao processo. Celina conta ao Jornal da USP que ela e os outros residentes receberam os animais para serem periciados e não acompanharam o processo de exumação. Em uma situação ideal, eles iriam até o local onde o animal foi enterrado e poderiam acompanhar todo o processo, tirariam fotos de tudo, e até documentariam qual posição o animal estava quando foi desenterrado. “Nós apenas recebemos os cadáveres. Mas como podemos saber que aquele animal era, de fato, o animal que deveria ser periciado?”, questiona a veterinária. Por conta disso, ela sugere a criação de uma cadeia de custódia.

Celina Seiko Takenaka – Foto: Arquivo pessoal

Búfalas de Brotas e bezerras de Cunha

Na dissertação de mestrado, as pesquisadoras não conseguiram identificar a causa da morte de dois animais. De acordo com a professora, isso acontece porque estabelecer esse diagnóstico envolve uma série de fatores, como o modo como o animal morreu, a espécie animal, o estado nutricional, o tempo em que permaneceu enterrado e até mesmo do solo (que pode preservar ou adiantar a putrefação). Porém, é sempre possível exumar o cadáver, independentemente do tempo em que ele permaneceu enterrado, porque há inúmeros exames que podem ser feitos.

Um exemplo é a análise de ossadas, especificamente, da medula óssea. Em condições normais de bem-estar animal, a medula óssea de um búfalo, por exemplo, apresenta cerca de 90% de gordura. Porém, se o animal teve desnutrição e enfrentou períodos de fome seguidos, essa quantidade pode ser de apenas 2%. Em situações de fome, o corpo do animal vai utilizando a gordura interna gradualmente (dos tecidos, dos músculos, das vísceras etc.) e a da medula óssea é a última fonte que ele vai usar.

Esses 2% de gordura foi a quantidade encontrada em ossadas daquele que ficou conhecido como o caso das Búfalas de Brotas. Com repercussão internacional, é considerado por ambientalistas e ativistas como o maior episódio de maus-tratos a animais da história do Brasil.

Em novembro de 2021, algumas búfalas foram encontradas mortas em uma estrada rural de Brotas, cidade paulista a cerca de 250 quilômetros da capital. A polícia começou a investigar e descobriu uma fazenda produtora de leite de búfala com muitos animais mortos, carcaças, ossadas, além de outros vivos com desnutrição e passando fome e sede.

Além da professora Claudia Momo, também colaboraram com as investigações as professoras Daniela Bernadete Rozza, do Laboratório de Patologia da Faculdade de Medicina Veterinária da Unesp-Araçatuba; Elisa Helena Giglio Ponsano, também da Unesp-Araçatuba, e Maria Claudia Araripe Sucupira, da FMVZ-USP.

Foram feitas análises da medula óssea das carcaças, além de testes de cálcio e fósforo. Os resultados permitem saber se a alimentação dos animais era adequada, se passavam fome, mesmo se eles tivessem sido enterrados há um mês ou mesmo até mais tempo.

O processo continua em andamento e as equipes da USP e da Unesp ajudam a polícia nas investigações. Na fazenda, elas encontraram duas valas: uma com 42 animais que haviam morrido há um ou dois anos, e uma outra, com 62 búfalas, mortas há duas ou três semanas. Somando esse número a outros 15 encontrados em estágio de putrefação, além das 50 necropsias realizadas, foram aproximadamente 140 animais que haviam morrido recentemente. “Mas, até hoje, não se sabe ao certo o número total de búfalas que morreram”, diz a professora.

“Esse caso de Brotas trouxe uma evidência maior, um olhar mais crítico da sociedade e das instituições em relação aos casos de suspeita de maus-tratos a animais de produção. Estão saindo um pouco dos animais de companhia, como cães e gatos, e olhando mais para esses outros animais. As pessoas estão denunciando mais e ficando mais atentas a esse tipo de situação e de cenário, e isso é muito importante”, aponta a professora Daniela Bernadete Rozza.

Caso semelhante ocorreu em uma fazenda de bezerros na cidade de Cunha, a 230 quilômetros da cidade de São Paulo, na região leste do Estado, e que também contou com a colaboração da professora Claudia.

No início de 2022, algumas pessoas viram garrotes (filhotes bovinos entre um e três anos) mortos em uma fazenda e perto de uma estrada. Uma denúncia foi feita e a Polícia Civil conseguiu um mandado de busca e apreensão. O delegado da cidade entrou em contato com a professora Claudia e ela foi para lá. Encontraram uma vala com 11 animais mortos, sendo que nove haviam morrido naquela semana. Dos outros dois encontraram somente as ossadas. Alguns animais estavam mortos no pasto. Os vivos estavam mal-nutridos, magros e doentes.

Daniela Bernadete Rozza – Foto: Arquivo pessoal

Claudia conta que havia um morro no lugar e, ao descerem por ele, encontraram muitos ossos e cadáveres. Ela acredita que os animais morriam e eram jogados lá, e a água da chuva ia levando as carcaças morro abaixo. Somente neste local, foram encontrados oito cadáveres bovinos. De fevereiro para cá, já fizeram 21 necropsias nesses animais.

Risco ambiental das valas inadequadas

A professora Claudia explica que os cadáveres de animais precisam ser enterrados longe de fontes de água, como açudes, rios, sejam elas potáveis ou não. Há o risco de contaminação do lençol freático, de outros bovinos e de cães. É preciso escolher um local longe dessas fontes, cavar um buraco de mais de um metro de profundidade (para evitar que cachorros cavem), jogar cal (que além de esterilizar o ambiente, é um componente de baixo custo) e depois cobrir com terra. Também é recomendável cercar o local. “Bovinos em deficiência nutricional podem querer roer ossos e, se isso ocorrer, pode haver contaminação pela toxina da bactéria causadora do botulismo”, alerta a professora.

Ela diz que, em Brotas, foram encontrados 62 cadáveres de animais que haviam morrido recentemente. Foi então enviado um pedido para a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) para se fazer uma compostagem, procedimento que permite uma aceleração do processo de decomposição para que sobrem apenas os ossos dos cadáveres e que esses ossos sejam guardados depois em uma instalação fechada.

Segundo a professora Claudia, uma coisa que chama a atenção nos dois casos é que, além da quantidade de mortes ser muito grande, elas ocorreram em um período muito curto de tempo. O aceitável é que 1% dos animais morram ao longo de um ano. No caso da fazenda de Brotas, que tinha cerca de mil búfalas, 10% de mortes em um único mês é um indicativo de que há algo muito errado. Atualmente, as búfalas e os bezerros sobreviventes estão sob tutela de ONGs.

Mais informações: e-mail cmomo@usp.br, com a professora Claudia Momo


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