Pesquisa realizada pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP mostra que a palavra “nordestino” está impregnada de preconceito e de construções sociais que levam alguns brasileiros de outros Estados a enxergarem os migrantes do Nordeste como “seres inferiores” – crença totalmente infundada e que remete aos piores episódios de perseguição da história, tendo por base a ideologia eugenista de que supostamente a biologia poderia selecionar os “melhores” membros da raça humana.
Expressões como “cabeça chata”, designação para má aparência; “baiano” ou “paraíba”, indicativos de que alguém fez algo errado; e “mulher macho”, para mulheres paraibanas ou nordestinas, que seriam desprovidas de uma idealizada “feminilidade”, são algumas das condenáveis alcunhas que lhes atribuem valor negativo nas metrópoles do Sul e Sudeste. A pesquisa propõe uma reflexão sobre o assunto e a desconstrução dessa percepção generalista do migrante do Nordeste, fato que dificulta ainda mais a vida desse povo que muitas vezes deixou sua terra em busca de uma vida melhor.
“As migrações não devem ser estudadas apenas de um ponto de vista ou por uma via homogeneizadora porque os fluxos migratórios são sempre complexos, heterogêneos e diversos”, afirma ao Jornal da USP a pesquisadora Valéria B. Magalhães, coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória da EACH e autora de um levantamento feito a partir de pesquisas sobre o tema, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No levantamento, Valéria priorizou pesquisas feitas com entrevistas em profundidade, em especial as de história oral, método que vem estudando há vários anos. Segunda a pesquisadora, as entrevistas de história oral ajudam a detectar com mais precisão a complexa realidade social dos migrantes.
Segundo a pesquisadora, visões generalistas colocam no mesmo grupo dos “aqueles nordestinos”, de maneira pejorativa, todos que vieram do Piauí, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando o fato é que “cada um desses povos traz consigo a história e a cultura peculiar de sua região”, diz.
Valéria afirma que o preconceito não acontece somente nas relações sociais do local de destino dos migrantes e dos encontros cotidianos privados, mas é reforçado por declarações ofensivas e xenofóbicas de alguns políticos que acabam por legitimar atitudes de preconceito. A pesquisadora lembra da visita que o presidente Jair Bolsonaro fez à Bahia, em 2019, para inauguração de uma usina em Sobradinho. Em vídeo gravado junto com um deputado o presidente justifica o aumento de sua frequência de suas viagens à Bahia: “Segunda vez que vem à Bahia, várias vezes já no Nordeste, cê tá virando um cabra da peste?”, pergunta o deputado no vídeo. “Só tá faltando crescer um pouquinho minha cabeça”, responde Bolsonaro, rindo. A frase se refere ao estereótipo de que o nordestino tem a “cabeça grande e chata”. Para a pesquisadora, o fato de as declarações virem do presidente só piora a situação porque ele acaba legitimando e estimulando comportamentos xenófobos da sociedade mais ampla.
Saindo da esfera pública para a privada, o estereótipo construído em torno do migrante dessas regiões brasileiras é o de um ser humano inferior, ignorante, feio e sem capacidade de exercer atividades laborais intelectualizadas. Nas grandes cidades, sobram para eles os trabalhos informais, os serviços domésticos, a fábrica e a construção civil. Segundo a pesquisadora, o preconceito pode ser percebido em todo lugar, mas foi nos bairros da Zona Leste paulistana que o estudo se debruçou e trouxe mais detalhes sobre o assunto.
Zona Leste de São Paulo
A partir dos anos 1960, a região acabou sendo destino de muitos dos que vinham do Nordeste em virtude da melhor oferta de infraestrutura de transporte coletivo (rede ferroviária), de moradia mais barata e da presença de algumas indústrias empregadoras. Os pontos de chegada eram a Hospedaria dos Imigrantes (hoje, Museu do Imigrante, R. Visconde de Parnaíba, 1.316 – Mooca) e a Estação do Brás. Alguns ficavam em pensões, em casa de amigos, de parentes e outros ficavam expostos aos atravessadores que, da própria Estação do Brás, os conduziam para subempregos e trabalhos braçais.
Entre a década de 1970 e 1990, a Praça Sílvio Romero, no Tatuapé, ficou conhecida como ponto de encontro dos nordestinos. O lugar era “uma extensa rede de comunicação entre o sertão baiano e a cidade de São Paulo” para troca de bens entre os que chegavam e os que iam para seus Estados de origem. Os que voltavam, levavam objetos que simbolizavam sucesso migratório (eletroeletrônicos, por exemplo) e os que vinham traziam produtos típicos de suas terras (doces, compotas, frutas e outros alimentos). Cartas chegavam e iam também com notícias de cada lugar.
A professora Valéria lembra ainda que o início das migrações do Nordeste para o Sudeste data do começo do século 20, sendo a década de 1930 o marco de sua intensificação. Esses movimentos perpassaram todo o século, chegando ao 21 com uma grande diversidade de fluxos migratórios e contextos diversificados que explicariam a heterogênea presença nordestina no Sudeste.
Mais informações: e-mail gephom@gmail.com com Valéria Barbosa de Magalhães.