Arte Jornal da USP sobre foto de Cecília Bastos/USP Imagens e infografia MS
O tratamento da leucemia mieloide aguda, um tipo de câncer agressivo que afeta as células sanguíneas, é feito comumente por meio da quimioterapia e do transplante de medula óssea. Por ser uma doença que atinge majoritariamente pessoas acima de 60 anos, essas formas de tratamento são muitas vezes inviáveis. Mas cientistas da USP descobriram uma proteína que pode ser chave para um tratamento menos agressivo e acessível aos pacientes idosos.
O estudo Comprehensive analysis of cytoskeleton regulatory genes identifies ezrin as a prognostic marker and molecular target in acute myeloid leukemia feito por pesquisadores do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP foi publicado na revista Cellular Oncology, da SpringerNature. Foi coordenado pelo professor João Agostinho Machado-Neto, biólogo e pós-doutor em clínica médica, e conduzido pelos pesquisadores Jean Carlos Lipreri da Silva, primeiro autor do artigo, Juan Luiz Coelho-Silva e Fabiola Traina.
A proteína ezrina foi identificada pela pesquisa como um marcador de evolução da doença, ou seja, a sua expressão nas células tumorais leva a um pior prognóstico do paciente. Quando inibida, a célula leucêmica entra em apoptose, que é a morte celular programada, possibilitando o controle do câncer.
A doença
De causas diversas, a leucemia mieloide aguda (LMA) é uma doença que afeta os leucócitos, que são os glóbulos brancos do sangue. Começa na medula óssea e evolui com a rápida substituição das células sanguíneas normais por células cancerosas. A medula óssea, tecido encontrado no interior dos ossos, tem a função de produzir as células sanguíneas e, por isso, o transplante faz parte do repertório de tratamento da doença.
Todas as células do organismo possuem citoesqueleto, que é a estrutura que confere formato e funções biológicas importantes à célula, como se fosse nosso esqueleto do corpo humano. A ezrina integra um grupo de proteínas responsáveis por ligar os filamentos de actina (microfilamentos do citoesqueleto) à membrana plasmática. A proteína é importante para o movimento celular e a manutenção da morfologia e estrutura da superfície da célula.
Ela pode agir como oncogene (gene ligado ao surgimento de tumores) e já foi associada com outros tipos de câncer. Segundo o pesquisador João Agostinho Machado-Neto, até então, não existia nenhum estudo que relacionava o gene EZR, codificador da proteína, com a leucemia. “Nosso estudo identificou que a expressão da proteína é capaz de predizer quão grave é a doença, qual paciente vai mais ao óbito e qual vai ao óbito mais rápido”, explica ao Jornal da USP.
Além disso, a LMA tem uma sobrevida, que é o tempo que o paciente vive após o diagnóstico, muito baixa e poucos pacientes respondem bem à terapia convencional. De acordo com o Observatório de Oncologia, 36% dos óbitos de leucemia entre 2008 e 2017 ocorreram por conta da leucemia mieloide aguda e a doença representa cerca de 80% das leucemias agudas do adulto, sendo mais comum em pessoas com mais de 60 anos.
João Agostinho Machado-Neto – Foto: Arquivo pessoal
Medicamentos que atuam no citoesqueleto são usados contra o câncer há algum tempo, mas agem tanto nas células normais quanto nas células tumorais. O estudo de genes e proteínas de células tumorais que se diferem dos das células normais pode servir para a criação de terapias que causem o mínimo de dano possível em uma célula normal. O que é ideal para boa parte dos pacientes que não respondem bem aos outros tratamentos. “Nosso objetivo é sempre ampliar o repertório de tratamento disponível para que o paciente nunca volte para casa falando que não existe nenhuma opção. Nós queremos mudar esse cenário oferecendo novas opções”, afirma o pesquisador.
O estudo
Com o auxílio da plataforma The Cancer Genome Atlas (TCGA), uma iniciativa global de troca de informações sobre câncer, os cientistas investigaram 84 genes que regulam o citoesqueleto. “Desses 84, nós verificamos quais conseguiam predizer maior risco ao paciente. Então, buscamos identificar qual gene confere um pior prognóstico. Chegamos em quatro genes e, desses, nós nos interessamos pelo gene chamado EZR”, explica Machado-Neto.
Um dos motivos pela escolha do gene codificador da ezrina para o estudo foi a possibilidade de utilizar compostos químicos já existentes para inibir o gene e a expressão da proteína, possibilitando a testagem dessas moléculas no controle da doença. “Quando testamos esses inibidores em modelos de células humanas de leucemia, vimos que eles foram capazes de reduzir a proliferação celular e levar à morte das células leucêmicas”, destaca o professor. Esses inibidores são compostos químicos que existem para venda somente para a pesquisa, sem nenhuma formulação para uso clínico.
De molécula inibidora até medicamento para uso comum, existem ainda muitas etapas. Os pesquisadores já fizeram uma etapa importante, que foi identificar que a molécula funciona para o tratamento da doença.
Machado-Neto afirma que ainda pode levar alguns anos para o tratamento estar disponível para os pacientes. Depois de identificar que a molécula funciona, são feitos testes de toxicidade em animais. Essa é a próxima etapa do estudo, que pode levar de 2 a 4 anos. “São vários testes, feitos com diferentes concentrações e diferentes períodos de tempo para ter a certeza de que o inibidor é seguro”, explica.
Jean Carlos Lipreri da Silva – Foto: Arquivo pessoal
Após isso, ocorre o ensaio clínico de fase 1, quando testam se a molécula é segura para seres humanos, de modo que pacientes com leucemia recebem o composto em estudos experimentais. “Sendo segura para seres humanos, entramos no ensaio clínico de fase 2, com o objetivo de avaliar se o paciente melhora após a utilização da molécula.”
Por fim, ocorre o ensaio clínico de fase 3, que determina se esse novo tratamento é melhor que o já existente. Todas essas etapas também podem levar de 2 a 4 anos para serem concluídas. O processo todo pode durar de 8 a 12 anos. “São etapas, pois de nada adianta você matar o tumor se você leva a qualidade de vida da pessoa embora”, aponta o pesquisador.
Além disso, como o estudo é o primeiro a utilizar esses inibidores como forma de tratamento, a partir do momento que for demonstrado que o fármaco é seguro para seres humanos, ele vai poder ser usado para qualquer outro tipo de câncer que tenha a ezrina como marcador de evolução. “Nós começamos a testar esses fármacos em outros modelos de câncer e já temos dados muito promissores”, ressalta Machado-Neto.
Mais informações: e-mail jamachadoneto@usp.br, com João Agostinho Machado-Neto