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Fotomontagem por Adrielly Kilryann/Jornal da USP
Olhar masculino pautou a imprensa negra do início do século 20 defendendo mulher dedicada ao lar
Contra o racismo e por “elevação de classe”, o modelo idealizado por homens se afastava da realidade das mulheres negras, pela dificuldade de acesso à educação, necessidade de trabalhar e forte presença delas no movimento negro. Discurso muda no final da década de 1920
No começo do século 20, a imprensa negra na cidade de São Paulo propunha a superação do preconceito racial por meio da “elevação de classe”, defendendo que as mulheres adotassem uma postura respeitável, dedicadas principalmente ao lar e à educação dos filhos. Uma pesquisa da Faculdade de Educação (FE) da USP, realizada a partir da análise de jornais da época, mostra que esse modelo idealizado por homens estava distante da realidade vivida pelas mulheres negras, pela dificuldade de acesso à educação e a necessidade de trabalhar para sustentar a família, o que levou ao início da mudança desse discurso no final da década de 1920. Além disso, havia mulheres com forte presença no movimento negro, criando e dirigindo suas próprias organizações, enfrentando diretamente o racismo, além de participarem ativamente dos ambientes de lazer e sociabilidade.
Foram analisados jornais da imprensa negra paulistana, publicados entre 1889 e 1929, encontrados em arquivos de São Paulo, mas o trabalho se concentra nas publicações a partir de 1907, quando foi possível identificar as primeiras figuras femininas nas páginas dos periódicos. “A princípio, o objetivo do estudo era entender como os jornais atuavam como educadores dentro do meio negro em São Paulo entre 1889 e 1930”, relata ao Jornal da USP a historiadora e mestra em educação Bianca Amorim, que realizou a pesquisa. “No entanto, ao me debruçar sobre as fontes propriamente ditas, notei que havia essa lacuna entre o que é possível encontrar nos jornais sobre as atuações de mulheres negras e o que a historiografia nos relata sobre o período.” O trabalho teve orientação da professora Ana Luiza Jesus da Costa.
Bianca Amorim - Foto: Arquivo pessoal
De acordo com Bianca, a partir desse momento, o estudo buscou compreender como os jornais atuavam para educar o comportamento feminino e como as mulheres negras atuavam junto ao meio negro e à imprensa negra. “É o tipo de comportamento que hoje poderia ser bem resumido por ‘bela, comportada e do lar’. A maioria desses jornais, e parte significativa dos autores independentes que enviaram suas contribuições para os periódicos, defendiam que a principal função das mulheres era serem boas esposas e, especialmente, boas mães”, aponta. “Elas não deveriam trabalhar para fora ou, se o fizessem, deveriam ocupar cargos que não envolvessem o trabalho físico; deveriam ser educadas para educarem bem os filhos e atraírem bons maridos; e também se comportar de maneira modesta e irrepreensível em ambientes públicos ou de sociabilidade do meio negro.”
Ao todo, foram analisados 13 periódicos, localizados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, no Arquivo Público do Estado de São Paulo (Aesp) e na Biblioteca Nacional (BN), no Rio de Janeiro. “A bandeira de ‘união’ da ‘classe dos homens de cor’ defendia que os negros e negras de São Paulo se organizassem em torno das pautas dos jornais, já que a sociedade julgava o comportamento de todos os negros através do comportamento de uma ou outra pessoa”, afirma Bianca. “Então, para negociar o respeito nesse mundo racista, os jornais necessitavam que todos exibissem um comportamento exemplar. Isso vale para o caso das mulheres, também.”
"Elevação da classe"
De acordo com a historiadora, os redatores consideravam que qualquer mulher que apresentasse um comportamento destoante da norma, fosse falando alto, ocupando o espaço público em funções de pouco prestígio — como era o caso das lavadeiras —, ou mesmo com a barra do vestido um pouco curta demais, acarretaria o julgamento negativo da sociedade sobre todas as mulheres negras da capital e também sobre todos os homens negros com os quais elas se relacionavam, fossem pais, irmãos, maridos, etc. “A ‘elevação da classe’ ocorreria então a partir daí, como resultado dessa respeitabilidade negociada com os brancos”, ressalta. “Esses modelos defendiam que as mulheres fossem bem-educadas para educar seus filhos, e que esta seria sua principal forma de ajudar na causa naquele momento. Para isso, não poderiam trabalhar fora, e os maridos deveriam ser os únicos provedores da família.”
“Entretanto, isso não corresponde à realidade das mulheres negras no período, não só pela dificuldade imposta a essa população para acessar certos níveis mais adiantados de estudo, como também pelo número expressivo de mulheres negras que precisavam trabalhar fora de casa para contribuir para o sustento do lar”, observa Bianca. Essa realidade levou a uma mudança de discurso a partir do final da década de 1920. “A ideia de uma educação ‘espera-marido’ e uma vida dedicada a cuidar do lar e da família não se aplicava na realidade de boa parte das mulheres negras da capital. Os jornais levam alguns anos, mas começam a pensar nisso, e param de defender a imitação de um modelo de família branca e burguesa.”
Identidade racial e relações de gênero
A pesquisadora coloca que as negociações em torno de uma identidade racial também perpassavam pelas relações de gênero, nas atribuições de papel e expectativas de atuação de cada gênero dentro da sociedade. “Ao falarmos das negociações em torno da identidade racial no início do século 20, as mulheres negras ocupavam um espaço importante nas estratégias do meio negro para conquistar seus objetivos na sociedade, e consideradas indispensáveis pelos redatores dos jornais”, diz. “Nesse movimento de construção de uma identidade que vai do ‘homem de cor’ ao ‘preto’ passa também pela construção das figuras femininas, referidas por uma diversidade enorme de termos, e cada termo com seu significado particular no contexto em que é empregado.”
“Então, não podemos falar sobre a construção de um movimento negro sem falar sobre os papéis, sejam eles os atribuídos às mulheres negras pelos homens ou aqueles efetivamente desempenhados por elas nesse movimento”, fala Bianca. “E esses papéis eram diferentes porque, como os próprios jornais nos mostram e tento também apresentar ao leitor em meu trabalho, as mulheres negras ocupavam espaço no meio negro, participavam ativamente dos ambientes de lazer e sociabilidade, se organizavam e dirigiam sociedades ativas nesse meio, e não se resignaram em ser a estratégia discursiva dos homens no enfrentamento a um preconceito que também as afetava. Elas eram sujeitos de sua própria existência e elaboravam suas estratégias e negociações de acordo com as imposições de sua própria realidade.”
Mais informações: e-mail bia.estel@gmail.com, com Bianca Amorim
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