O maestro de uma orquestra: fungo causador da podridão-vermelha controla inseto e planta para se disseminar

O fungo “Fusarium verticillioides” é responsável por orquestrar um sistema de contaminação complexo em que broca e cana-de-açúcar estão reféns em suas mãos

 14/06/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 16/06/2021 as 18:58
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Fotos: Heraldo Negri de Oliveira

 

Infestações por pragas e fungos na cultura de cana-de-açúcar são uns dos maiores problemas enfrentados pelo setor sucroalcooleiro e, frequentemente, ocorrem em conjunto. A podridão-vermelha, causada pelo fungo Fusarium verticillioides, e a broca da cana-de-açúcar, por exemplo, estão quase sempre em associação. Acreditava-se que a broca abria o caminho para o fungo contaminar a cana, mas pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, numa descoberta inovadora, apontam que a relação entre os dois é muito mais íntima do que parece e o fungo é o maestro de todo esse esquema. 

Até então, entendia-se que o fungo F. verticillioides era oportunista, ou seja, se aproveitava dos buracos feitos pelo inseto Diatraea saccharalis (broca da cana-de-açúcar) nos colmos da cana para infestar a planta. No entanto, o trabalho Fungal phytopathogen modulates plant and insect responses to promote its dissemination, publicado no The ISME Journal, revista da International Society for Microbial Ecology publicada pelo grupo Nature, revelou que a verdade não é bem essa. Resultado de sete anos de pesquisa das equipes dos professores Marcio de Castro Silva Filho, do Laboratório de Biologia Molecular de Plantas, e José Maurício Simões Bento, do Laboratório de Ecologia Química e Comportamento de Insetos, ambos da Esalq, o estudo aponta que o fungo F. verticillioides manipula a broca e a planta para conseguir se disseminar na maior escala possível. 

Relação do fungo com a broca da cana-de-açúcar

Todas as plantas possuem defesas naturais que resistem a diversos tipos de infestações e o fungo F. verticillioides não consegue, sozinho, infestar a cana-de-açúcar. Ele precisa de um facilitador para conseguir contaminá-la, uma vez que a planta saudável tem em mãos mecanismos estruturais e bioquímicos para resistir à penetração do fungo. Em um ambiente em que há a presença dele, por exemplo, mas não há a presença da broca, a contaminação da cana pelo fungo é dificultada.

Diferentemente de outros fungos, o F. verticillioides possui a vantagem de uma interação íntima com a broca da cana-de-açúcar, o que permite a sua dispersão de forma potencializada. Ele produz compostos voláteis que atraem fortemente a D. saccharalis e quando consumidos, infecta a lagarta e se torna parte do ciclo de vida dela, permanecendo até na geração seguinte, mesmo com a ausência do fungo.

 “Assim que a broca se torna adulta, como mariposa, o fungo é transmitido para seus descendentes, que continuam o ciclo inoculando o fungo em plantas saudáveis”

Esse fenômeno é conhecido como transferência vertical, um acontecimento raro no reino biológico e o primeiro caso registrado em uma interação fungo-inseto. O professor Marcio de Castro Silva Filho, do Departamento de Genética da Esalq e um dos responsáveis por essa descoberta, explica que “assim que a broca se torna adulta, como mariposa, o fungo é transmitido para seus descendentes, que continuam o ciclo inoculando o fungo em plantas saudáveis”. 

 

Arte: Jornal da USP

 

Dessa forma, a lagarta se torna não uma facilitadora para a penetração do fungo na planta, como se pensava anteriormente, mas o próprio vetor dele. Um dos experimentos do estudo mostrou, por exemplo, que ao colocar o F. verticillioides e a lagarta junto à cana, a distribuição dele pela planta é dez vezes maior do que se o fungo estivesse somente com o auxílio de uma perfuração mecânica na cana. 

A lagarta, apesar de não ter nenhum benefício direto nessa interação, também não é prejudicada pela sua associação com o fungo. O F. verticillioides permanece na broca durante todo o seu ciclo de vida sem interferir, mas ele, em contrapartida, é imensamente beneficiado com essa relação. 

Interação fungo-planta  

Ao infectar a planta, o fungo causa a podridão do colmo da cana por ser um patógeno necrotrófico, ou seja, que destrói os tecidos vegetais por meio da liberação de toxinas. A infestação causa uma redução no teor de açúcar e a contaminação do caldo da cana, o que prejudica a qualidade e o rendimento do produto. Segundo dados do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), a contaminação dos canaviais pela associação do fungo com o inseto causa prejuízos anuais na faixa de R$ 5 bilhões, ou seja, cerca de 400 mil toneladas de cana deixam de ser moídas por ano.

Além disso, o fungo altera a composição dos compostos voláteis produzidos naturalmente pela planta de forma a fazê-la produzir voláteis específicos que atraem fêmeas adultas saudáveis da broca. Essas, por sua vez, realizarão a oviposição em plantas não contaminadas de modo a potencializar a dispersão do fungo. O professor do Departamento de Entomologia e Acarologia da Esalq e também coordenador da pesquisa, José Maurício Simões Bento, afirma que esses voláteis “reduzem a eficiência de parasitismo do inimigo natural da broca da cana-de-açúcar, a vespinha Cotesia flavipes, dificultando o controle biológico, pois, por conta da planta mudar a composição de voláteis, a vespa tem mais dificuldade para encontrar a lagarta nas plantações”. 

A forma como o fungo, auxiliado pela broca, se dissemina nos canaviais reforça a necessidade de atenção redobrada no controle biológico desde as infestações mais baixas da doença, para, desse modo, reduzir ao máximo a população da broca da cana, D. saccharalis, uma vez que ela é a vetora da doença. Para isto, explica o professor Simões, “as infestações da praga devem ser mantidas sempre que possível em baixas infestações, tanto por meio do parasitoide larval (Cotesia flavipes), quanto pelo parasitoide de ovos (Trichogramma galloi)”.

Interação fungo-planta-inseto

O fungo criou uma estratégia praticamente perfeita para a sua disseminação, em que ele controla o inseto nas fases de lagarta e adulta (mariposa), além de manipular a planta, o que o torna, nas palavras do professor Castro Silva, o “grande maestro de uma orquestra”.

Arte: Jornal da USP

 

Mais informações: e-mail  jmsbento@usp.br, com José Maurício Simões Bento, e e-mail mdcsilva@usp.br, com Marcio de Castro Silva Filho


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