Estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP na cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre, mostra que as crianças que tiveram malária recente ou episódios repetidos têm risco aumentado para desenvolverem anemia aos dois anos. Já a malária na gestação foi associada a baixos níveis de hemoglobina materna, diminuição de peso e comprimento ao nascer. Uma única ocorrência de malária transmitida pelo Plasmodium vivax (veja box abaixo) foi suficiente para impactar estes resultados, sendo que os episódios repetidos tiveram efeito negativo mais pronunciado no peso e na hemoglobina materna.
Os resultados estão descritos no artigo Low-level Plasmodium vivax exposure, maternal antibodies, and anemia in early childhood: population-based birth cohort study in Amazonian Brazil, publicado no dia 15 de julho na revista científica PLOS Neglected Tropical Diseases. A pesquisa foi realizada pela bióloga Anaclara Pincelli com orientação do professor do ICB Marcelo Urbano Ferreira.
Os achados da pesquisa ajudam a derrubar o mito de que a malária vivax seria uma infecção relativamente “benigna” na gravidez e na primeira infância na Amazônia e servem de alerta aos gestores públicos para a necessidade de um maior controle da doença na região, com a intensificação do monitoramento da malária em gestantes e parturientes.
Segundo os pesquisadores, a anemia na infância é uma condição preocupante. Na maioria dos casos, está associada à deficiência de ferro e pode comprometer o desenvolvimento físico e neurológico, principalmente quando ocorre dos nove meses aos dois anos de idade.
Entenda a malária
A malária é uma doença parasitária causada pelos protozoários Plasmodium vivax e P. falciparum. Há ainda outros dois tipos: P. ovale não é transmitido no Brasil; já o P. malariae existe, mas é raro.
Os sintomas são: calafrios, febre alta, tremores. Entretanto, a malária assintomática já é uma realidade no Brasil: o indivíduo infectado sente-se completamente saudável e não apresenta sintomas.
É transmitida aos seres humanos através da picada da fêmea infectada do mosquito Anopheles. Porém, ao nascer, os mosquitos não carregam em si os plasmódios. Eles se infectam ao picar uma pessoa já infectada e que não está em tratamento.
Ao entrar na corrente sanguínea, o plasmódio vai para o fígado, onde invade os hepatócitos e se multiplica. No caso de P. vivax, pode ocorrer de alguns parasitos ficarem “hibernando” e começarem a se desenvolver apenas meses depois, dando início a um novo ciclo da doença.
Projeto MINA-Brasil
Os pesquisadores utilizaram dados envolvendo 1.539 crianças acompanhadas desde 2015 pelo Projeto MINA Brasil (Saúde e Nutrição Materno-Infantil no Acre), coordenado pela professora Marly Augusto Cardoso, do Departamento de Nutrição da FSP.
Realizado em Cruzeiro do Sul, no Acre – uma das cidades com maior incidência de malária no Brasil -, o MINA-Brasil é um acompanhamento de longo prazo (coorte) de mães e seus bebês para avaliar aspectos da saúde e da nutrição, desde a concepção até os mil dias de vida (270 da gestação + 365 do primeiro ano + 365 do segundo ano de vida).
Marly Augusto Cardoso – Foto: Arquivo Pessoal
O período é considerado uma “janela de oportunidades” para uma série de intervenções importantes que podem melhorar o perfil de saúde da criança na adolescência e na vida adulta. A iniciativa integra o Projeto Temático Estudo MINA – materno-infantil no Acre: coorte de nascimentos da Amazônia Ocidental Brasileira, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
“A malária vivax no Brasil tem impacto na saúde infantil nos dois primeiros anos de vida. Esse dado tem sido subestimado e foi obtido a partir de um estudo de base populacional e longitudinal, algo inédito no País”, destaca Marly Cardoso.
Doença negligenciada
“Em outro estudo [disponível neste link] observamos que na Amazônia a malária vivax na gravidez não é benigna. A grande questão a ser discutida é que, mesmo com alguns artigos sobre isso, a doença continua sendo negligenciada”, alerta a bióloga Anaclara Pincelli, doutoranda do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
Em entrevista ao Jornal da USP, Anaclara diz que o principal informação trazida em sua pesquisa é o efeito cumulativo da infecção por malária vivax clínica (aquela com sintomas e que foi detectada em testes de laboratório) e suas implicações na saúde da criança nos primeiros mil dias de vida. “Um único episódio de malária vivax é suficiente para trazer esses efeitos negativos e episódios repetidos têm um efeito ainda mais grave”, diz. Ela conta que chegou a encontrar uma criança que, antes dos dois anos, já havia tido nove episódios de malária.
Anaclara Pincelli – Foto: Arquivo Pessoal
A professora Marly conta que, nessa população, a malária vivax é um fator adicional para o risco de anemia, comprometendo todo esse capital humano, pois vai impactar o desenvolvimento dessas crianças, o desempenho na vida escolar e a força de trabalho dos futuros adultos. “Por isso, é muito importante não apenas corrigir a anemia nessa fase da vida, mas também suas causas, que, neste caso, não são apenas alimentares mas incluem o impacto da malária.”
Do ponto de vista alimentar, Marly destaca alguns achados observados em estudos anteriores do Projeto MINA. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade. A professora explica que, apesar de o leite materno ter pouca quantidade de ferro, ele é altamente biodisponível. Mas, em Cruzeiro do Sul, foi observada a introdução de outros alimentos precocemente já no primeiro mês de vida, como o uso de leite de vaca e fórmulas infantis que não oferecem os fatores imunológicos e outros biocompostos presentes no leite materno que são necessários ao bebê nessa fase.
“Outros trabalhos do grupo com essa mesma coorte indicam que cerca de 80% dos bebês com menos de um ano recebiam algum alimento ultraprocessado, como refrigerante, salgadinho e macarrão instantâneo, entre outros, que não são recomendados para menores de dois anos de idade”, alerta a professora.
Pesquisadoras que participam do Projeto MINA-Brasil em um posto de saúde de Cruzeiro do Sul, no ano de 2021 – Foto: Divulgação
Malária e anemia
A malária é um fator de risco para a anemia porque o plasmódio invade as hemácias e depende de nutrientes, como ferro, para sua multiplicação, o que leva à perda desse elemento pelo organismo. E crianças dependem muito de ferro para o seu desenvolvimento. “Uma das problemáticas do P. vivax são os casos repetidos, que acabam agravando a anemia porque a pessoa infectada acaba não tendo tempo de se recuperar do primeiro episódio”, diz Anaclara. Todas as crianças do projeto diagnosticadas com anemia receberam tratamento com sulfato ferroso pela equipe de pesquisa em parceria com a Estratégia Saúde da Família do município de Cruzeiro do Sul.
Em outro estudo, o grupo de pesquisadores ainda constatou que 40% das mães apresentaram anemia no parto – uma ocorrência muito alta, que revela um problema sério de saúde pública, tanto para as mães como para os bebês. “No final da gravidez elas estavam anêmicas. Esse é um dado importante para a atenção primária à saúde reforçar ações como o acompanhamento do pré-natal, pois além do risco de a criança nascer com reservas inadequadas de ferro, a anemia na gravidez é importante fator de risco para a mortalidade materna”, alerta Marly.
Fazer o teste diagnóstico para malária em áreas endêmicas, independentemente da paciente ter ou não sintomas, durante o pré-natal, bem como nas parturientes, é uma estratégia para controlar a doença – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
De acordo com a professora, a pesquisa traz evidências importantes que poderiam ser usadas pelos gestores de saúde pública. “A malária vivax no Brasil tem impacto na saúde infantil nos dois primeiros anos de vida. Esse dado tem sido subestimado e foi obtido a partir de um estudo de base populacional e longitudinal, algo inédito no País”, destaca.
Marly ressalta que o Guia da Atenção Básica do Pré-Natal do Ministério da Saúde recomenda fazer o teste diagnóstico para malária em áreas endêmicas, independentemente da paciente ter ou não sintomas, durante o pré-natal, bem como nas parturientes.
“Nós não analisamos este dado neste trabalho, mas temos a informação de que isso não tem sido feito rotineiramente em Cruzeiro do Sul, tanto no setor público como no privado”, diz a pesquisadora. “Esta pesquisa reforça a necessidade de implementar essas ações já previstas, de modo que seja feito o tratamento e o monitoramento dessas infecções na gestação e no parto”, conclui.
Mais informações: e-mails muferrei@usp.br, com Marcelo Urbano Ferreira, anaclarapincelli@usp.br, com Anaclara Pincelli, e marlyac@usp.br, com Marly Cardoso
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