Entre 2015 e 2019, Congresso recebeu nove projetos de lei que propunham aumentar a tributação sobre as bebidas açucaradas e dois projetos de decreto legislativo que visavam a sustar um ato do Poder Executivo que indiretamente aumentou a tributação de bebidas produzidas por grandes empresas que atuam na Zona Franca de Manaus - Foto: aen.pr.gov.br

Fórmula do lobby das bebidas açucaradas começa na discussão dos projetos de lei

Pesquisa da Faculdade de Saúde Publica aponta que, além do financiamento de campanhas e influência em votações, lobby dos fabricantes de refrigerantes atua diretamente na tramitação de projetos sobre tributação do setor

 27/09/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 17/06/2024 às 15:32

Por: Júlio Bernardes

Arte: Simone Gomes

A indústria de bebidas açucaradas, como os refrigerantes, exerce um lobby bastante intenso e efetivo no Congresso Nacional, comprova pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. O estudo analisou os números sobre financiamento empresarial de campanhas dos parlamentares que exerceram mandato entre 2015 e 2019 e descobriu que 48 dos 81 senadores e 237 dos 513 deputados federais eleitos contaram com recursos de campanha do setor. De acordo com o trabalho, essa influência também foi atestada em votações no Congresso e pode ser vista principalmente nas dificuldades de tramitação de projetos que modificam a regulação e a tributação da indústria de bebidas.

A pesquisa avaliou se a atividade política corporativa da indústria de bebidas açucaradas e seus insumos influenciou o processo decisório sobre a tributação de bebidas açucaradas na 55ª Legislatura do Congresso Nacional, entre 2015 e 2019. “Nosso recorte teve como foco especificamente o financiamento de campanhas eleitorais e o lobby do setor junto aos parlamentares”, afirma ao Jornal da USP a pesquisadora Aline Mariath, autora do trabalho. “Além de tratarmos de um tema inédito, que é o financiamento de campanhas por indústrias de bebidas e insumos, conseguimos aproveitar a última janela de oportunidade para estudar financiamento empresarial de campanha no Brasil, pois esse tipo de contribuição foi proibido em 2015.”  Apesar da proibição, atualmente o lobby continua a ser praticado em ações como a participação de associações do setor em audiências públicas que discutem projetos de lei do interesse das empresas, como alterações na tributação.

A identificação desses grupos foi feita a partir dos bancos de dados referentes às prestações de contas eleitorais, disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Como o recorte seria para a 55ª Legislatura, para os candidatos ao Senado, como seus mandatos têm oito anos de duração, utilizamos os dados referentes às eleições de 2010, em que foram eleitos dois terços dos senadores, e as eleições de 2014, em que foi eleito um terço deles”, explica a pesquisadora. “Para os deputados federais, que têm mandatos de quatro anos, utilizamos apenas os dados das eleições de 2014. Foi feito um trabalho bastante minucioso tanto para identificar entre as empresas doadoras quais estavam relacionadas aos setores de interesse para o estudo quanto para agrupar aquelas que faziam parte de grandes grupos empresariais.”

Entre os doadores foi possível identificar, ao todo, 56 grupos empresariais que produzem bebidas açucaradas e 62 grupos que produzem açúcar e concentrados de frutas, importantes insumos para esse tipo de produto. “Essas contribuições beneficiaram 96 candidaturas ao Senado Federal e 585 à Câmara dos Deputados”, destaca Aline. “Entre os senadores eleitos, 48 contaram com recursos de campanha do setor, ou seja, quase 60% da composição da casa. Já entre os deputados federais, praticamente metade dos eleitos, 237 no total , receberam algum recurso de campanha desses grupos.”

Embora as atividades de lobby junto ao setor público ainda não sejam regulamentadas no Brasil, a Câmara dos Deputados mantém um registro de representantes de entidades, entre elas associações empresariais e sindicatos patronais. “Dentre as associações estão, por exemplo, a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir), cujos associados incluem empresas multinacionais, a Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afebras), que representa pequenas e médias indústrias, e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), que inclui algumas grandes usinas açucareiras”, aponta a pesquisadora. “Essas associações também habitualmente ocupam assento em audiências públicas que discutem propostas relacionadas a suas áreas de atuação.”

“Um ponto importante de se mencionar é que, como as atividades de lobby não são regulamentadas, não há, por exemplo, listas com todos os lobistas vinculados a empresas ou suas associações, tampouco quem são os tomadores de decisão por eles abordados individualmente, em seus gabinetes”, declara. “Isso dificulta muito o estudo da influência desses grupos de interesse nos processos decisórios em políticas públicas. A despeito disso, no estudo ficou claro que há um lobby bastante intenso e efetivo da indústria de refrigerantes em ambas as casas do Congresso.”

Lobby sem regulamentação

Aline ressalta que uma parcela significativa dos congressistas brasileiros são empresários, muitos ligados ao setor do agronegócio, e há ainda aqueles com vínculo direto com a indústria de bebidas açucaradas. “Um ponto importante de se mencionar é que, como as atividades de lobby não são regulamentadas, não há, por exemplo, listas com todos os lobistas vinculados a empresas ou suas associações, tampouco quem são os tomadores de decisão por eles abordados individualmente, em seus gabinetes”, declara. “Isso dificulta muito o estudo da influência desses grupos de interesse nos processos decisórios em políticas públicas. A despeito disso, no estudo ficou claro que há um lobby bastante intenso e efetivo da indústria de refrigerantes em ambas as casas do Congresso.”

Aline Mariath - Foto: Arquivo pessoal

Aline Mariath - Foto: Arquivo pessoal

Segundo a pesquisadora, no Congresso há uma ampla variedade de propostas legislativas com o objetivo de regular, em alguma medida, práticas da indústria de alimentos e bebidas ultraprocessados que impactam negativamente a saúde da população. “Só na 55ª Legislatura (2015-2019), por exemplo, foram identificados 84 projetos de lei nesse sentido”, salienta. “Quando se limita o recorte dessas propostas à tributação de bebidas açucaradas, foram ao todo nove projetos de lei que propunham aumentar a tributação e dois projetos de decreto legislativo que visavam a sustar um ato do Poder Executivo que indiretamente aumentou a tributação de bebidas açucaradas produzidas por grandes empresas que atuam na Zona Franca de Manaus.”

Aline relata que um desses projetos foi votado e aprovado no plenário do Senado em 10 de julho de 2018, quando 12 senadores com histórico de financiamento de campanha eleitoral por indústrias de refrigerantes que atuam na Zona Franca estavam na sessão e nove votaram a favor dos interesses do setor. “Esse dado não pode ser tomado isoladamente, os critérios que levam à tomada de decisão podem ser bastante subjetivos, e o próprio processo decisório costuma ser explicado por uma variedade de fatores. Por isso, aplicamos um método chamado Análise Qualitativa Comparativa (QCA), que busca apontar quais condições explicam um determinado desfecho”, conta. “Essa análise confirmou que contar com recursos de campanha oriundos de empresas do setor foi suficiente para os parlamentares apoiarem os interesses privados, mesmo sem ter sido identificada contrapartida política recebida por parte de parlamentares com interesse econômico no projeto, seja porque eram representantes do Amazonas ou detém operações de uma das grandes multinacionais interessadas.” Na Câmara, o projeto foi arquivado após votação simbólica em dezembro de 2018, no que foi considerada uma vitória das pequenas e médias indústrias de refrigerantes, que não atuam na Zona Franca de Manaus.

“Essa influência pode se dar não apenas nas votações. Na verdade, é muito mais provável que ela ocorra em etapas intermediárias do processo legislativo como, por exemplo, a apresentação de projetos de lei, de pareceres favoráveis ou contrários a projetos de lei em tramitação, a inclusão ou não de projetos nas pautas de discussão e deliberação de comissões e plenários”, relata a autora do trabalho. “Podem ser usadas estratégias para deliberadamente atrasar a tomada de decisão, ou ainda fazer com que um projeto não seja votado e seja então arquivado ao final de uma Legislatura.”

“Vale destacar que nenhuma dessas estratégias é ilegal, são previstas nos regimentos das casas legislativas e fazem parte do jogo político no processo legislativo. O grande desafio é conseguir mostrar que a decisão favorável a um determinado setor empresarial foi fruto do financiamento de campanha ou do lobby junto ao parlamentar”, finaliza a pesquisadora.

O estudo foi desenvolvido por Aline para o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Nutrição em Saúde Pública da FSP, sob orientação da professora Ana Paula Bortoletto Martins, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.

Mais informações: e-mail alinemariath@gmail.com, com Aline Mariath

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A indústria de bebidas açucaradas, como os refrigerantes, exerce um lobby bastante intenso e efetivo no Congresso Nacional, comprova pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. O estudo analisou os números sobre financiamento empresarial de campanhas dos parlamentares que exerceram mandato entre 2015 e 2019 e descobriu que 48 dos 81 senadores e 237 dos 513 deputados federais eleitos contaram com recursos de campanha do setor. De acordo com o trabalho, essa influência também foi atestada em votações no Congresso e pode ser vista principalmente nas dificuldades de tramitação de projetos que modificam a regulação e a tributação da indústria de bebidas. A pesquisa avaliou se a atividade política corporativa da indústria de bebidas açucaradas e seus insumos influenciou o processo decisório sobre a tributação de bebidas açucaradas na 55ª Legislatura do Congresso Nacional , entre 2015 e 2019. “Nosso recorte teve como foco especificamente o financiamento de campanhas eleitorais e o lobby do setor junto aos parlamentares”, afirma a pesquisadora Aline Mariath, autora do trabalho. “Além de tratarmos de um tema inédito, que é o financiamento de campanhas por indústrias de bebidas e insumos, conseguimos aproveitar a última janela de oportunidade para estudar financiamento empresarial de campanha no Brasil, pois esse tipo de contribuição foi proibido em 2015”. A identificação desses grupos foi feita a partir dos bancos de dados referentes às prestações de contas eleitorais, disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Como o recorte seria para a 55ª Legislatura, para os candidatos ao Senado, como seus mandatos têm oito anos de duração, utilizamos os dados referentes às Eleições 2010, em que foram eleitos dois terços dos senadores, e as Eleições 2014, em que foi eleito um terço deles”, explica a pesquisadora. “Para os deputados federais, que têm mandatos de quatro anos, utilizamos apenas os dados das eleições 2014. Foi feito um trabalho bastante minucioso tanto para identificar entre as empresas doadoras quais estavam relacionadas aos setores de interesse para o estudo quanto para agrupar aquelas que faziam parte de grandes grupos empresariais” Entre os doadores foi possível identificar, ao todo, 56 grupos empresariais que produzem bebidas açucaradas e 62 grupos que produzem açúcar e concentrados de frutas, importantes insumos para esse tipo de produto. “Essas contribuições beneficiaram 96 candidaturas ao Senado Federal e 585 à Câmara dos Deputados”, destaca Aline. “Entre os senadores eleitos, 48 contaram com recursos de campanha do setor, ou seja, quase 60% da composição da casa. Já entre os deputados federais, praticamente metade dos eleitos, 237 no total , receberam algum recurso de campanha desses grupos”. Embora as atividades de lobby junto ao setor público ainda não sejam regulamentadas no Brasil, a Câmara dos Deputados mantém um registro de representantes de entidades, entre elas associações empresariais e sindicatos patronais. “Dentre as associações estão, por exemplo, a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir), cujos associados incluem empresas multinacionais, a Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afebras), que representa pequenas e médias indústrias, e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), que inclui algumas grandes usinas açucareiras”, aponta a pesquisadora. “Essas associações também habitualmente ocupam assento em audiências públicas que discutem propostas relacionadas a suas áreas de atuação”. Lobby sem Regulamentação Aline ressalta que uma parcela significativa dos congressistas brasileiros são empresários, muitos ligados ao setor do agronegócio, e há ainda aqueles com vínculo direto com a indústria de bebidas açucaradas. “Um ponto importante de se mencionar é que, como as atividades de lobby não são regulamentadas, não há, por exemplo, listas com todos os lobistas vinculados a empresas ou suas associações, tampouco quem são os tomadores de decisão por eles abordados individualmente, em seus gabinetes”, declara. “Isso dificulta muito o estudo da influência desses grupos de interesse nos processos decisórios em políticas públicas. A despeito disso, no estudo ficou claro que há haver um lobby bastante intenso e efetivo da indústria de refrigerantes em ambas as casas do Congresso”. Segundo a pesquisadora, no Congresso há uma ampla variedade de propostas legislativas com o objetivo de regular, em alguma medida, práticas da indústria de alimentos e bebidas ultraprocessados que impactam negativamente a saúde da população. “Só na 55ª Legislatura (2015-2019), por exemplo, foram identificados 84 projetos de lei nesse sentido”, salienta. “Quando se limita o recorte dessas propostas à tributação de bebidas açucaradas, foram ao todo nove projetos de lei que propunham aumentar a tributação e dois projetos de decreto legislativo que visavam sustar um ato do Poder Executivo que indiretamente aumentou a tributação de bebidas açucaradas produzidas por grandes empresas que atuam na Zona Franca de Manaus”. Aline relata que um desses projetos foi votado e aprovado no plenário do Senado em 10 de julho de 2018, quando 12 senadores com histórico de financiamento de campanha eleitoral por indústrias de refrigerantes que atuam na Zona Franca estavam na sessão e nove votaram a favor dos interesses do setor. “Esse dado não pode ser tomado isoladamente, os critérios que levam à tomada de decisão podem ser bastante subjetivos, e o próprio processo decisório costuma ser explicado por uma variedade de fatores. Por isso, aplicamos um método chamado Análise Qualitativa Comparativa (QCA), que busca apontar quais condições explicam um determinado desfecho”, conta. “Essa análise confirmou que contar com recursos de campanha oriundos de empresas do setor foi suficiente para os parlamentares apoiarem os interesses privados, mesmo sem ter sido identificada contrapartida política recebida por parte de parlamentares com interesse econômico no projeto, seja porque eram representantes do Amazonas ou detém operações de uma das grandes multinacionais interessadas”. Na Câmara, o projeto foi arquivado após votação simbólica em dezembro de 2018, no que foi considerada uma vitória das pequenas e médias indústrias de refrigerantes, que não atuam na Zona Franca de Manaus. “Essa influência pode se dar não apenas nas votações. Na verdade, é muito mais provável que ela ocorra em etapas intermediárias do processo legislativo como, por exemplo, a apresentação de projetos de lei, de pareceres favoráveis ou contrários a projetos de lei em tramitação, a inclusão ou não de projetos nas pautas de discussão e deliberação de comissões e plenários”, relata a autora do trabalho. “Podem ser usadas estratégias para deliberadamente atrasar a tomada de decisão, ou ainda fazer com que um projeto não seja votado e seja então arquivado ao final de uma Legislatura”. “Vale destacar que nenhuma dessas estratégias é ilegal, são previstas nos regimentos das casas legislativas e fazem parte do jogo político no processo legislativo. O grande desafio é conseguir mostrar que a decisão favorável a um determinado setor empresarial foi fruto do financiamento de campanha ou do lobby junto ao parlamentar”, finaliza a pesquisadora. O estudo foi desenvolvido por Aline para o doutorado no Programa de Pós Graduação em Nutrição em Saúde Pública da FSP, orientado pela Dra. Ana Paula Bortoletto Martins, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP. Mais informações: email alinemariath@gmail.com, com Aline Mariath