A perda de massa muscular ocasionada por longos dias de internação por covid-19 está associada ao desenvolvimento de sintomas mais persistentes da doença – como dificuldade para respirar, dores musculares e de cabeça, tosse, insônia, tontura, diarreia e ansiedade -, além de gerar mais gastos com saúde (remédios, exames, reinternações e reabilitações), considerando tanto o setor público quanto o privado. A constatação é de uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) com 80 pacientes que estiveram internados em 2020 no Hospital das Clínicas (HC) em decorrência da covid-19. Os resultados deste trabalho foram publicados no Journal of the American Medical Directors Association, em novembro de 2022.
“Os sintomas persistentes que surgem após internações por infecção por covid-19 geram impacto substancial na saúde pública e no bolso dos pacientes”, relata ao Jornal da USP o professor Hamilton Roschel, líder da pesquisa e coordenador do Grupo de Pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Divisão de Reumatologia, da FMUSP, e da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP. “A força e a massa muscular também se mostraram preditivas do tempo de permanência hospitalar de pacientes acometidos pela doença”, conforme o artigo publicado Muscle strength and muscle mass as predictors of hospital length of stay in patients with moderate to severe COVID-19: a prospective observational study.
Roschel explica que as funções musculares vão além do estabelecido pelo senso comum, em que estão associadas ao movimento e ao equilíbrio corporal, à manutenção da postura e a questões respiratórias. “A musculatura esquelética desempenha papel fundamental em diferentes processos fisiológicos: na resposta imune, como um “estoque” de aminoácidos para manter a síntese de proteínas e preservar tecidos e órgãos vitais (cérebro, tecidos cardíacos e hepáticos) e na regulação do metabolismo, ajudando na manutenção de um perfil cardiometabólico (fatores ligados ao coração, metabolismo e aos vasos sanguíneos) e imunológico saudável”, diz.
A pesquisa
Na pesquisa com os pacientes internados no HC, a avaliação foi feita por uma equipe multidisciplinar e ocorreu em quatro momentos diferentes: na admissão hospitalar, no momento da alta e após dois e seis meses da alta. O tempo mediano de internação foi de oito dias, sendo que 12,5% dos pacientes necessitaram de cuidados intensivos e 1,2% utilizavam ventilação mecânica invasiva.
A força global dos pacientes foi medida com um aparelho (dinamômetro de preensão manual) que verificou a intensidade da força aplicada sobre ele; e a massa muscular da coxa, com exames de imagem por ultrassom. Ambos os exames foram feitos na admissão hospitalar, na alta e seis meses depois.
A frequência de sintomas persistentes (dificuldade para respirar, dores musculares, tosse, dores de cabeça, insônia, tontura, diarreia, ansiedade, dor no ouvido, dentre outros) foi avaliada seis meses após a alta. Já os custos com saúde, taxa de reinternação hospitalar e a autopercepção de saúde (descritos como “muito ruim”, “ruim”, “regular”, “boa” e “muito boa”) foram investigados aos dois e aos seis meses.
Resultados
Os sintomas relatados pelos pacientes e que pontuaram mais alto na pesquisa foram a fadiga e a dor muscular. Aqueles que tiveram maior perda de massa foram os que apresentaram maior prevalência de fadiga, 76%, e dor muscular, 66%, em comparação aos que tiveram menor comprometimento da musculatura, cuja prevalência foi de 46% e 36%, respectivamente.
Para outros sintomas, também houve diferenças porcentuais importantes, embora não fossem estatisticamente diferentes. Foi o caso da prevalência de dor no peito, que foi maior (23%) em quem teve grande perda muscular comparado com quem teve baixa perda (3%).
De acordo com o estudo, a perda de músculo durante a hospitalização foi significativamente diferente entre os grupos de alta e baixa perda muscular, atingindo porcentuais de 18% e 4%, respectivamente, no momento da alta médica. Pacientes que perderam mais massa não a recuperaram totalmente nos seis meses subsequentes, enquanto o outro grupo restabeleceu-se por completo. Embora as taxas de readmissão não tenham sido estatisticamente diferentes entre eles, cerca de 15% dos pacientes de alta perda muscular foram readmitidos no hospital dentro de dois meses após a alta versus 10% dos que tiveram baixa perda.
“O fato da perda de massa muscular induzida pela hospitalização por covid-19 estar associada a maiores custos significa maior pressão sobre o sistema de saúde e aponta para a necessidade tanto de intervenções intra-hospitalares preventivas como de abordagens terapêuticas destinadas à recuperação da saúde muscular pós-internação desses pacientes”, afirma Hamilton Roschel.
Custos altos com saúde
A professora Flávia Mori Sarti, do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, uma das pesquisadoras envolvidas no estudo, explica que, para fazer a estimativa de custos, foi aplicado um questionário de levantamento do uso de serviços de saúde e aquisição de produtos da área que permitisse estimar os gastos diretos decorrentes de tratamentos relacionados aos problemas persistentes gerados pela covid-19. “Incluímos tanto os do setor público quanto os desembolsos privados dos pacientes, pois é importante para evitar subestimação dos custos do sistema de saúde brasileiro, uma vez que muitas pessoas acreditam que, como o SUS é gratuito, ele não tem custos – no entanto, são assumidos pelo governo e financiados a partir de impostos”, diz.
Os resultados foram baseados nas respostas dos entrevistados em termos de utilização de serviços de saúde (por exemplo: consultas médicas ou com outros profissionais de saúde, enfermagem domiciliar, internações etc.) e à compra de medicamentos e outros produtos (artigos ortopédicos, aparelhos, etc.) necessários para tratar problemas de saúde relacionados à covid-19.
Na avaliação feita após dois meses da alta, em relação aos custos totais com saúde (remédios, fisioterapias, consultas e exames), o grupo de maior perda muscular teve um gasto em torno de US$ 77 mil e o de baixa perda, US$ 3 mil. Após seis meses, o custo subiu para cerca de US$ 90 mil e US$ 12 mil, respectivamente. Especificamente com medicamentos, o gasto foi de US$ 1.358,74 no grupo de alta perda muscular e US$ 863,43 para o de menor perda. Depois de seis meses, o valor passou para US$ 4.698,65 e US$ 4.383,39, respectivamente.
Recomendações
Um outro estudo da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP e que estudou a enzima ECA2 (enzima conversora de angiotensina 2) mostra que o exercício físico pode ser uma excelente estratégia terapêutica não farmacológica para combater a miopatia esquelética (cujos sintomas são fraqueza muscular, dificuldades cardiorrespiratórias, fadiga e cansaço) que se desenvolve em algumas pessoas após a infecção pelo sars-cov-2. Os estudos foram pioneiros ao indicar a presença da enzima no músculo esquelético, inclusive em animais saudáveis.
De acordo com os achados, a ECA 2 funciona como receptor na membrana das células do organismo, atuando como porta de entrada para o vírus e, consequentemente, para a covid-19. Este trabalho foi coordenado pela professora Edilamar Menezes de Oliveira, do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular do Exercício.
Roschel afirma que, em conjunto, as pesquisas publicadas sugerem que a massa muscular pode ser utilizada como marcador prognóstico em pacientes hospitalizados e, portanto, deve ser abordada terapeuticamente. “O fato da perda de massa muscular induzida pela hospitalização por covid-19 estar associada a maiores custos significa maior pressão sobre o sistema de saúde e aponta para a necessidade tanto de intervenções intra-hospitalares preventivas como de abordagens terapêuticas destinadas à recuperação da saúde muscular pós-internação desses pacientes”, conclui.
Mais informações: e-mail hars@usp.br, com Hamilton Roschel, e flamori@gmail.com, com Flávia Mori Sarti