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O Poder Judiciário é a instituição onde muitas vezes vão parar os conflitos entre patroas e empregadas “do lar”. As disputas são tema do artigo de Fábio de Medina da Silva Gomes para a revista Cadernos de Campo, trazendo os resultados de sua pesquisa. Foram 37 audiências assistidas no tribunal e entrevistas realizadas por ele em visitas aos sindicatos laboral e patronal e Varas do Trabalho, em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O autor destaca as questões tanto de gênero quanto do “dar e receber” entre empregadas domésticas e patroas, na tentativa de jogar luz sobre o “discurso das emoções” nessa relação bastante peculiar, cujo desfecho pode ser dar diante do juiz.
Gomes descreve a tensão que vai se acumulando durante episódios que ocorrem no tribunal, ressaltando que há diferenças marcantes entre as “cenas” e os bastidores, na medida em que as audiências escondem o que há por trás das conversas cruzadas entre advogados, patroas e domésticas. Uma questão em especial intrigou o autor: “A possibilidade de debater a dicotomia razão e emoção. Até que ponto a ação humana é orientada pela razão, somente?”
O caso da disputa entre a patroa Huma e a empregada Agrado no tribunal coloca em foco essa dicotomia. A doméstica, já fora da casa da patroa, diz que está “buscando seus direitos”. Ao mesmo tempo, afirma sentir saudades da empregadora e da filha desta. Contradições permeiam os discursos sobre os sentimentos nos espaços das audiências: “Agrado sentia, ao mesmo tempo, saudade e demérito”, relata Gomes. “Pretendi entender como juízes, advogados, domésticas e patroas simbolizaram essa relação.”.
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Domésticas e patroas se emocionam, choram e lamentam-se, mas não trocam olhares. As lágrimas, derramadas no tribunal, são uma espécie de discurso que contagia, “um fenômeno […] quase teatral, verdadeiro expurgo do sentimento de ser ‘quase da família'”, e, segundo os advogados, é praxe instruir as partes a parecerem tristes e até mesmo a caírem no choro diante do juiz. Gomes propõe a discussão sobre a veracidade do apego emocional de patroas e empregadas e o consequente impasse estabelecido entre elas. Nesse contexto, o caso da doméstica Carmen mostra que a mesma pessoa por quem se nutre carinho e consideração é também a pessoa que se contrata para limpar a casa. Assim, o conflito está criado, pois Carmem sabia que ser “quase da família”, na verdade, significa “não ser da família”.
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Carmem sabia que ser “quase da família”, na verdade, significa “não ser da família.
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Chama a atenção a abordagem sobre o “caráter bipolar” do trabalho feminino no Brasil, nos opostos “mulheres bem-sucedidas” e “mulheres que exercem trabalho doméstico remunerado”, notadamente precário, enfatizando o aspecto feminino da “domesticidade”. Gomes relata, em sua pesquisa, que os homens nunca atuaram na cena como réus, pois raramente se adaptam a essa modalidade de emprego. Aí se percebe a relação entre gênero, emoções e “perigo”, já que a mulher é considerada mais afetiva, e essa afetividade é vista como perigosa fraqueza, da qual os homens se afastam:
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As emoções, sempre associadas à natureza, nunca à cultura, são sempre apontadas como femininas.
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Finalizando, o autor explica que os acordos se revelam como forma privilegiada de administrar os conflitos entre as partes, e o agendamento da audiência significa o fim da relação entre patroa e empregada: “Uma ruptura esperada e uma amizade na qual imperam elementos de hierarquia, desenvolvendo um tipo especial de cuidado”, em que a cena e o drama do cotidiano conturbado são revividos.
Fábio de Medina da Silva Gomes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF), pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e professor substituto de Direito do Trabalho, Biomedicina e Perícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
GOMES, Fabio de Medina da Silva. Amizades muito hierárquicas: direitos e emoções nas relações entre domésticas e patroas. Cadernos de Campo – Revista dos alunos de pós-graduação em Antropologia Social da USP, São Paulo, v. 24, n. 24, p. 290-314, 2015. ISSN: 2316-9133. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/98272>. Acesso em: 26 jun. 2016.
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Margareth Artur / Portal de Revistas da USP
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