
Ser soropositivo para o vírus da Aids não é mais uma sentença de morte; se ainda não existe cura, as perspectivas de vida certamente são melhores que há décadas atrás, quando a doença surgiu. Mas lidar com essa situação envolve fatores mais complexos do que os vividos por pessoas que sofrem de outros males crônicos; no HIV, colocam-se em evidência questões morais e preconceitos. Artigo publicado na revista Saúde e Sociedade discute o dia a dia do soropositivo sob o ponto de vista socioantropológico, relatando como se dá o processo desde a revelação do diagnóstico – a descoberta de jovens de ambos os sexos de serem portadores do vírus – até as estratégias utilizadas por eles para lidar com a nova realidade.
Como se transforma a rotina? A mudança de hábitos e comportamentos vai da obrigação de tomar a medicação por tempo indeterminado, passando pela convivência com o estigma e o preconceito, além da reviravolta nos projetos de vida. Segundo os autores do artigo, que estudaram jovens entre 18 e 22 anos, é preciso estar ciente da “frequente interação com serviços e profissionais da saúde, além da convivência com os impactos sociais, subjetivos e físicos da enfermidade” – o que não é tarefa simples. A pesquisa mostrou que a maioria dos entrevistados opta por manter segredo do diagnóstico, muitas vezes pelo medo da discriminação, ainda que ela não seja tão intensa como há 40 anos.
A participação em treinamentos oferecidos por ONGs é uma das alternativas de auxílio que vem se mostrando muito proveitosa para lidar com a questão. Muitos jovens se tornam ativistas nesses locais onde se trabalham temas como a superação, a sociabilidade e o autoconhecimento. “Na verdade foi uma questão de descobrir que jovens soropositivos não necessitam viver escondidos, né?”, relata Gabriel, um dos jovens entrevistados, sobre os benefícios do ativismo.
Contradições

Todos os entrevistados pela pesquisa são órfãos e “a maioria percorreu itinerários em casas de familiares após a morte de seus pais”. Estes últimos acabam revelando tardiamente aos filhos o diagnóstico da doença: “Eu descobri com minha mãe contando devagar. Quando fui crescendo. Foi contando devagar para me acostumar”. Metade desses jovens infectou-se por meio da amamentação, pelo fato de as mães contraírem o vírus após o parto ou pela falta de acompanhamento pré-natal adequado. Ressalte-se que, de acordo com os autores, em 1994 as gestantes infectadas puderam evitar a contaminação de seus bebês tomando a medicação AZT.
Esse jovens procuram demonstrar dar pouca importância ao problema, como transparece no relato de Quésia, uma das entrevistadas: “Essa doença para mim é a mesma coisa que nada, a Aids, ela pra mim tipo nem existe; só existe quando vou tomar remédio”. Para os autores, as contradições diante dessa postura são evidentes, uma vez que o segredo sobre a doença é mantido e o medo do preconceito, da aceitação do parceiro ou companheiro é nítido: “Ah, porque a gente fala que aceita… mas aí chega no momento de contar, eu não consigo contar”.
Rafael Agostini e Ivia Maksud são pesquisadores na Fundação Oswaldo Cruz.
Tulio Franco é pesquisador na Universidade Federal Fluminense.
AGOSTINI, Rafael; MAKSUD, Ivia; FRANCO, Tulio. “Essa doença para mim é a mesma coisa que nada”: reflexões socioantropológicas sobre o descobrir-se soropositivo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 496-509, jun. 2017. ISSN: 1984-0470. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/sausoc/article/view/134792>. Acesso em: 07 ago. 2017.
Margareth Artur / Portal de Revistas da USP