Clínicas privadas populares refletem naturalização da saúde como mercadoria

Estudo defende que expansão dessas clínicas “compete” com o SUS, colocando a saúde como produto, ao contrário do que prevê a Constituição

 02/07/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 04/07/2018 às 11:41
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Clínicas populares “disputam” pacientes com o SUS ao criar serviço baseado nas deficiências do Sistema Único de Saúde – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

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A expansão das clínicas médicas privadas a preços populares é reflexo da naturalização da saúde como mercadoria. Essa é uma das conclusões da tese de doutorado
Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo, do sociólogo Ricardo de Lima Jurca com orientação da professora Aurea Maria Zollner Ianni, defendida em abril deste ano na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. De acordo com o estudo, as novas clínicas “competem” com o Sistema Único de Saúde (SUS), ao estimular que se supra no setor privado a demanda por um serviço a que a população deveria ter acesso gratuito — e essa competição não está sendo discutida.

A pesquisa foi focada na expansão dessas clínicas em Heliópolis, comunidade em área de classe média, na Zona Sul de São Paulo. Segundo o pesquisador, o bairro foi escolhido devido à emergência do processo de individualização e de mobilidade social das famílias, o que possibilitou a entrada de novos profissionais na região metropolitana, como os médicos do Dr. Consulta e do Dr. Alegria. Em pouco tempo, duas clínicas foram instaladas na mesma avenida.

As clínicas, que prestam um serviço de média complexidade além de acompanhamento ambulatorial, cobram um valor entre R$ 70 a R$ 120 em suas consultas, que podem ser pagas com cartão de crédito. Grande parte delas oferece exames laboratoriais, clínicos e de imagens. Estão presentes em várias regiões de São Paulo e da Grande São Paulo, além do litoral paulista.

A entrada do pesquisador na comunidade foi mediada por agentes comunitários de saúde e por integrantes de movimentos sociais de associações de bairro. Foram analisadas e discutidas cerca de 30 entrevistas, além de conversas informais com profissionais da área da saúde, dirigentes sociais e gerentes, tanto ligados ao sistema público quanto às clínicas particulares, seguindo a cadeia de produção dos serviços de saúde destinados às famílias pobres, que também compuseram o quadro analítico da pesquisa.

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Saúde como mercadoria

A Constituição Federal de 1988 estabelece a saúde como dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Para Ricardo de Lima, as novas clínicas são “um grão de areia” se comparadas ao sistema público de saúde, mas não devem ser ignoradas. O problema é não existir uma discussão sobre esses novos grupos aparecendo e entrando no mercado da saúde. “Os princípios do SUS que falam de participação social têm que voltar à pauta, para discutir também essas clínicas”, comenta o sociólogo.

Na opinião do pesquisador, talvez o ponto principal sejam os bens e serviços acessados e consumidos pela população: “A questão hoje é que estamos saindo de uma discussão da universalidade do direito à saúde e estamos discutindo formas de cobrir a saúde para toda a população, e não importa como isso seja feito, se vai ser pago ou não, o interesse dessa cobertura universal, que não é o sistema universal que a gente tem, é uma parceria entre público e privado que fique cada vez mais oficializada para os governos”, afirma Lima.

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Um atendimento de impacto social

Foto: Cedida pelo pesquisador

A proposta da clínica ao chegar em Heliópolis era fazer um atendimento de “impacto social”. Mas com lucro. Para Lima, o conceito de “empreendedorismo social” vem de uma lógica perversa e repleta de contradições. Isso porque, com base nas deficiências do SUS, é criado um sistema de atendimento que visa lucrar, mas sempre passando a imagem para o usuário de que a intenção é ajudá-lo: “É evidente que o objetivo é o lucro, eles têm uma demanda fechada, critérios a cumprir para receber investimento estrangeiro. A longo prazo isso traz retorno financeiro, sem comprometer a visão de missão social”, afirma o pesquisador.

Para ele, as clínicas são “paliativas”, porque o atendimento fornecido é só o urgente. Isto é, o paciente, que geralmente utiliza o SUS, gastaria uma grande quantia de dinheiro se precisasse continuar com o acompanhamento na clínica particular. Nesse aspecto, as novas clínicas se assemelham aos antigos planos de saúde: quando surge uma demanda de alta complexidade (um quadro de saúde mais delicado), elas não são capazes de lidar. E o paciente retorna para o SUS.

Antes das clínicas serem instaladas, é feita uma pesquisa para saber quais especialidades mais faltam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Ricardo de Lima ressalta que existe uma dependência entre as novas clínicas e o sistema público de saúde. Elas existem como um “complemento” e, sem o SUS, não haveria demanda — que nesse caso, são os pacientes —  a ser disputada.

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“Uberização” da saúde

Há um processo paralelo ao crescimento dessas clínicas: o acesso à elas por meio de celulares e aplicativos. O paciente consegue pesquisar, através do celular, vários tipos de clínicas e em qual terá a especialidade que ele procura, com o preço mais viável para ele. Esse movimento foi nomeado como “Uberização da saúde” pelo pesquisador, que explica que isso vai além do custo das consultas e de um efeito da crise na saúde, sendo mais um efeito de comportamento, complexo e ainda pouco estudado.

Mais informações:  rljurca@usp.br


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