Pesquisadores da USP lançam o primeiro relatório sobre islamofobia no Brasil

Trabalho é fruto de pesquisas realizadas pelo Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos (Gracias) e conta com relatos de islamofobia sofridos por muçulmanos no Brasil

Foto: Thirdman/Pexels

 10/11/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 27/03/2023 às 10:49

Texto: Brenda Marchiore e Gustavo Roberto da Silva

Arte: Adrielly Kilryann

“É inegável que o pós-11 de setembro (data dos atentados às Torres Gêmeas) contribuiu substancialmente para o modo como o mundo olha para os muçulmanos, como se estes fossem inimigos do Ocidente e incapazes de se inserirem em outras sociedades que não fossem as de expressão islâmica.” Esta é a reflexão que faz o Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos (Gracias), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, no primeiro Relatório de Islamofobia no Brasil. O relatório é fruto de diversas pesquisas feitas pelo Gracias há pelo menos dez anos, sob a coordenação da professora Francirosy Campos Barbosa. 

A iniciativa faz parte de um esforço global para compreender o fenômeno da islamofobia. “Essa pesquisa se faz importante, pois constrói uma análise que vai contra o pensamento hegemônico que coloca sempre o/a outro/a muçulmano/a como terrorista, a mulher como oprimida e demais outras concepções, que se faz necessário e urgente problematizar dentro e fora da academia”, afirmam os autores. 

Publicado pela Editora Ambigrama no formato de e-book gratuito, o relatório contém capítulos dedicados a homens e mulheres muçulmanos, nascidos ou revertidos, e uma seção dedicada a sugestões da comunidade islâmica. A pesquisa contou com 653 pessoas muçulmanas que responderam a um questionário on-line e se dispuseram a compartilhar suas experiências envolvendo episódios de islamofobia sofridos no Brasil. 

Os dados foram colhidos entre os meses de fevereiro e maio de 2021, ao término do Ramadan (período sagrado para os muçulmanos, quando é comemorado o nono mês do calendário islâmico). O questionário, que foi divulgado, principalmente, nas redes e grupos diversos da comunidade islâmica, foi construído com perguntas que tinham como objetivo “captar as apreensões da comunidade muçulmana brasileira”, contam os pesquisadores.

As situações relatadas pelos participantes da pesquisa demonstram algumas hipóteses trabalhadas pelo Gracias, “principalmente em relação às mulheres muçulmanas revertidas como vítimas de ataques contínuos, assim como o entrelaçamento de sinais de muçulmanidades expressos por roupas e adereços de conotação árabe-islâmica”, enfatizam os autores.

Dentre os 653 participantes do questionário, as mulheres formaram a maioria (68%), e também foram as pessoas que mais apontaram ter sofrido islamofobia. Por parte dos homens, segundo os pesquisadores, se destaca uma resistência de parte da comunidade em reconhecer a islamofobia no Brasil. Alguns relatam que nunca sofreram qualquer tipo de preconceito ou discriminação devido a sua religião. Já entre as mulheres, as respostas continham relatos de agressões físicas, sexualização, perda de oportunidades de trabalho e transtornos psicológicos devido aos constrangimentos causados pelo preconceito com a religião.

A prática da islamofobia muitas vezes está presente de forma sutil e implícita, com frases que reforçam estereótipos preconceituosos. O relatório utiliza frases como “eu gosto do que vocês homens-bomba fazem, tem que fazer mesmo”, para exemplificar as formas de microagressão que os muçulmanos sofrem. “Mesmo com um tom positivo, o preconceito implícito pode estar em qualquer fala de qualquer pessoa, seja dentro do núcleo familiar, seja em ambiente social e público”, ressaltam os pesquisadores.

Foto: Thirdman/Pexels

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Entre os homens muçulmanos revertidos, 22,3% relataram dificuldades na relação com a família após a reversão, e 30% em relação aos amigos. Nos relatos de mulheres, os números são ainda maiores: 41,9% encontraram dificuldades na relação com os familiares, e 38% com os amigos.

A violência verbal é apontada como mais frequente tanto pelos homens (82%) quanto pelas mulheres (92%), e a rua é o principal local de incidência de violência: 54,5% entre os homens e 72% entre as mulheres. Os ambientes de trabalho e estudo também são apontados com alta incidência de discriminação: 46,4% dos homens relatam sofrer violências no trabalho e 42,7% na escola ou universidade; enquanto 39,9% das mulheres sofrem violências no trabalho e 31,8% no ambiente de estudo.

Em uma escala de 1 a 5, onde o número 1 significa concordar muito, e o número 5 discordar muito, a maioria dos entrevistados concorda que o Islã é representado negativamente na mídia brasileira (58,7% dos homens e 78,9% das mulheres responderam 1 ou 2, concordando totalmente ou parcialmente com a afirmação).

Outro aspecto observado foi a islamofobia on-line, ou cyberislamofobia, que, no entendimento dos pesquisadores, demonstra que “espaço virtual é uma das novas frentes de ação dos islamofóbicos”. Mais da metade dos entrevistados afirmam já ter sido alvo de preconceito nas redes sociais por serem muçulmanos, com números próximos entre homens (55,5%) e mulheres (54,3%).

O relatório lista comentários de homens e mulheres, onde narram as violências sofridas:

Homens

“Quanto aos familiares (pai e irmãos), ouvi coisas tipo ‘virou homem-bomba’, ‘estou preocupado com ele (falando com a minha esposa)’, ‘você sempre foi muito obediente né’, ‘e aquela vez que você bebeu, as namoradas… agora é santo’, ‘sua religião não cabe no Brasil, a cultura é muito diferente’”.

“Foi demais para mim assim que reverti. Mas a paz, a gratidão e o propósito que encheram meu coração me protegem, como um escudo. Na verdade foi Deus o tempo todo. Estava enfrentando também o luto do falecimento da minha mãe e o estresse/assédio da residência médica… comecei terapia alguns meses depois da minha reversão e foi muito importante”.

“Me perguntam de onde eu sou, e eu falo que sou árabe. Então falam: ‘homem-bomba’ ou ‘terrorista’. Sinto muito constrangimento, mas não me importo. Sempre fui visto como um ótimo hidrógrafo, porém, após me verem orando e confirmarem que sou muçulmano, perdi alguns trabalhos, e algumas empresas simplesmente nem se comunicam mais comigo. Já houve um homem puxando arma pra mim por eu ter defendido minha esposa na rua”.

“No trabalho sempre tem uma pessoa aleatória fazendo comentários islamofóbicos, do tipo: ‘porque sua gente gosta de matar as pessoas’, ‘porque sua religião incentiva o terrorismo’, ‘sua esposa não se converteu porque é difícil para mulheres né’, ‘seu Deus não gosta de mulheres né’, ‘não entendo nada da sua religião, mas eu sou uma pessoa muito crítica e jamais aceitaria a forma como sua religião trata as mulheres’, ‘com essa barba você não entra nos Estados Unidos não’, ‘tá parecendo um Mohamed’, ‘adoro Paris mas o problema da França são os muçulmanos’, ‘num país islâmico você não poderia abraçar sua esposa como no Brasil’, ‘adorei a Turquia, mas é um país muçulmano né, fora isso é ótimo’, ‘fizeram sua cabeça para se converter, misericórdia’, ‘enquanto você reza eu trabalho’, ‘nos países islâmicos eles obrigam as crianças a seguirem o Islam’, ‘teus colegas perseguem a igreja e matam cristãos lá’”.

Mulheres

“Em meu serviço um homem desconhecido me fez propostas sexuais dizendo que aquilo era um ‘fetiche’ para ele”.

“No trabalho, meu chefe falou que estava para me demitir, porque meu hijab estava incomodando e constrangendo os clientes, na rua fui motivo de palavras ofensivas. É muito triste ser brasileira e me sentir estrangeira no meu próprio país”.

“Meus pais e parentes no geral (tios e primos) que não têm conhecimento, e não querem nem que eu explique, me julgam como submissa a homens e seguidora de uma cultura que não é a minha”.

“Eu estava dentro do ônibus, estava lotado, quando um cara entrou e começou a gritar dizendo que eu tinha que voltar para meu país. Ele começou a berrar ‘coloquem a saudita para fora do ônibus’ e começou a usar palavras de baixo calão. As pessoas me defenderam. E no Rio Grande do Sul, eu era vista com estranheza, dentro do trem uma moça trocou de lugar porque eu me sentei ao lado dela”.

“Eu postei algo nos Stories do Instagram aprendendo a ler em árabe, e alguns amigos perguntaram se eu estava enlouquecendo, qual era o meu problema, falaram que não eu não acreditava em Jesus, que viraria terrorista. Meu ex-namorado me escreveu dizendo que eu ia virar terrorista e explodir lugares, que estava passando por lavagem cerebral. Mesmo eu agindo de maneira muito tranquila e sem radicalismo. Eu precisarei voltar ao Brasil e ficarei um ano, e não me sinto preparada para usar hijab definitivamente. Sei que estou errada mas peço que Allah torne meu caminho mais fácil pois preciso trabalhar. Crio meu filho autista sozinha (meu ex-marido o abandonou financeiramente e intelectualmente) e usar o hijab ainda é complicado no meu trabalho”.

A islamofobia como um fenômeno complexo e multidimensional

Como apontam os pesquisadores, este relatório tem como intuito constatar a existência da islamofobia, que “se configura como ‘medo do Islam’ e que acarreta um sentimento de ódio e/ou repúdio em relação aos muçulmanos e à religião islâmica”, e proporcionar reflexões que “estão na base desse sentimento de repúdio”. 

A obra demonstra outros pontos que estão interligados, como questões de classe, raça e gênero, proposições que envolvem posicionamentos políticos de direita conservadora e tradicionalista, “levando ao entendimento da islamofobia enquanto um fenômeno complexo e multidimensional”. 

Os autores argumentam que a islamofobia “não deve deixar de ser lida como um movimento de reação à(s) existência(s) islâmica(s), possuindo dimensões econômicas, históricas, sociológicas, psicológicas, culturais, legais e políticas”. 

Quanto às dimensões legais, chama atenção a ausência de procedimentos jurídicos contra os opressores. A maioria absoluta entre homens (94,5%) e mulheres (96,7%) não faz Boletim de Ocorrência e também não procura outros meios legais para se defender das violências sofridas, e os pesquisadores levantam hipóteses a respeito do motivo. “Será que no Brasil as queixas das pessoas muçulmanas seriam legitimadas por nossas instituições de saúde e de justiça?”, questionam. 

Nesse sentido, a violência contra essa minoria não aparece institucionalmente, mas toma corpo nos relatos que ineditamente recolhemos”, contam os pesquisadores no relatório.

Em entrevista para a Rádio USP, a professora Francirosy Barbosa, coordenadora do grupo de estudos responsável pelo relatório, falou sobre as contribuições do trabalho. “Desconstruir essa ideia de associar o islã ao terrorismo, desconstruir essa ideia de que mulheres muçulmanas utilizarem hijab, lenço, niqabchador, burca, ou qualquer vestimenta, significa um sinal de opressão”, afirma.

Francirosy Campos Barbosa - Foto: Arquivo pessoal

Francirosy Campos Barbosa - Foto: Arquivo pessoal

 

Logo da Rádio USP

Ao final, os pesquisadores se dedicaram a fazer uma série de sugestões à comunidade muçulmana brasileira para o enfrentamento da islamofobia no País e para que as novas gerações não sofram os mesmos tipos de violências como as relatadas pelos entrevistados. “Se a violência não se encerra, pelo menos teremos mais pessoas preparadas para enfrentá-la e mais pessoas conscientes de que a islamofobia embasa crimes, como o discurso de ódio e a violência física, e que é necessário dar apoio às comunidades vulneráveis, principalmente às pessoas de classes sociais desfavorecidas (materialmente)”, concluem os pesquisadores. O relatório completo está disponível neste link

O Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias)

O relatório não foi a primeira publicação do Gracias, que lançou em março de 2022 o livro Islam, decolonialidade e(m) diálogos plurais. A obra reúne estudos sobre o Islã, teorias decoloniais e textos sobre diversos trabalhos acadêmicos que trazem contribuições relevantes para esses campos de estudo.

Publicado pela Editora Ambigrama, o livro é assinado pela professora Francirosy Campos Barbosa, junto com as pesquisadoras Ana Maria Ricci Molina, Patrícia Simone do Prado e Flávia Andrea Pasqualin, e celebra os dez anos do grupo, fundado em 2011. A obra pode ser adquirida neste link

Mais informações pelo e-mail franci@ffclrp.usp.br, com a professora Francirosy Campos Barbosa.

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