Crimes previstos hoje pela Lei de Segurança Nacional podem passar para o Código Penal

Segundo Heidi Florêncio Neves, caso seja aprovado no Senado, o projeto desclassifica como crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais, além de condenar a disseminação de notícias inverídicas durante o processo eleitoral

 30/06/2021 - Publicado há 3 anos
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O Código Penal já prevê o aumento de pena nos crimes contra a honra quando a vítima é o presidente da República – Montagem com imagens de Freepik e Pixabay

 

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A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi criada em 1983, ainda no período da ditadura militar no Brasil, para proteger a integridade e a soberania nacional junto aos representantes das instituições. O artigo 26 da LSN afirma que atentados à honra do presidente da República, do Supremo, da Câmara e do Senado Federal, por exemplo, são considerados fatores de risco, impondo pena de até quatro anos a quem arriscar uma crítica ácida às autoridades. Dados da Conectas Direitos Humanos mostram um crescimento exponencial do uso da LSN no Brasil: dos 186 inquéritos entre 2000 a 2020, sete foram em 2016, cinco em 2017, 19 em 2018, 26 em 2019 e 46 em 2020, sendo que mais da metade do total terá ocorrido no governo de Jair Bolsonaro em 2021. O uso da lei vem sendo considerado abusivo por especialistas.

Heidi Florêncio Neves – Foto: Reprodução/LinkedIn

Heidi Florêncio Neves, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito da USP, explica que havia um forte conflito ideológico mundial na época da instauração da lei, sob uma lógica de proteção total da soberania nacional. “O primeiro crime dessa lei era justamente entrar em entendimento com grupo estrangeiro ou governo estrangeiro para provocar a guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil”, afirma. Ela argumenta que a lei se transformou em uma arma política utilizada “não para defender um bem jurídico, interesse relevante de proteção para a sociedade, mas sim para intimidar o exercício da liberdade de expressão, o que não faz o menor sentido no Estado Democrático de Direito”.

Após chamar o presidente Jair Bolsonaro de “genocida”, o youtuber Felipe Neto foi intimado a depor com base na LSN em março deste ano, assim como Ciro Gomes, após chamar o presidente de “ladrão”. A hipótese mais sustentada é a de que eles teriam incidido no artigo 26 da LSN – “[…] fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Para a professora, “no entanto, nos dias atuais, dizer que isso é crime contra a segurança nacional não é razoável”. Embora em menor número, outras instituições promoveram prisões de críticos, ora mais, ora menos justificadas. Em fevereiro, o ministro do STF Alexandre de Morais enquadrou o deputado federal e ex-policial militar Daniel Silveira na LSN, preso em flagrante após a repercussão de um vídeo onde Silveira faz apologia ao AI-5.

Proposta de substituição da atual Lei de Segurança Nacional

Uma nova proposta aprovada pela Câmara visa a substituir a atual Lei de Segurança Nacional nº 7170/1983 e inclui os crimes contra o Estado Democrático de Direito no Código Penal, que, caso a proposta seja aprovada no Senado, passará a ter 12 títulos de crimes. Ou seja, exclui-se o artigo 26 da LSN, além de outros, não constituindo crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais, nem a atividade jornalística ou reivindicações de passeatas, reuniões com propósitos sociais. “Nos casos do Felipe Neto e do Ciro Gomes, está escrito expressamente que não vão fazer parte dos crimes previstos neste título as críticas aos poderes constitucionais. Pode, por exemplo, ser crime contra a honra, mas não vai ser crime contra o Estado Democrático de Direito”, explica Heidi Neves. O Código Penal já prevê o aumento de pena nos crimes contra a honra quando a vítima é o presidente da República, portanto, processar quem comete calúnia via lei especial como a LSN ou via Código Penal, não faz diferença, segundo Heidi. “Ele vai ser processado da mesma maneira e, se ele for condenado, vai ter que cumprir pena da mesma maneira. Um dos argumentos utilizados é que, quando o crime está previsto no Código Penal, há uma maior harmonização entre o crime e até a própria parte geral do Código Penal.”

Entre essas alterações promovidas pela relatora do projeto que visa a substituir a LSN, a deputada Margarete Coelho (PP-PI), estão os crimes contra o funcionamento de instituições democráticas no processo eleitoral. Trata-se do artigo 359, que teria a seguinte redação: “Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privado, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, capazes de comprometer o processo eleitoral”. Ou seja, campanhas para disseminação das chamadas fake news, capazes de comprometer o processo eleitoral, serão crime.

“O difícil disso tudo é saber o que é um fato capaz de comprometer o processo eleitoral. O correto seria tratar disso na Justiça Eleitoral e não no Código Penal”, sugere a professora, prevendo dificuldades de aplicação da lei devido à necessidade de comprovação de que a promoção da disseminação de fato inverídico é capaz de alterar e/ou comprometer o processo eleitoral. Para ela, ainda que haja algumas imprecisões, o projeto é um avanço e está muito mais relacionado com os dias atuais do que a lei que atualmente está em vigor.


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