Ex-colônias, nações periféricas como Brasil e Austrália em destaque na Bienal de Veneza

O brasileiro Adriano Pedrosa é o curador da mostra e o artista australiano, Archie Moore, recebeu o Leão de Ouro de 2024

 Publicado: 23/07/2024     Atualizado: 24/07/2024 as 18:20

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Na coluna desta semana , o professor Martin Grossmann continua sua análise, iniciada na semana anterior, sobre as bienais.

Tratamos da origem e genealogia das Bienais e, em particular, nos concentramos na importância que a Bienal de Veneza, criada em 1893, tem nessa história relacionada a uma tradição expositiva, que não está necessariamente associada aos museus, mas em outra linhagem expositiva, que é aquela criada pelas Exposições Universais no século 19, que por sua vez simbolizam, assim como os museus, o poder global do colonialismo europeu entre os séculos 15 e 20. 

Apesar desta origem, bastante contestada atualmente, é interessante destacar que nesta 60ª (sexagésima) edição o curador geral é um brasileiro, Adriano Pedrosa,  e que o prestigioso Leão de Ouro, prêmio de melhor participação nacional na Bienal de Veneza de 2024, foi outorgado ao artista australiano Archie Moore, autodeclarado um nativo daquele país. Ou seja, ex-colônias, nações periféricas como Brasil e Austrália foram prestigiadas e de certa forma reconhecidas por sua originalidade e liderança na contemporaneidade da arte global.  

Representando a Austrália, a obra de Archie Moore foi instalada no pavilhão deste país localizado no Giardini, um jardim de 45.000 metros quadrados estrategicamente posicionado na principal ilha do arquipélago que conforma a cidade de Veneza, onde encontramos outros 28 pavilhões nacionais, inclusive o do Brasil, assim como o principal pavilhão deste destacado complexo expositivo. 

A obra premiada Kith and Kin (que significa a principio amigos e família) transforma a arquitetura deste pavilhão em uma espécie de caixa-preta ao converter suas paredes em lousa (um extenso quadro-negro),  que recebe um mapeamento de uma genealogia colossal registrada em giz branco, expondo conceitos não lineares de tempo e lugar, assim como anotações a respeito dos 65 mil anos de história indígena australiana, que sofreram intervenção brutal da colonização inglesa como tambem da constituição da nação australiana.

Essa caixa-preta se complementa com uma mesa ao centro, que se comporta como uma expressiva/impactante maquete, cujos volumes são formados por registros documentais em papel branco que notificam as mortes de nativos australianos sob a custódia da polícia e de oficiais vinculados ao sistema prisional desse país, que até hoje registra uma maioria expressiva de prisioneiros cuja origem é nativa. Há ainda um detalhe importante, uma vez que essa mesa “flutua” sobre uma superfície de água. Nesse ambiente soturno, minimal, enigmático, silencioso cujo interior se revela morosamente ao visitante por meio do ajuste que nossos olhos fazem ao transitarem da claridade do dia do jardim para a escuridão da sala de exposição, nos transformamos em testemunhas oculares de um complexo processo de ocupação territorial que acaba por gerar um país nomeado de Austrália. 

Para entender melhor essa obra,  cito aqui o artista ao se manifestar em distintas entrevistas por ele concedidas: 

“Kith and Kin é um mapa holográfico de relações que conecta vida e morte, pessoas e lugares, tempo circular e linear, em todos os lugares e em todos os momentos, a um local para reflexão e lembrança silenciosas”.

outra citação: 

Assim como a água flui pelos canais de Veneza até a lagoa, depois para o Mar Adriático, ela viaja para os oceanos e para o resto do mundo – envolvendo inclusive o continente da Austrália – conectando todos nós aqui na Terra.

e por fim, mais uma: 

Os sistemas de parentesco aborígine incluem todos os seres vivos do ambiente em uma rede maior de parentesco; a própria terra pode ser um mentor ou um pai para uma criança. Somos todos um e compartilhamos a responsabilidade de cuidar de todos os seres vivos agora e no futuro.”

Trata-se assim de uma proposição instalativa, plástica de extrema pertinência e impacto, que endereça a ambiguidade existencial da humanidade em um planeta em estado catatonico.


Na Cultura, o Centro está em Toda Parte
A coluna Na Cultura o Centro está em Toda Parte, com o professor Martin Grossmann, vai ao ar quinzenalmente, terça-feira às 9h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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