Sutilezas políticas no planalto e as atuais relações entre Executivo e Legislativo

Por Waldenyr Caldas, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 20/12/2023 - Publicado há 11 meses
Waldenyr Caldas – Foto: Arquivo pessoal

 

A última pesquisa sobre o governo do presidente Lula registra que 40% da população não confia nas suas promessas e nem aprova seu desempenho na governança do País. Além disso, apenas 24% dão credibilidade às suas promessas. Os resultados desses dados, no entanto, devem ser cuidadosamente analisados para evitarmos injustiça e não ficarmos apenas com informações estatísticas. Sabe-se que uma parte da população reclama a sua ausência do País, argumentando que o presidente tem viajado muito e deixado de lado questões importantes a serem resolvidas, de acordo com as promessas feitas durante sua campanha eleitoral.

Ao ser entrevistado por um jornalista brasileiro em Buenos Aires, o ex-presidente Jair Bolsonaro, de forma maledicente, irresponsável e oportunista, manifestou-se referindo-se a Lula como o “presidente turista”, em clara alusão às suas viagens para tratar dos interesses políticos e econômicos do País no exterior. Em determinadas situações, o próprio presidente com sua comitiva e empresários convidados devem acompanhá-lo justamente para acertar investimentos em nossa nação. Entre outras coisas, por não ter feito mais viagens ao exterior em busca desses investimentos para o País, é que o ex-presidente e seu governo ficaram com a justa imagem de incompetentes.

Essa sua fala ao jornalista aconteceu na véspera da posse do presidente da Argentina Javier Milei. Ora, o ex-presidente sabe que mentiu, mas também foi inconsequente e falou bobagem já pensando em questões eleitoreiras, muito embora esteja inelegível até 2030. Certamente este fato influenciou no aumento estatístico da reprovação do governo Lula, justamente pelo fato de, como se sabe, o País continuar dividido, mesmo depois de quase um ano das últimas eleições presidenciais. Ainda assim, se compararmos com as pesquisas realizadas em setembro de 2023, os dados mostram que houve uma alteração inexpressiva. Talvez até desprezível mesmo. Vejamos os resultados: 42% não acreditavam em seu governo e apenas 23% confiavam e apoiavam, segundo constatou as pesquisas Datafolha.

Pois bem, não vou aqui tocar novamente nas viagens do presidente ao exterior, uma vez que já o fiz em um artigo intitulado Descompassos políticos: pensando o Brasil, publicado pelo Jornal da USP. Esses dados, no entanto, são importantes para sabermos da perda ou aumento da popularidade do governo Lula, mas apenas isso e nada mais. Os motivos e as sutilezas do jogo político (nem sempre sutis), a empáfia de alguns políticos, os interesses de grupos políticos dentro do Congresso Nacional e a contínua disputa por liderança, pelo poder entre o Executivo e o Legislativo, esses elementos sim, são determinantes na perda ou aumento de popularidade de qualquer presidente.

Convém registrar que a maior autoridade política do país é o presidente, chefe do Poder Executivo. Os dados estatísticos não teriam como mostrar e analisar todo esse conjunto de fatos e acontecimentos que ocorrem cotidianamente na arena política de um país que, apesar das inúmeras imperfeições em seu sistema político, é visto como democrático no plano internacional. Sim, caro leitor, apesar de tudo mesmo! Basta ver, por exemplo, que os mesmos dados estatísticos de setembro deste ano revelam ainda que apenas 16% da população aprova o trabalho até aqui realizado pelos políticos no Congresso Nacional, ou seja, o Poder Legislativo em nosso país vem perdendo a credibilidade junto ao povo de forma sistemática. Esta é uma porcentagem desconcertante e desanimadora. Há que se pensar melhor sobre isto.

Como entender, então, que um país cujo Poder Legislativo tem apenas 16% de aprovação da sociedade é democrático? E os 84% reprovados pelo povo realmente o representam? Vale lembrar aqui, que a organização política e administrativa do nosso país foi reelaborada pela Constituição de 1988. É nesse momento que nos valemos do chamado “princípio da tripartição” baseado justamente no que o filósofo francês Montesquieu, em seu conjunto, chamou de Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Esta foi a forma encontrada para manter a autonomia de cada um dos três poderes e, consequentemente, a própria soberania do Estado.

Em nossa Constituição, ainda que rotineiramente desrespeitada dentro do próprio Congresso Nacional, está no artigo 2º uma cláusula pétrea que mantém a autonomia dos três poderes e, por extensão, assegura a presença do regime democrático. Vejamos, então, o que diz o artigo 2º da nossa Constituição de 1988: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Mas a Constituição prevê, ainda, que os três poderes façam sempre valer sua autonomia e estabeleçam o diálogo sistemático para a boa administração do Estado.

Se observarmos do ponto de vista teórico, a construção do Estado democrático pensada por Aristóteles em sua origem e bem mais tarde por John Locke e Montesquieu, nessa ordem, devemos reconhecer que a democracia é, sem dúvida, o melhor regime político para se viver em sociedade. O “princípio da tripartição” parece mesmo ser o melhor modelo de administração do Estado, desde que as autoridades legalmente eleitas para esta função pensem realmente nos interesses da sociedade democrática e de seu povo.

No plano teórico, tudo isto está coerente, perfeito e pertinente. É inestimável para a liberdade do ser humano e da constituição do Estado democrático a contribuição dos filósofos já citados. No entanto, aqui quero lembrar o conhecido e bem-humorado aforismo popular que diz o seguinte: “a teoria na prática é outra”. Por se tratar de um provérbio, é natural que ele tenha as mais diversas interpretações. Entre outras coisas, no caso brasileiro, ele nos faz pensar melhor sobre a democracia em nosso país. Assim, vamos observar que a contribuição teórica dos filósofos citados está em pleno desacordo com a relação entre os três poderes no Brasil, ou vice-versa; talvez assim fique melhor.

Seja como for, o fato incontestável é que em qualquer situação o estudo de uma boa teoria sempre nos leva a caminhos para melhor interpretar e entender nosso cotidiano. Isto, neste momento, vale especialmente para a política e os políticos. Afinal, são eles que vão administrar o Estado e fazer com que toda a sociedade se beneficie deste trabalho. Caro leitor, no Brasil todos nós somos, ao mesmo tempo, vítimas e testemunhas oculares de que isso é exatamente o que não acontece, pelo menos até aqui. Por uma questão de justiça, antecipo-me em dizer que não se trata de um comportamento geral entre os três poderes.

Trata-se, isto sim, de uma considerável parcela indiferenciada de cidadãos entre esses poderes, cujo interesse não é o bem-estar do Estado e da sociedade. São sempre interesses escusos a serem sistematicamente praticados e, como tal, só tomamos conhecimento quando os media conseguem torná-los públicos. Como o Poder Legislativo no Brasil tem muita visibilidade, comentarei um pouco sobre seu trabalho. Afinal, este é o poder que, como diz o próprio nome, cria as leis, legisla para que o Estado, a sociedade e os cidadãos convivam em harmonia tendo seus direitos e deveres respeitados e por elas amparados.

O Poder Legislativo é, sem dúvida, o mais vulnerável a falcatruas. Como vivemos em um regime de democracia representativa, que a meu ver precisa ser repensado, as condições para que uma pessoa se candidate a deputado federal ou senador levam muito em consideração a boa-fé do cidadão, seu prestígio no local onde convive, entre outras coisas muito voláteis. Vale a pena elencar essas condições. Vejamos: comprovar a nacionalidade brasileira, alistar-se na justiça eleitoral, filiar-se a um partido político com pelo menos seis meses antes das eleições, ter dezoito anos ou mais e, no caso de cidadãos do sexo masculino, estar quite com o serviço militar. Com algumas nuances, é este o caminho para quem deseja representar o povo no Congresso Nacional.

É sempre bom lembrar que, no segundo mandato do presidente Lula, foi promulgada a Lei Complementar nº 135 de 4 de junho de 2010. Ela ficou mais conhecida como “Lei da ficha limpa”, e começaria a valer já para as eleições de 2012. A partir desta data, qualquer cidadão condenado por crimes na justiça estaria automaticamente impedido de trabalhar na administração pública. Portanto, nessas condições, se ele quisesse se candidatar a deputado federal, por exemplo, não seria possível em face dos seus antecedentes criminais. Todas essas exigências, porém, não impedem que cidadãos oportunistas, mas com ficha limpa, se candidatem e, no decorrer do seu mandato de quatro anos para deputado federal, e de oito anos para senador, ludibriem o eleitor que acreditou em seu discurso de candidato. Apesar deste aspecto, esta lei é da maior importância, uma vez que inibe substancialmente a bandalheira.

Esta é uma lei tardia, determinante para moralizar o ambiente na política em nosso país. Entendo que ela deveria ter sido aprovada há mais tempo. Mas, de certo modo, quando menos, veio para melhorar a probidade no Congresso Nacional. É claro que este é apenas um problema em meio a tantos outros que encontramos em nossa democracia representativa, muito embora não estejamos sozinhos neste quesito, assim como também na corrupção. Este sim, é um gravíssimo problema onde não há exceção, como mostram as pesquisas anuais do órgão Transparência Internacional. Em todos os países do mundo, uns mais, outros menos, outros bem menos ainda, este grande mal está presente.

Seria ingenuidade e desinformação negar a inexistência de corrupção em nosso país entre alguns segmentos da política brasileira. Se escolhemos um candidato para nele votar e nos representar no Congresso Nacional, é porque, afinal, acreditamos que ele esteja à altura de trabalhar para defender os interesses do Estado e da sociedade. Pois bem, caro leitor, mas não é exatamente isto o que acontece com boa parte dos deputados eleitos. É compreensível e até mesmo necessário que, em uma democracia representativa, os adversários políticos (situação e oposição) dialoguem sobre os problemas nacionais para que eles possam ser resolvidos ou, pelo menos, procurar os caminhos para equacioná-los. Afinal, trata-se dos representantes do povo e por este legitimamente eleitos.

A união dessas duas forças, como se sabe, sempre chega a bom termo em benefício de toda a população. Isto sim, seria o ideal que acontecesse. Mas, situações como esta só ocorrem em casos meramente protocolares e quando a pauta de discussão no Parlamento não apresenta temas que possam conter interesses extramuros do Congresso Nacional. Em momentos excepcionais esta união também pode se fazer presente. As dificuldades da nossa democracia, porém, vão mais além e não ocorrem apenas neste mandato do presidente Lula. Isto é recorrente em toda a trajetória da política brasileira. Nesse momento, vivemos uma situação bem típica do que estou descrevendo nesta narrativa.

Trata-se de um desejo insaciável e doentio de multiplicação e consolidação de poder entre os políticos, em um jogo de interesses que não considera em momento algum, as reais necessidades da sociedade que os elegeu representantes do povo no Congresso Nacional. Não por acaso, de acordo com as pesquisas do Instituto Atlas Intel, que realiza este tipo de trabalho em diversos países da américa Latina e Estados Unidos, o atual presidente da Câmara dos Deputados em nosso país tem 58% de desaprovação dos entrevistados. É em situações como esta que o eleitor se sente literalmente traído e arrependido de votar naquele candidato que escolheu. Ele passa a repelir o sistema de democracia representativa, mas, ao mesmo tempo, fica sem escolha. É isso o que hoje vive o País. A sociedade torna-se testemunha de uma disputa de poder que envolve especialmente o poder Executivo, de um lado, e o poder Legislativo, de outro.

Com algumas notórias e louváveis exceções, é isto o que tem ocorrido em nossa democracia representativa. O eleitor é o grande centro das atenções até o dia de votação, depois não mais. Ou ainda, como diz Chico Buarque em sua canção intitulada Folhetim, “… és página virada, descartada do meu folhetim”. É assim. O jogo de interesses escusos arquitetados sistematicamente procura priorizar os ganhos individuais e não mais o que os candidatos prometiam, e não mais o que a sociedade realmente necessita. Por exemplo, mais investimentos em saúde pública, educação de qualidade, segurança, absorção da mão de obra ativa alijada do processo produtivo, entre outros aspectos não menos importantes. A luta dos partidos políticos pelo poder, a vaidosa disputa por visibilidade pessoal e a própria corrupção em alguns casos passam a integrar o cotidiano da política brasileira, frustrando as expectativas do eleitor, fragilizando e debilitando lentamente nosso jovem sistema de democracia representativa.

É lamentável constatarmos que, do ponto de vista institucional, nesse momento o Brasil não vai bem. A desinteligência recorrente entre os três poderes instala uma crise muito séria e isso, evidentemente, atrasa a tomada de decisões muito importantes. Assim, as deliberações em benefício do seu povo tornam-se secundárias. Situações como esta invariavelmente levam a democracia em nosso país a tornar-se ainda mais debilitada.

Esta disputa sempre evidenciada pelos media não é apenas uma luta de poder entre as instituições. Ela tem um componente de vaidade e até de estrelismo das autoridades envolvidas, além de interesses paralelos que nada têm a ver com as necessidades básicas do povo brasileiro. É claro que, por conta disso, dessa criancice nociva e mal-intencionada, dessa irresponsabilidade política, tudo reverbera negativamente sobre o próprio Estado e a sociedade.

Mas, não sejamos ingênuos e nem podemos piscar os olhos, devemos sempre estar atentos. Esta luta pelo poder é complicada, uma vez que o Legislativo pode vetar algumas decisões do Executivo quando colocadas em votação no Congresso Nacional. Se o Executivo não tiver maioria na Casa das Leis, necessariamente terá que negociar com essa maioria. É exatamente nesse momento que o Executivo, se quiser continuar governando, deve negociar a aprovação de seu projeto. Até aí está tudo muito bem, afinal, é parte integrante da democracia o entendimento político entre situação e oposição para se chegar a um consenso. Acontece é que nesse exato momento das tratativas, em alguns casos, emerge o oportunismo político e, lamentavelmente, o famoso “toma lá dá cá” que redunda em chantagem do “é dando que se recebe”, mais um aforismo baseado na oração de São Francisco de Assis, e que foi popularizado por uma política de troca de favores, interesses escusos, apoios e até mesmo dinheiro.

O sentido político deste aforismo nada mais tem a ver com a oração de São Francisco de Assis. É isso o que temos visto na gestão do presidente Lula, mas não é exceção. Posso dar um exemplo bem recente do que estou aqui me reportando: a oposição interesseira e oportunista impôs nada menos que duas derrotas ao chefe do Executivo desfigurando seu projeto político apresentado ao eleitor durante a campanha para as eleições presidenciais.

Refiro-me ao resultado da votação do projeto do Marco Temporal no Congresso Nacional sobre a demarcação das terras indígenas. Foi uma dura derrota para o governo, bem como o projeto da desoneração da folha de pagamento, cuja derrota foi ainda mais preocupante para o chefe do Executivo: no Senado, 60 votos contra o governo e apenas 13 a favor. Na Câmara Federal, 378 votos contra e 78 a favor. Não bastasse a vitória da oposição, de forma deselegante e desrespeitosa, uma parte da oposição após a apuração do resultado gritava em plenário: “surra, surra, surra”.

Na democracia brasileira, historicamente as negociações para a administração do País sempre tiveram este componente malévolo, entre outros, que nada têm a ver com os reais interesses e necessidades da sociedade. Atualmente o que se tem visto é o Legislativo, na pessoa do presidente da Câmara Federal, propor o jogo do “toma lá dá cá” e, com isso, de certo modo, fazendo o chefe do Executivo seu refém. Em outros termos, isso acontece da seguinte forma: ou o presidente disponibiliza cargos e outros benefícios para o chamado “Centrão”, uma coligação de partidos políticos que sempre garante maioria nas votações na Câmara Federal, ou então não se aprova nada, ou quase nada que venha do poder Executivo, ainda que seja notoriamente para o bem comum da população.

Pois bem, não há alternativa. Ou o presidente cede às pressões dos interesses escusos e da vaidade do líder do Centrão, que nesse momento usa seu poder de forma oportunista, ou não consegue realizar um bom governo. Seu projeto apresentado durante a campanha política para se eleger tem sido fortemente desfigurado, levando-o a realizar uma administração sofrível para o País. Esta é uma situação que outros presidentes já enfrentaram e outros ainda terão que enfrentar. Portanto, é fundamental o diálogo de negociação com a oposição. É assim que se faz a boa política, e o presidente Lula, com toda sua experiência de dois mandatos anteriores, sabe muito bem como administrar momentos delicados como este. Por outro lado, e na mesma proporção, é de vital importância que esta oposição esteja imbuída de um espírito público capaz de realmente defender e zelar pelos interesses da população e não de tirar proveitos e conveniências paralelas que, quando menos, lesam o Estado e a sociedade.

Sendo assim, então, as porcentagens estatísticas sobre o desempenho do presidente Lula, por uma questão de justiça, não podemos responsabilizá-lo individualmente. É preciso dividir essa responsabilidade com o Congresso Nacional que tem desfigurado o projeto político inicial do presidente. É nesse momento que a democracia representativa mostra suas fraquezas. E aqui cabe a seguinte pergunta: não foi no projeto político do candidato vitorioso nas eleições presidenciais que a maioria dos eleitores votou? A meu ver, os deputados representantes do povo no Congresso Nacional deveriam pensar nisso. Até porque, embora os resultados estatísticos não tenham apresentado alterações significativas, eles poderiam ser bem melhores, se desde o início de seu governo ele tivesse maioria de deputados para apoiá-lo. Não tinha e talvez nem venha a ter. É assim, e historicamente já sabemos que a democracia representativa funciona dessa forma. Nem todos os deputados eleitos representam de fato seus eleitores.

(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.