Sir Galahad, IA e a educação

Por Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, professor da Faculdade de Educação da USP

 Publicado: 23/10/2024 às 16:43
Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio – Foto: Arquivo pessoal
Há uma cena hilária e muito conhecida no filme Em Busca do Cálice Sagrado, do grupo Monty Python, em que dois guardas de um castelo veem Sir Galahad se aproximar à distância. Porém, toda vez que olham para o cavaleiro avançando, ele parece estar no mesmo lugar. Até que, de repente, ele atinge um dos guardas com sua espada e invade o castelo, como se tivesse aparecido do nada.

É assim que percebo a atitude de muitos professores em relação ao advento, para o grande público, dos chats de inteligência artificial, os modelos de linguagem de grande escala (large language model ou LLM), das quais ouvimos falar por todo lado.

Importante dizer que me coloco aqui sob uma perspectiva específica: a de professor de filosofia em uma faculdade de educação (no caso, a FE-USP), que lida com ingressantes no curso de pedagogia e alunos de outras unidades que cursam licenciatura conosco. Em suma, estudantes interessados na profissão docente, e que são apresentados à literatura filosófica, parte da tradição teórica dos estudos em educação. Trabalhamos, portanto, com textos, e produzimos textos a partir deles.

Em outras áreas, especialmente nas ciências exatas ou aplicadas, talvez a situação seja diferente, e a chegada de Galahad esteja sendo percebida razoavelmente bem, de forma a não pegar ninguém de surpresa.

No âmbito das humanidades, porém, e em especial na área de educação, isso parece não ser verdade. Muitas vezes, quando ocorre uma discussão sobre o tema, ela é marcada por trivialidades, moralismo e indignação. Afinal, como é possível que uma máquina, ou um programa, substitua o pensamento, esse atributo até então irredutivelmente humano? Como redes neuronais frias ousam ocupar o espaço da inefável capacidade criativa das pessoas? São críticas recorrentes, que não impediram, no passado, a disseminação das calculadoras, dos computadores pessoais e das redes (anti)sociais, por mais que possamos, em muitos aspectos, lamentar o mundo que criaram.

Raramente aprofundamos nossas discussões sobre os impactos da abertura do uso desses chatbots na forma como nossos alunos produzem seus textos, um fantasma que agora lança dúvidas sobre a “autenticidade” do material que lemos e corrigimos. As considerações, quando existem, quase sempre se dirigem à condenação de seu uso, e à invenção de meios de identificar quando ele ocorre (curiosamente, usando outras ferramentas de inteligência artificial). Afinal, um trabalho feito com auxílio de IA flertaria perigosamente com a malandragem, enganando o professor no justo instante em que se depara com o texto exemplar, cumpridor de todas as exigências de rigor e correção de linguagem. Um evidente crime de lesa-magistério. O texto áspero e com ruído passa a ser, então, a garantia precária de sua provável “humanidade”.

Esse é um problema, de fato. No entanto, não é o problema de fundo. Porque ainda estamos falando de meios: o aluno produz um texto usando IA para responder a uma demanda nossa. No limite, é certo, o trabalho apresentado pode ter sido feito sem qualquer reflexão pessoal ou empenho, sem realmente ser “dele”. Porém, o problema de fundo é outro: o uso generalizado das IAs, em suas diversas formas, e sua crescente ubiquidade deveriam nos fazer pensar, nós, professores (especialmente os de humanidades, que lidam com cânones e tradições literárias), no significado daquilo que pedimos aos nossos alunos, a partir do momento em que tal pedido pode ser realizado (e de forma bem melhor, se soubermos usar corretamente os prompts) por uma máquina. Como ficam o paper, o ensaio, o livro ou o capítulo “na era de sua reprodutibilidade técnica”? (Walter Benjamin tratou da reprodução da obra de arte e do simulacro; hoje, lidamos com a criação artificial de originais dotados até mesmo de aura.)

Por fim, ainda que nenhum aluno utilize tais recursos, e todos os trabalhos que pedimos sejam realizados a partir de livros e artigos – IA free – a questão permanece: se uma máquina pode fazer melhor, com mais rigor e correção, aquilo que pedimos ao aluno, não estaríamos equivocados em pedir o que pedimos? Se um programa é capaz de extrair insights, correlações e respostas de textos de forma mais eficaz do que um humano, qual o sentido (e não digo que ele não exista: precisa então ser esclarecido) de pedir ao aluno que o faça? (Veja-se, por exemplo, o recém-lançado Google NotebookLM, que gera tais resultados a partir do conteúdo fornecido pelo usuário e é capaz de criar um podcast extremamente realista a partir desse material.) Será que temos aqui algo semelhante à exigência de não usarmos calculadoras, para preservar nossa capacidade de fazer contas de cabeça? Ou, então, à proibição do uso de celulares em sala de aula, válida nas séries iniciais, mas desde sempre superada no ensino superior? (Pois muitos alunos leem no celular os textos – digitalizados – que indicamos.)

O uso massivo das IAs desafia a maneira como entendemos a produção e avaliação do conhecimento. Responder a tais desafios de maneira reativa e moralista implica ver a banda passar. Só haverá algum espaço para nossas concepções românticas de produção intelectual – que incidem diretamente em nosso modo de avaliá-la – com seus insights únicos e originais, se aprendermos a buscar essa originalidade no uso de tais ferramentas. Sua rejeição bem-intencionada, mas inócua, ou a aceitação irrefletida, mas inepta, não são opções válidas para nós, professores.

Porque, afinal, Sir Galahad vem chegando.

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