O jejum do mês do Ramadan e a psicologia islâmica

Por Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP

 Publicado: 06/03/2025 às 14:15

“Ó vós que credes! É-vos prescrito o jejum, como foi prescrito aos que foram antes de vós, para serdes piedosos.” [Sagrado Alcorão, 2:183]

Francirosy Campos Barbosa – Foto: Arquivo pessoal
Todos os anos, no mês do Ramadan, os muçulmanos escutam: “Mas vocês não bebem água também?”. Não, não bebemos! O jejum no Islam vai além da abstenção de comida e bebida do nascer ao pôr do sol; ele é um exercício de disciplina, paciência e reflexão espiritual. Durante esse período, os muçulmanos não apenas evitam a ingestão de alimentos e líquidos, mas também se esforçam para controlar seus pensamentos, emoções e ações, buscando purificação e uma maior conexão com Deus. A psicologia islâmica compreende o jejum como um meio de fortalecimento da fé, do autocontrole e da empatia com aqueles que passam fome, promovendo um estado de equilíbrio entre corpo e espírito. Esse processo não apenas reforça a autodisciplina, mas também aprofunda a espiritualidade e a solidariedade dentro da comunidade.

É importante esclarecer que o Profeta Muhammad costumava consumir uma refeição muito leve antes do amanhecer (suḥūr) e uma refeição moderada (iftār) para quebrar o jejum ao pôr do sol.

Essa é a recomendação dada aos muçulmanos. O Profeta costumava quebrar o jejum com algumas tâmaras frescas ou secas e um copo de água antes de iniciar a oração do pôr do sol. Por isso, no mês do Ramadan, distribuo saquinhos com tâmaras aos meus amigos mais próximos, mesmo que não sejam muçulmanos, como um gesto simbólico para marcar o início do mês.

O jejum do mês do Ramadan é o quarto pilar da prática no Islam e dura 29 ou 30 dias, dependendo do calendário lunar. Em 2025, o primeiro dia de jejum foi 1º de março. Durante esse período, os muçulmanos se abstêm de comer, beber, fumar e manter relações sexuais desde antes da alvorada até o maghrib (pôr do sol).

O Profeta Muhammad disse:

“Quando um de vocês estiver jejuando, deve se abster de atos indecentes e conversas desnecessárias. Se alguém começar uma conversa obscena ou tentar provocar uma discussão, ele deve simplesmente dizer: ‘Estou jejuando’.”

O jejum (ṣawm) no Islam vai muito além da simples abstinência alimentar. Ele tem um impacto profundo na psique humana, no equilíbrio emocional e no desenvolvimento espiritual. A psicologia islâmica, baseada no Alcorão, na Sunnah e em obras de estudiosos como Al-Ghazali (Ihya’ ‘Ulum al-Din / A revivificação das ciências religiosas) e Ibn Qayyim al-Jawziyya (At-Tibb an-Nabawi / A pedicina profética), interpreta o jejum como um método de purificação interna e de autocontrole, influenciando diretamente a mente e o comportamento. Essa abordagem busca compreender a psique humana por meio de uma perspectiva espiritual e ética, enfatizando a importância do equilíbrio entre corpo, mente e alma (nafs).

A psicologia islâmica vê o Ramadan como um período de transformação interna, no qual o jejum não é apenas uma restrição alimentar, mas uma oportunidade de crescimento psicológico, social e espiritual. Como dizem alguns sheiks da comunidade islâmica brasileira, “o mês do Ramadan é uma escola”. Esse mês fortalece a resiliência, o autoconhecimento e a paz interior, aspectos fundamentais para o bem-estar emocional e mental. A psicologia islâmica é um caminho valioso para compreendermos esses efeitos, que incluem o desenvolvimento do autocontrole e da disciplina, o fortalecimento da conexão espiritual e da saúde mental, o reforço da identidade islâmica, o estímulo à solidariedade e ao bem-estar social, além das mudanças no sono e nos ritmos biológicos. Contei, em um vídeo no meu Instagram, como organizo meus dias neste mês.

O jejum (ṣawm) no Islam é uma prática que vai além da abstinência alimentar, possuindo profundos impactos psicológicos e espirituais. Ele promove a disciplina, fortalece a conexão espiritual, molda a identidade do indivíduo e reforça os laços sociais. Dentre seus efeitos, destaca-se o autocontrole e a disciplina, pois o jejum ensina resistência contra os desejos e promove o fortalecimento da vontade (irādah). Ao se abster de comida, bebida e prazeres durante o dia, o indivíduo desenvolve um maior domínio sobre si mesmo, aprendendo a controlar impulsos e instintos primários.

Essa prática também favorece a adoção de hábitos saudáveis e reduz a impulsividade.

A saúde mental e a conexão espiritual também são beneficiadas, pois, durante o Ramadan, observa-se um aumento na oração (ṣalāt), na recitação do Alcorão e na reflexão espiritual. Esse período de maior dedicação a Deus ajuda a reduzir sintomas de ansiedade e depressão, proporcionando um senso de propósito e pertencimento. Vale esclarecer que pessoas que tomam remédios controlados estão autorizadas a não realizar o jejum, assim como pessoas doentes, parturientes e mulheres menstruadas (estas devem repor o jejum assim que possível, antes do próximo Ramadan, e do mesmo modo pessoas adoecidas temporariamente). No entanto, aquelas que, por questões de saúde, estiverem permanentemente impossibilitadas de jejuar devem alimentar uma pessoa em necessidade a cada dia não jejuado durante o mês.

“E aquele dentre vós que estiver doente ou em viagem, que jejue um número igual de outros dias. E aqueles que podem jejuar, mas com dificuldade, podem remir-se alimentando um necessitado.” (Alcorão 2:184)

Estudos indicam que práticas religiosas podem elevar os níveis de dopamina e serotonina, hormônios associados ao bem-estar e à felicidade. O jejum também impacta a identidade islâmica, sendo visto como uma forma de purificação da alma (tazkiyat an-nafs). Ao exercitar a autodisciplina e a reflexão, o indivíduo fortalece sua identidade islâmica e aprofunda sua ligação com os valores de sua fé. É muito comum encontrar, nesse mês, muçulmanos que estavam afastados da prática religiosa se reaproximarem. A prática de boas ações e a busca pelo aprimoramento moral também ajudam na construção do caráter e no fortalecimento do senso de comunidade.

A solidariedade e o bem-estar social são incentivados pelo Ramadan, pois esse período promove a empatia pelos menos favorecidos, permitindo que o jejuador experimente, ainda que temporariamente, a fome e a sede que muitos enfrentam diariamente. Essa experiência fortalece laços sociais, reduz sentimentos de isolamento e impulsiona a prática da caridade (zakāt e ṣadaqah), promovendo um maior senso de gratidão e contentamento psicológico. Além disso, o jejum altera os padrões de sono e alimentação, o que pode impactar o humor e a cognição. Nos primeiros dias, algumas pessoas experimentam fadiga e sonolência, mas, com o tempo, muitos relatam uma adaptação que leva a um estado de clareza mental e tranquilidade.

No Brasil, por ser uma prática reduzida a uma pequena comunidade, a dificuldade é muito maior. Muitos muçulmanos não têm acesso a uma mesquita ou a uma família islâmica, o que torna o Ramadan diferente, mas não menos importante e significativo para quem se dedica. Por isso, o uso de tecnologias, que venho acompanhando nos últimos anos, tem ajudado esses muçulmanos brasileiros a se aproximarem das práticas religiosas.

O jejum no Islam é uma prática que vai além da esfera física, trazendo transformação psicológica e espiritual. Ele fortalece a autodisciplina, promove o bem-estar mental, aprofunda a identidade religiosa e estimula a empatia social. Assim, o ṣawm é um instrumento poderoso de crescimento pessoal e espiritual, impactando positivamente a vida dos praticantes.

Para saber mais sobre esse mês, sugiro a leitura da minha tese de doutorado – Entre arabescos, luas e tâmaras: performances islâmicas em São Paulo, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 2007. Para conhecer mais sobre psicologia islâmica sugiro ler The Dilemma of Muslim Psychologists, de Malik Badri, e Islamic Counselling: An Introduction to Theory and Practice, de G. Hussein Rassool.

Ramadan Mubarak! Ramadan Abençoado! A todos os muçulmanos e muçulmanas.

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