Não dá para ter uma sociedade justa e solidária enquanto brincarmos de democracia

Por Waldenyr Caldas, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP

 Publicado: 20/06/2024
Waldenyr Caldas – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Em nosso País, quando o eleitor sai de casa para dar seu o voto ao candidato que escolheu, o faz de boa-fé. É assim que procede a grande maioria da população, e esta é a maneira mais nobre e eficiente de exercer sua cidadania. É assim também que damos conta ao Estado dos nossos deveres e direitos civis, sociais e políticos. Com este ato, cidadãs e cidadãos salvaguardam constitucionalmente o direito ao próprio sufrágio universal, à igualdade perante a lei, à educação, à saúde, enfim, aos direitos e benefícios previstos na Carta Magna. A população pode ainda cobrar as promessas feitas pelos candidatos durante a campanha eleitoral para conquistar uma das 513 cadeiras de deputado federal e, pelo menos por quatro anos, integrar o honroso cargo do poder Legislativo, tornando-se um congressista da nação em prol da sociedade.

Em nosso País, é assim que funciona o sistema presidencialista de democracia representativa. Ao tomar posse o deputado eleito, a partir desse momento, faz um juramento de fidelidade à Constituição e assume o compromisso com a população brasileira de trabalhar em benefício de toda a sociedade, independentemente de questões político-ideológicas ou partidárias. Convém registrar que esse juramento é também bastante semelhante ao que faz o presidente da República no momento de tomar posse.

Por ser o chefe do poder Executivo, o presidente tem responsabilidades administrativas a mais, e que não cabem diretamente aos deputados federais. Isso não significa, evidentemente, que os deputados não estejam compromissados com a administração do Estado. Eles estão sim. Como se sabe, o Congresso Nacional formado por deputados e senadores está estreitamente ligado à administração do Estado, uma vez que legislam justamente para que o poder Executivo possa, dentro das prerrogativas legais, executar seu trabalho de administração do Estado.

Além disso, em alguns casos, essa governança que é baseada justamente nas leis elaboradas pelo Poder Legislativo e na Constituição Federal, precisa passar por uma análise e aprovação ou não do Congresso, que compreende a Câmara dos Deputados e o Senado. Temos aqui, portanto, o indispensável diálogo entre os poderes Executivo e Legislativo para se chegar a um consenso. Com esse entendimento, o poder Executivo, na pessoa do seu presidente e de seus respectivos ministros, pode dar continuidade à administração do Estado em todos os segmentos necessários para o bem-estar da sociedade.

Pois bem, é precisamente nesse momento que vem à tona a fragilidade do sistema de democracia representativa. Este consenso entre os poderes Legislativo e Executivo tem se tornado cada vez mais raro, uma vez que o presidente, chefe do poder Executivo, para cumprir suas promessas de campanha e dar continuidade ao seu programa político, necessita sempre ter o apoio da maioria dos parlamentares para votar favoravelmente às suas propostas. Isto não tem acontecido com o governo do presidente Lula, o que dificulta seriamente a sua administração para realizar as promessas de campanha.

Sendo assim, esta situação, que tem sido bastante recorrente, desfigura seu projeto político e governar o País torna-se ainda mais difícil. Um dos melhores exemplos desse verdadeiro quiproquó entre os poderes Executivo e Legislativo (e aqui deve-se incluir também o STF) está nas observações inteligentes feitas pelo cientista político Christian Lynch à revista Carta Capital ao analisar, entre outras coisas, as questões econômicas relativas à cobrança de imposto sobre a folha salarial de 17 segmentos empresariais. Diz ele: “O Congresso não respeita mais a autonomia dos outros poderes. Nem do Executivo, principalmente em matéria orçamentária, nem do STF, na busca por impunidade e o direito de tomar decisões inconstitucionais e ninguém as examinar. Quer mandar sozinho no País”.

É evidente que em uma democracia a oposição é imprescindível justamente para, com o grupo de situação, debaterem sobre os problemas e as necessidades do País. É nesse momento exatamente que a desinteligência passa a dominar o cenário no Congresso. Diferentemente do que se possa pensar, os verdadeiros problemas e necessidades do País ficam à margem do debate político e prevalecem os interesses alheios às promessas feitas pelos deputados em campanha eleitoral e posteriormente eleitos pelo voto popular. Reitero o que já disse anteriormente: há um certo número de deputados que levam a sério suas promessas e as defendem sempre que podem, mas são minoria, bem minoria. A maioria defende interesses corporativos quase sempre por conveniência pessoal em face de acordo firmado durante a campanha eleitoral.

Há também, é claro, o deputado que por orientação de seu partido político vota contra as propostas do governo por questões de ordem político-ideológica. Mas recentemente também por questões religiosas, como tem feito a chamada Bancada Evangélica. O melhor e mais conhecido exemplo atualmente, mas não o único, é o do grupo conhecido por “Centrão”, comandado e orientado nada menos que pelo presidente da Câmara dos Deputados. Lamentavelmente, são aqueles parlamentares que pensam da forma mais predadora, ou seja: “quanto pior, melhor”. Quando lhes interessa, fazem uma política extremamente nociva. É a antipolítica prejudicando e boicotando decisões que poderiam beneficiar a sociedade, especialmente aos estratos mais modestos da população. São nessas situações que o eleitor se sente lesado em sua boa-fé ao escolher seu candidato. É também nesse momento que o próprio parlamentar desconsidera completamente o juramento de posse que fez no Congresso.

Pois é, caro leitor, você já viu, ouviu e/ou leu sobre essa desfaçatez de alguns parlamentares que, por diversos motivos, pertencem ao chamado “baixo clero” do Congresso, segundo seus próprios colegas de parlamento que usam corriqueiramente este termo para a eles se referirem. A essa altura dos acontecimentos políticos, há que se pensar nos eleitores que votaram nesses deputados para nos representar na Casa do Parlamento. Pois é, decepcionados ou não com a performance dos deputados em quem votaram os eleitores devem se perguntar: e agora? Ora, agora ou se faz um movimento popular ordeiro dentro dos trâmites legais para retirar esse deputado do parlamento por infringir os artigos 54 e 55 da Constituição, que prevê, entre outras coisas, a perda de mandato, ou então fica como está e espera-se pelo fim do seu mandato e não se vota mais nele para sua reeleição.

Quero me antecipar e registrar que não se trata de entender ser esse sistema frágil em sua essência, não é isso. Em nosso País, pelo menos, ele é fragilizado em sua base em decorrência do jogo político na capital federal, como já demonstramos acima. Para melhor entendimento da real responsabilidade de um deputado para com a Constituição brasileira, seu eleitor e a sociedade como um todo, faz-se necessária a transcrição do seu juramento no momento da posse no Congresso Nacional. Vejamos: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Diante deste juramento, podemos afirmar com segurança o seguinte: com raras exceções, que não é o caso de serem aqui citadas, os deputados não estão interessados em cumprir seu juramento de posse, muito menos em respeitar a Constituição do País.

E o mais irônico em tudo isso é que alguns deputados que fazem discursos com um linguajar empolado, campanudo, que mais lembram os tempos do parnasianismo, já estão com essa fala, preparando sua reeleição para mais um mandato. É nesse momento que aflora a demagogia em sua plenitude. Eles invocam sistematicamente a Constituição e a “defesa” das leis criadas pelo Congresso, como se fossem grandes tribunos a clamar, por exemplo, justiça social, mas não só. Outros ainda menos preparados para o importante cargo que exercem, mas que afinal precisam marcar sua presença em plenário, deitam falação fazendo proselitismo canhestro no uso do vernáculo e abusando da função fática da linguagem, ou seja, de um palavreado oco, desconexo, que nada diz, mas tem seu momento de presença na tribuna da Casa das Leis. Este é um quadro desolador. A impressão que nos passa em determinados momentos é que esses parlamentares desinteressados em seu compromisso com o eleitor e a Constituição estão brincando de democracia. Que qualquer pessoa poderá assistir as sessões pela TV Câmara, ou pelas redes sociais YouTube e Facebook.

Rigorosamente, tudo isso não passa de um jogo de cena, algumas vezes até bizarro. São essas mesmas autoridades do nosso País que, também sistematicamente, desrespeitam não apenas a Carta Magna, mas as próprias leis que, pelo menos teoricamente, ajudaram a elaborar durante o seu mandato. Se o eleitor olhar criticamente o perfil dessa cidadã ou cidadão, certamente em outra oportunidade de votar evitará o ludibrio, e o seu voto ganhará outros contornos que poderão melhorar o diálogo entre Estado e sociedade e, por decorrência, criar um melhor entendimento entre os três poderes, especialmente no caso do Legislativo e o Executivo.

Desde o momento em que ele decide se candidatar a uma cadeira de deputado federal, seu objetivo principal não é exatamente trabalhar em prol da sociedade. Pode-se dizer sim, que este é o objetivo “coadjuvante” e, portanto, não tem a mesma importância no tocante aos reais interesses da população. Sendo assim, convenhamos, já não se justificaria a sua presença na Câmara dos Deputados. Há muitos exemplos empíricos do que aqui registro na história política do nosso país. Basta lembrarmos, por exemplo, das inúmeras cassações que ocorreram em tempos recentes, por corrupção e tantas outras falcatruas que não preciso enumerá-las porque tornaram-se públicas e do conhecimento de todo o País. Deputados dessa estirpe são predadores e desagregadores, não fazem nenhuma falta no Congresso Nacional.

Há isto sim, de forma subliminar, portanto, não revelado, o desejo de adquirir o poder de deputado federal e ver sua vida e de seus familiares facilitada. A essa altura, o juramento torna-se qualquer coisa, porque uma boa parte dos deputados não o levam a sério. Alguns desses parlamentares o consideram uma cerimônia meramente protocolar que se esvai rapidamente. De fato, por uma questão de conveniência, esse juramento cai no “esquecimento” só para alguns (mas para outros que o respeitam não), transformando-se em ludibrio e engodo das massas que, bem-intencionadas, acreditaram naquele deputado ao darem a ele o seu voto. Estou falando de uma situação recorrente no Congresso Nacional, mas que é também de domínio público. Todos os veículos de comunicação de massa noticiam sempre que algum desses deputados por algum motivo é cassado. São verdadeiras nulidades que, ao se empoderarem com o status deputado federal, não trabalham como deveriam fazê-lo para justificar sua eleição a um cargo político dessa magnitude. Não posso falar se isso acontece em outros países porque não tenho esse conhecimento (é provável que sim), mas no Brasil há uma tradição sinistra dessas figuras em nossa política. O reflexo disso é que poderíamos ter um Congresso Nacional muito mais eficiente e atuante no tocante aos problemas básicos e estruturais do País. Mas a eficiência dessa Casa, e sua imagem pública, ficam comprometidas justamente pela presença nociva desses maus políticos.

Por conta desses descompassos políticos a educação, por exemplo, não vai bem no Brasil. Não há espaço neste artigo para me alongar sobre esse tema tão delicado, mas de qualquer forma cito aqui alguns números preocupantes. Recentemente, no dia 17 de maio de 2024, o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – tornou público alguns dados estatísticos sobre o analfabetismo em nosso País. Apesar de ter diminuído percentualmente de 2010 para cá, quando essa taxa era de 9,6% e agora é de 7% em 2022, não temos motivos para comemorar. Existem ainda 11 milhões e 400 mil analfabetos plenos, acometidos dessa “doença social” chamada analfabetismo. Convém registrar que o analfabeto funcional, ou seja, cidadãos que identificam letras e números, mas não têm condições intelectuais para interpretações que exijam um pouco mais de informações e familiaridade com nosso vernáculo e a aritmética, não estão inclusos na percentagem acima citada. Devemos saber ainda que o índice de analfabetismo entre a população indígena era de 15,1% em 2022.

Enfim, são problemas estruturais como a educação, a saúde e o desemprego, entre outros, que permanecem muito presentes impedindo um avanço maior para o nosso desenvolvimento econômico e social. O conjunto desses problemas e o desempenho pífio das autoridades impede que possamos até mesmo pensar a curto ou médio prazo em justiça social em nosso País, muito embora o artigo 3º da Constituição Federal de 1988 mencione que devemos “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Livre, sim. Podemos usar o verbo e transformar um lugar público em parlatório, ainda que momentaneamente, para fazermos protestos sem que isso se converta em crime ou qualquer outra contravenção. Não podemos, evidentemente, fazer ofensas pessoais a ninguém nesse parlatório, mas se expressarmos nosso descontentamento com o desempenho sofrível dos políticos sobre a forma com têm conduzido nosso país não teremos problemas. Nesse aspecto, a Constituição tem sido realmente respeitada e temos assegurado, de fato, o direito a contestações. Mas isso é muito pouco.

E no tocante a uma sociedade “justa e solidária”, como reza o terceiro artigo acima mencionado, não é possível concordar. Não temos uma sociedade justa e solidária. Isto só ocorre quando os acontecimentos causam comoção nacional como, por exemplo, a tragédia que vive o povo gaúcho nesse momento. É tradição funesta no Brasil a injustiça social. Desde a Proclamação da República, até nossos dias, sempre houve grande disparidade de distribuição da riqueza produzida no país entre as classes sociais. A distribuição de renda tem se mostrado uma realidade perversa e de difícil consenso em nosso país. A bem da verdade, com raras exceções em alguns governos essa diferença até chegou a diminuir, mas não o suficiente para amenizar a condição daquelas pessoas marginalizadas do processo produtivo. Estou me reportando ao governo de Itamar Franco, quando convidou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para assumir o Ministério da Fazenda. Ele criou o Plano Real e acabou com a hiperinflação, recuperando de forma expressiva o poder aquisitivo da população, especialmente entre os mais pobres. Com isso, é claro, houve uma notável melhora da economia, diminuição o desemprego, enfim, o Plano Real criou condições melhores para as populações pobres do País, diminuindo sensivelmente a desigualdade social. Algo muito semelhante ocorreu com o segundo mandato do presidente Lula quando sua aprovação popular chegou a 82%. Nas gestões posteriores, no entanto, aos poucos, fomos voltando ao pesadelo da instabilidade da economia e de todas as consequências que este quadro pode trazer, especialmente no que diz respeito ao recrudescimento dos problemas sociais.

Em que pese os esforços do poder Executivo e os momentos de desinteligência com o poder Legislativo sobre a forma de conduzir o País (ou talvez por isso mesmo), o fato é que a pobreza e a extrema pobreza tornaram-se em nosso País, uma espécie de “doença incurável”, e que ciclicamente volta a atormentar ainda mais essas populações que, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, está distribuída da seguinte maneira: em 2022, tínhamos em nosso país 12,7 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza e 67,8 milhões na pobreza. Isso nos coloca entre os países do G20 com percentual muito elevado na linha de pobreza. Apenas a Índia nos supera. É preciso considerar, porém, que este país tem 1.417 bilhão de habitantes, enquanto nós temos 215,3 milhões. O que significa uma população sete vezes maior que a nossa.

Mas, dados estatísticos à parte, devemos reconhecer que alguns presidentes até procuraram combater a desigualdade social. No entanto, como se sabe, criar leis é tarefa do poder Legislativo e não do poder Executivo. As coisas começam a complicar já no Congresso Nacional, a Casa das Leis. Além disso, temos aqui em nosso País uma cultura muito perversa. Não são poucas as leis que entraram em vigor, mas não se consolidaram, não foram obedecidas e, portanto, não têm o efeito desejado, que é sempre de aprimorar as relações entre o Estado e a sociedade. Temos ainda o lamentável, o deplorável “jeitinho brasileiro”, cujo objetivo é levar vantagem em detrimento do outro, e para isso burlam-se as leis, as normas e ignoram a ética já tão sistematicamente vilipendiada no Congresso. Qualquer lei que tenha o objetivo claro de estabelecer critérios de melhor distribuição da riqueza produzida no país, encontra forte resistência no Congresso Nacional por parte daqueles parlamentares, que não estão a serviço do povo (só em casos eventuais), e sim do capital. Sempre que vejo pela TV Câmara ou pela grande imprensa discussões sobre esse tema, lembro-me de uma recente obra do artista plástico Claudio Tozzi, onde aparece a seguinte frase: “é necessário que o capital não exceda a poesia”. Aqui o capital é o capital em si mesmo, mas a poesia, tudo indica, representa a justiça social. No entanto, há um hábito quase sistêmico no parlamento, onde não há espaço para se pensar em justiça social. A reação dos defensores do capital vem a posteriori, mas sempre vem e de forma dissimulada. O objetivo é debilitar a própria lei, e para isso usando de instrumentos legais como o lobby. Enfim, este é um mecanismo da lógica interna do capitalismo, contestá-la ou não é uma questão que nesse momento não há espaço para ser discutida aqui.

Pois bem, me pergunto e tomo a liberdade de perguntar ao leitor como ele vê um país em que nossas autoridades e os media falam a todo momento sobre “nossa democracia”, como se realmente fosse um fato consumado. Não, não é bem assim. Aliás, não é assim. Ora, as necessidades básicas para se manter uma vida com dignidade não são extensivas a toda população. Todos os media e nossas autoridades sabem disso. Estou falando de educação, saúde, saneamento básico e de milhões de pessoas que não conseguem emprego, das precárias condições de habitações penduradas nos morros de grande parte das cidades brasileiras, e de cidadãs e cidadãos que passam fome nos grandes centros urbanos. Para sobreviverem, eles contam com as instituições assistencialistas e a generosidade das pessoas. Estes são os miseráveis, os moradores de rua cuja população tem aumentado sistematicamente. Com este quadro social, estamos muito longe de alcançarmos uma democracia plena e, portanto, de justiça social, um dos pilares para qualquer país que se pretende realmente democrático.

E aqui mais uma vez,quero lembrar o artigo 3º da Constituição. Por esses motivos, portanto, não posso concordar que nosso País viva uma democracia. Vivemos, isto sim, uma plena liberdade política e o direito ao contraditório. Temos o direito constitucional de contestar determinadas condutas e atuações do governo quando com elas não concordamos. Talvez fosse mais justo e honesto aceitar o que o ex-presidente Geisel (quarto presidente da ditadura militar) e o presidente Lula disseram em diferentes momentos históricos do Brasil. Em contextos sociopolíticos muito diferentes, tanto no plano nacional como internacional, ambos declararam em entrevistas a jornalistas que vivemos uma “democracia relativa”. Acredito que a fala de Lula se aproximou muito mais do que a de Geisel da nossa realidade sociopolítica e econômica. Provavelmente por sua experiência política como militante do Sindicato, mas também pelos seus três mandatos como presidente.

Para melhor entendimento do caro leitor, quero comentar rapidamente esses dois momentos da política brasileira. Em seu governo, um mês depois de fechar o Congresso Nacional, Geisel colocaria em prática o chamado “pacote de abril”. Com essa medida, ele criava sérios cerceamentos às liberdades individuais e adiava a abertura política proposta por seu próprio governo. Quando entrevistado pela imprensa francesa disse que “o Brasil é uma democracia relativa. Todas as coisas no mundo, exceto Deus, são relativas”. Uma semana depois de suas declarações, ele reiterou à Rádio e Televisão Francesa a condição política do Brasil como uma “democracia relativa”.

Em outro contexto histórico bem diferente, o presidente Lula, já em seu terceiro mandato, concedendo entrevista muito tensa a uma Emissora de Rádio Gaúcha, também relativizou o conceito de democracia ao falar sobre o apoio do Brasil à Venezuela. Em determinado momento ele respondeu ao seu entrevistador: “ […] o conceito de democracia é relativo pra você e pra mim”. Mas logo em seguida, ao mencionar ter sido eleito três vezes para governar o País, ele disse: “Por isso é que eu gosto da democracia e a exemplo da sua plenitude.” Não tenho certeza, mas quero crer que Lula estava se referindo à plenitude da democracia, do seu desejo de ver um país democrático em sua plenitude. De qualquer forma, está aí esta frase para, provavelmente, suscitar as mais diversas interpretações e opiniões dos leitores. Enfim, existe por parte da sociedade e do eleitor a expectativa de que um dia, sem exceção, todos os parlamentares do Congresso Nacional (alguns já o fazem com rigor e competência) levem a sério o poder e a responsabilidade que têm. A democracia não é brincadeira, não é instrumento lúdico de ninguém. Quero finalmente registrar que este quadro de displicência e de irresponsabilidade com os interesses da sociedade é um fato histórico recorrente e predador. Por isso mesmo é necessário extirpá-lo em sua base.

Um dos grandes obstáculos à boa governança do País é a quantidade exagerada de partidos políticos na Câmara Federal. Em 2018 eram 30, mas atualmente são 23. Melhorou, mas é necessário reduzir ainda mais. É quase impossível ao chefe do poder Executivo atender as reivindicações de todos eles. A presença excessiva desses partidos tende a dificultar muito o diálogo e as negociações entre os poderes Executivo e Legislativo. Em outros termos, essa dificuldade emperra a máquina administrativa do Estado, exatamente como temos visto nas ações do chamado Centrão, um conglomerado de partidos políticos liderado pelo presidente da Câmara Federal, que dificulta sobremaneira o trabalho do Poder Executivo em detrimento dos interesses da população.

Este grupo usa sua força justamente por reunir um considerável número de deputados que pesa muito contra ou a favor (é raro ser a favor, mas acontece quando é do seu interesse) nas votações de pauta da Câmara dos Deputados. Com isso, o presidente que precisa aprovar seus projetos, fica à mercê deste grupo. Se não atender suas reivindicações, quase sempre oportunistas e com objetivos de levar vantagens, o presidente não terá a aprovação necessária na Câmara Federal para administrar o País como propôs em seu plano de governo. É o que tem acontecido sistematicamente com o atual governo. Nesse momento, o que menos pensa o grupo de deputados do Centrão e de outros partidos de oposição com os mesmos objetivos é no eleitor e no juramento que fizeram em defender a Constituição.

Após a instituição da cláusula de barreira (cada partido tem que eleger no mínimo 11 deputados), nas próximas eleições a tendência é melhorar, uma vez que alguns partidos não conseguirão atingir este número de deputados eleitos. Além disso, a sigla que não conseguir cumprir a cláusula de desempenho, que consiste em alguns requisitos para que possa ter participação no Fundo Partidário e no tempo de televisão para a apresentação de seus candidatos, terão como alternativa migrar para outra sigla. Enquanto isso não ocorre, qualquer cidadão que se dispuser a assistir às sessões da Câmara Federal muito provavelmente terá a impressão de que alguns deputados estão brincando de democracia ou do jogo do perde-ganha. É assim, mas temos obrigação de melhorar tudo isso, nosso voto continua sendo muito importante, ele só precisa ser mais criterioso ao escolhermos um candidato.

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