Luiz Gama: rábula, não; doutor!

Por Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 25/06/2021 - Publicado há 4 anos
Dennis de Oliveira – Foto: IEA

Nasci na cidade de São Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da Rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, pelas sete horas da manhã, e fui batizado, oito anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.

Assim Luiz Gama conta o início da sua história na carta autobiográfica de 1880 endereçada a Lúcio de Mendonça, advogado e jornalista, um dos idealizadores da Academia Brasileira de Letras. Nessa mesma carta, Luiz Gama conta que era filho natural de “uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luísa Mahin” (líder da Revolta dos Malês), e que seu pai “era fidalgo e pertencia a uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome”, e que, em certo momento, “vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho Saraiva“.

A trajetória desse que é um dos primeiros intelectuais públicos brasileiros se inicia na luta pela sua abolição. Nascido livre e vendido como escravizado, Gama foi alfabetizado somente após os 17 anos de idade e, em São Paulo, quando posto à venda como escravizado, foi rejeitado por boa parte dos escravagistas por ser “baiano”, que naquela época significava ser rebelde (por conta das várias rebeliões de escravizados que ocorreram naquele Estado no século 19). Segundo a professora Ligia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), “Luiz Gama condensaria suas múltiplas e inauditas metamorfoses: de criança livre a criança escrava, de escravo a homem livre, de analfabeto a homem de letras, de ‘não cidadão’ a homo politicus, do anonimato à notoriedade, sem esquecer as mudanças de estado associadas às diversas atividades e profissões por ele exercidas (escravo doméstico, soldado, ordenança, copista, secretário, tipógrafo, jornalista, advogado, autoridade maçônica)”.

Essas metamorfoses não ocorreram ao acaso: foram fruto das contradições de uma sociedade escravista e patriarcal que estava em lento processo de mudança, mas que viu um acelerar dessas transformações na figura de Luiz Gama em função da sua capacidade de interpretação, análise e práxis política.

Autodidata, Luiz Gama transitou pelo direito, ainda que, segundo Nelson Câmara, tivesse negado o seu pedido de inscrição na Faculdade de Direito do Largo São Francisco por ser negro.

Em uma das suas ações mais famosas em defesa da liberdade de Jacinto, negro escravizado que fugiu da Comarca de Jaguari (MG) e buscava sua liberdade em juízo, Luiz Gama estabeleceu a conhecida polêmica contra o magistrado paulista Rego Freitas (que hoje é nome de uma rua conhecida no centro de São Paulo). Rego Freitas considerava que o foro competente para julgar o caso seria em Minas Gerais, localidade do senhor do escravizado. Luiz Gama considerou o despacho do juiz como “ofensivo da lei”; que ele deveria cumprir “seu rigoroso dever”, solicitando que o juiz “reconsiderasse o seu fútil despacho”. A ousadia do rábula negro em confrontar em palavras o juiz (que era oriundo das elites oligárquicas) teve o preço: ele foi demitido do seu emprego público e ainda sofreu um processo por injúria e difamação. Foi a julgamento e, em 1870, depois da sua brilhante autodefesa no tribunal, foi inocentado.

Esse fato certamente não passou despercebido por Gama: sabia ele que as condições de atuação como negro abolicionista não podiam se limitar ao campo jurídico, controlado justamente pelos setores beneficiados pela manutenção da ordem escravista. Era necessário atuar como homo politicus e isso ele faz brilhantemente como jornalista – sendo um dos fundadores do Diabo Coxo, em 1864, junto com Angelo Agostini, jornal humorístico que fazia críticas duras à sociedade da época com charges de Agostini e textos de Luiz Gama, e de O Cabrião, a partir de 1866, junto com Agostini, Américo Campos e Antonio Manuel Reis, no mesmo tom.

Complementando a atuação jornalística, Luiz Gama também foi um homem das letras com a publicação de Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, em 1851, que em determinado momento diz:

Escravo, não, ainda vivo,
Ainda espero a morte ali;
Sou livre embora cativo,
Sou livre, ainda não morri!
Meu coração bate ainda
N’esse bater que não finda;
Sou homem—Deus o dirá!
D’este corpo desgraçado
Meu espírito soltado
Não partiu—ficou-me lá!

As metamorfoses na vida de Luiz Gama sintetizam o processo de transformação acelerada pela sua atuação como cidadão. Expressam o visionarismo típico de um intelectual público.

Luiz Gama foi reconhecido como advogado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2016, em um ato simbólico realizado na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e como jornalista em uma atividade promovida pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de S. Paulo, em 2017. Agora falta a conclusão desse reconhecimento, ainda que tardio, como intelectual público, por meio da concessão do título de Doutor Honoris Causa pela maior Universidade do País, proposto pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), pois a reparação, ainda que tardia, faz-se necessária.


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