Coletânea de reflexões busca apresentar um novo olhar sobre o papel dos indígenas na história brasileira - Fotomontagem com imagens de Agência Brasil e Wikimedia Commons

Repensando a Independência brasileira, livro promete romper estereótipos sobre o papel de indígenas

Obra organizada por historiadores apresenta um novo olhar sobre o envolvimento dos povos nativos nos acontecimentos históricos do Brasil, junto a biografias e entrevistas com indígenas Kayapó, Tapeba e Juruna; lançamento acontece na USP

 13/02/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Camilly Rosaboni e Tabita Said

Arte: Joyce Tenório e Carolina Borin

“Não há como projetar o futuro sem conhecer sua história, suas raízes.” É desta forma que a historiadora Vânia Moreira apresenta a intenção do livro Povos indígenas, independência e muitas histórias – Repensando o Brasil no século XIX, propondo ampliar as visões de palcos possíveis para a Independência do Brasil, além das margens do Ipiranga. A obra, que será lançada no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP no dia 1º de março, explora a própria experiência indígena enquanto agentes ativos da história, paralelamente aos grandes e velhos conhecidos protagonistas. O evento será transmitido on-line, no canal do YouTube da Cátedra de Educação Básica da USP, das 14 às 17 horas. Para participar, não é necessário se inscrever. 

A coletânea de reflexões busca apresentar um novo olhar sobre o papel dos indígenas na história brasileira, em um processo de renovação historiográfica. A partir dessa reflexão, é possível pensar na discussão de novos problemas, temas e perspectivas em uma nova história indígena, sob suas próprias interpretações e perspectivas.

“O Brasil construiu uma memória acerca do processo de independência que exclui os povos indígenas. Há um processo, lá em 1822, e depois ao longo de todo o século 19 e boa parte do século 20, que pensa os povos indígenas como povos em processo de assimilação e extinção. Então, a gente está querendo dizer que esses povos não estão no passado; são povos do presente, estão caminhando para o futuro e têm história”, afirma Vânia, que é professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), especialista em história indígena no período colonial e no processo de formação dos Estados nacionais na América Latina. Ela é uma das organizadoras do livro, que será lançado no IEA pelo Grupo de Pesquisa Tempo, Memória e Pertencimento.

Vânia Moreira. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

Uma das abordagens trabalhadas pelos autores procura contrariar estereótipos dados à população nativa. Entre eles, a presumida indiferença ou incapacidade das populações indígenas de lidarem com processos e acontecimentos históricos em que estavam direta ou indiretamente envolvidas, e a suposta insignificância delas na composição das estruturas e conjunturas históricas.

“É um livro de história, no qual vamos contar sobre esse segmento da população que foi tendo contato em diferentes momentos do processo histórico com a sociedade colonial colonizadora”, explica Vânia, destacando a diversidade dos povos indígenas, não apenas do ponto de vista linguístico e cultural, mas na forma como se deu o contato com o homem branco – não indígena. “A Independência é um processo que culmina em 1822, não foi um raio que caiu! Se você pensar nessa longa duração, na Independência como processo, a chegada de Dom João aqui no Brasil representou a decretação de guerras contra vários povos que estavam nas florestas, nos sertões, de maneira muito violenta. E isso é diferente, por exemplo, do que representou para povos que já estavam morando em aldeamentos e vilas”, diz. 

Capa do livro "Povos indígenas, independência e muitas histórias – Repensando o Brasil no século XIX". Foto: Editora CRV/Divulgação

A versão digital do livro está disponível no site da Amazon por R$ 3. Já o livro físico, com mais de 600 páginas, está à venda na loja virtual da Editora CRV por R$ 151,90. No site da editora, é possível experimentar a leitura do sumário e do prefácio, assinado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira, curador das coleções etnológicas do Museu Nacional. Oliveira realizou pesquisa de longa duração junto ao povo Tikuna e é um dos fundadores do Maguta: Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões, sediado em Benjamin Constant (AM), que deu origem ao Museu Maguta, hoje administrado diretamente pelo movimento indígena. A capa do livro é uma fotomontagem criada pelo jovem artista indígena Kadu Santos, pertencente ao povo Xukuru do Ororubá. Representante do movimento Futurismo Indígena, fotógrafo e formado em Design, o artista utiliza as duas áreas para criar obras com uma perspectiva decolonial.

Escrito durante a celebração dos 200 anos da Independência, o livro também foi gerado em um contexto social de extremo descaso com a população indígena – o que, segundo Vânia, já vinha sendo denunciado por pesquisadores próximos. A professora lembra que embora o caso dos yanomami tenha sido revelado mais recentemente, os povos indígenas já viviam uma situação dramática de escassez e invisibilidade. “Você vai à escola e não vê nada em história ou geografia. Daí, abre o jornal ou liga a televisão e está lá: ‘genocídio indígena’. As pessoas se perguntam: quem são? De onde vieram? Onde eles estão e o que fizeram nos últimos 500 anos que os brancos estão aqui? Isso é um susto, não é? A gente tem que acabar com esse susto”, propõe.     

Vânia lembra que somente na segunda metade do século 20 a historiografia passou a ampliar a perspectiva histórica da Independência, incluindo a visão de escravizados, trabalhadores, mulheres e indígenas nesse momento histórico que foi protagonizado pelas elites. Para ela, este processo gerou um projeto autoritário de não aceitação do modo de vida dos povos tradicionais. “Essa conquista dos indígenas poderem ser parte da sociedade e cidadãos brasileiros, mas na condição de indígenas, é uma aquisição muito recente do Brasil. A Constituição de 1988 prevê a possibilidade dos indígenas continuarem sendo indígenas e parte da nação, então você cria uma outra mentalidade”, destaca.

O livro

Povos indígenas, independência e muitas histórias – Repensando o Brasil no século XIX é dividido em três partes: História, Memória e IdentidadesGuerras e Fronteiras; e Terra, Trabalho e Participação Política, além de um capítulo de abertura denominado Diálogos, com entrevistas do cacique Megaron Txucarramãe, do povo Kayapó, e do vereador Ricardo Weibe Tapeba, atual secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde. 

O livro se encerra com uma homenagem em forma de biografia a Mário Juruna, o primeiro deputado federal indígena do Brasil. O capítulo final foi escrito pelo pesquisador João Gabriel da Silva Ascenso, vencedor do Prêmio Capes de Teses de 2022 com pesquisa de doutorado sobre a história do movimento indígena no período da ditadura militar.  

“A gente estabeleceu um diálogo com uma historiografia mexicana, falamos das fronteiras e guerras internas, como a dos Kaigang, também internacionais, porque no processo de independência havia muitos povos indígenas dividindo fronteiras com outras nações”, conta Vânia, destacando ainda a participação de indígenas na Guerra do Paraguai e o trabalho escravo. 

“Também trabalhamos a questão da participação política nas chamadas vilas indígenas, que é uma coisa pouco conhecida ainda dos brasileiros. Eles participavam como vereadores, juízes das suas vidas coloniais”, explica. Neste capítulo, pesquisadoras e pesquisadores descrevem como foi o processo de independência nesses lugares em que já havia certa emancipação e organização política própria.  

Autoria

Além da especialista em história indígena Vânia Maria Losada Moreira, participam da organização e autoria Mariana Albuquerque Dantas, professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenadora do GT Os Índios na História, da Associação Nacional de História (Anpuh), e o vice-coordenador do grupo, João Paulo Peixoto Costa, também professor do Mestrado Profissional em Ensino de História do Instituto Federal do Piauí.

Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo, outra colaboradora do livro, também coordenou o grupo de pesquisa da Anpuh e é professora adjunta na Universidade Estadual de Pernambuco (UEP), especialista em história indígena do Brasil colonial e imperial; e Tatiana Gonçalves de Oliveira, doutora em história na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com pesquisas sobre a história indígena no Brasil e membro do grupo da Anpuh.

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