“Homeschooling”: a prática de educar em casa

Carlota Boto é professora titular de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP

 16/03/2018 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 12/11/2018 às 13:22

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Carlota Boto – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A educação é uma matéria sobre a qual todos julgam ser especialistas. Basta nascer um bebê, que veremos pai, mãe, avós, tios – todos juntos – indicando roteiros e procedimentos sobre como deverá ocorrer a educação da criança. E isso vai pela vida afora. Há, por sua vez, uma desconfiança generalizada sobre a instituição encarregada de conferir a essa criança seu modelo de formação letrada.

A escola contemporânea tem sido objeto de críticas e questionamentos por parte de inúmeros setores da vida social. Considera-se a instituição obsoleta, diz-se que ela não foi capaz de acompanhar os tempos, que a velocidade das informações na sociedade digital tornou a escola desatualizada em relação àquilo, inclusive, que é sua razão de ser: a formação da cultura letrada. Há claramente uma crise nas imagens pelas quais a escola é representada para a população. E isso não acontece somente no Brasil. Um dos efeitos disso consiste no aumento de uma nova modalidade de educação – o homeschooling ou educação doméstica – praticamente desconhecida entre nós, brasileiros, embora tenhamos já um contingente possível de 2.500 famílias que, de acordo com dados recentes da Associação Nacional de Educação Domiciliar, são suas adeptas.

Praticado por 63 países, silenciosamente, cresce no Brasil o número de famílias que se recusam a enviar seus filhos à escola, proporcionando a eles ensino domiciliar. Isso, que alguns caracterizam como “intensiva educação dos filhos”, corresponde a uma prática que supõe que a formação letrada será ministrada pelos pais ou por especialistas por eles escolhidos, retomando aquilo que, tempos atrás, era chamado de preceptoria.

No que diz respeito à legislação brasileira, a orientação é clara: desde 1934 é firmada a obrigatoriedade escolar, que envolve, a um só tempo, a obrigação de o Estado oferecer escolas e a obrigação de os pais enviarem seus filhos à escola. Os adeptos do homeschooling – o ensino doméstico ou domiciliar – alegam que há brechas na legislação brasileira, o que possibilita a defesa dessa modalidade de educação. Afirmam, para isso, basicamente os princípios de liberdade de escolha do tipo de instrução que os pais desejam dar a seus filhos. Mais do que isso, criticam o sistema de ensino por sua homogeneidade, argumentam que há defasagens estruturais no modelo de ensino público brasileiro, declaram questões de violência, de drogas e de bullying em sala de aula. Alegam também argumentos de foro religioso e moral.

Entre os próprios representantes do Poder Judiciário, não há acordo no que diz respeito à autorização e à regulamentação dessa prática. Há juízes favoráveis, que encontram brechas na legislação e propõem sua flexibilização; e outros se opõem. Os argumentos contrários são aqueles que se reportam à dimensão socializadora da escola. A escola, além de ensinar a ler, a escrever e a contar – no sentido clássico –, é uma “forma de socialização”. Por ser assim, há ensino de valores, de atitudes e de regras e parâmetros de convivência que, por ela, passam.

Além disso, haveria uma responsabilidade pública pela educação. E esta passa pela defesa da escola. Finalmente, as pessoas que criticam a educação doméstica recordam que apenas uma elite poderia ter a opção de não enviar seus filhos à escola; posto que, para tanto, seria um requisito a possibilidade de a família ou deter consigo o domínio dos saberes escolares a serem ministrados ou possuir condições financeiras para contratar um professor particular em casa, que substituísse a escola. Trata-se de algo muito para além de um estilo de vida. Com quem essas crianças que não vão para a escola conviveriam? Quem seria a instituição que se colocaria como intermediária entre a família e a vida social – se a escola, por definição, for excluída das ações sociais dessa juventude?

Um aspecto que depõe contra a experiência escolar é a dificuldade que a escolarização tem tido em corresponder com suas práticas ao enorme avanço tecnológico manifestado, sobretudo, pela vida digital. A mudança nas condições de acesso ao conhecimento, bem como a velocidade no fluxo das informações, tudo isso precisaria ter alguma correspondência nos modos pelos quais a escola lida com o conhecimento. A aplicação das novas tecnologias às situações escolares tem sido lenta e insatisfatória. Isso leva a que se tenha a percepção de que a escola é antiga, como se ela não mudasse, como se ela estivesse atada a práticas arcaicas que teimam em se reproduzir.

Nesse sentido, no caso do Brasil, especialmente as crianças de camadas médias e economicamente fortes chegam à escola com um repertório que vai muito além daquilo que seus pais lhes ensinaram. As crianças e especialmente os adolescentes dialogam com práticas das redes sociais, da internet, das séries que assistem na televisão – enfim, todo um caldo cultural que a escolarização não interpela.

Nos Estados Unidos, país que possui hoje mais de 2 milhões de crianças em idade escolar fora da escola, um dos principais motivos para a prática do homeschooling é religioso. São as minorias religiosas, bem como minorias étnicas que, de acordo com os estudos sobre o assunto, aderem a essa nova modalidade de educação. Entre 1999 e 2010 ocorreu um crescimento superior a 100% e, para o conjunto dos Estados norte-americanos, há um contingente de quase 4% de crianças que hoje não frequentam mais a escola. Na Rússia, entre 2008 e 2012, teria ocorrido ampliação de 900% nas práticas de homeschooling. Na Alemanha, país que proibiu a prática em seu território, há inúmeros casos de casais que foram multados e até presos por não enviarem os filhos à escola.

Podemos dizer que se trata de uma modalidade nova, posto que vem crescendo exponencialmente em alguns dos principais países do mundo – como, por exemplo, Canadá, Espanha, França, México, Estados Unidos –, mas podemos também dizer que se trata de uma prática velha, já que era esse o modelo que tínhamos no Brasil e no mundo antes do momento histórico de defesa e de consolidação da escolarização universal.

Entre o final do século 18 e meados do século 20, a escolaridade obrigatória é vista como um mecanismo corretor das desigualdades de fortuna, portanto, como um instrumento de equalização social, de igualdade de oportunidades. O ensino doméstico poderia representar, nesse sentido, um voltar para trás… No caso brasileiro a prática permanece na semilegalidade, posto que não há qualquer regulamentação da matéria. Toda a justificativa que se tem dado – inclusive relativa ao âmbito jurídico – diz respeito às omissões e lacunas da legislação vigente.

Foi John Holt (1923-1985), professor da Universidade de Harvard, quem, pela primeira vez, implementou a experiência da desescolarização. Crítico das potencialidades da instituição escolar, Holt liderou, entre os anos 60 e 70 do século 20, um movimento internacional pela divulgação e legalização do ensino doméstico.

Há poucos trabalhos sobre o homeschooling no Brasil. E um limite de tais trabalhos parece decorrer do fato de eles avaliarem a prática pela autodeclaração dos envolvidos. Parece insuficiente. O que se observa é que, em qualquer dos casos, os estudantes do ensino doméstico são privados da experiência de vida e de socialização que só a escola proporciona.  Essas crianças ficam reféns de seus pais e familiares.

Em alguma medida, a escola se impõe na sociedade como um anteparo da família. Se alguma coisa corre mal na família, a escola está lá. E vice-versa. Deixar sob encargo exclusivo das famílias todas as oportunidades de educação parece, no mínimo, tarefa temerária. De todo modo, trata-se de um problema que, pelo visto, será pauta de um futuro próximo. Quem viver verá.

 

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