
José Carlos Marques é integrante do Ludens – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas do Depto. de História da FFLCH-USP e docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Unesp-Bauru – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A resposta foi surpreendente: os mitos do boxe continuavam todos a circular por aí – os jornalistas é que haviam deixado de escrever as narrativas que, antes, procuravam louvar os feitos e as lendas do esporte.
A referência a essa entrevista do boxeador, realizada 13 anos atrás, parece vir a calhar neste momento em que nos aproximamos do início dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, megaevento durante o qual o público poderá assistir, possivelmente pela última vez numa olimpíada, a dois atletas que já preencheram os requisitos para serem considerados mitos do esporte. Trata-se do nadador norte-americano Michael Phelps (31 anos) e do velocista jamaicano Usain Bolt (que completará 30 anos no dia do encerramento dos jogos).
Mas o que um atleta precisa realizar para tornar-se um mito? Aliás, é possível estendermos a caracterização do mito para a esfera do esporte? O mito é necessariamente algo que se opõe à verdade científica – daí o juízo de que ele estaria relacionado às crenças populares? Tentemos compreender melhor esta questão.
Para o historiador romeno Mircea Eliade, o mito é sempre uma narrativa que procura contar, graças aos feitos dos “seres sobrenaturais”, como uma realidade passou a existir. Neste sentido, temos sempre o relato de uma criação e de um momento fundador, relato esse que procura mostrar como algo foi produzido e a partir de quando começou a existir.
Já o semiólogo francês Roland Barthes alargou os horizontes da interpretação mítica por meio de análises de diversos aspectos da vida francesa (para ele, o mito poderia ser visto numa luta de telecatch, no strip-tease, nas propagandas de detergentes, no rosto da atriz Greta Garbo etc.).
Tudo seria capaz de constituir-se num mito, desde que fosse suscetível de ser julgado por um discurso. O mito, assim, não se definiria pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como ela é proferida – daí a possibilidade de transcender a fala oral, manifestando-se também na fotografia, no cinema, na publicidade, nos espetáculos e, obviamente, no esporte.
Mas o que um atleta precisa realizar para tornar-se um mito? Aliás, é possível estendermos a caracterização do mito para a esfera do esporte? O mito é necessariamente algo que se opõe à verdade científica – daí o juízo de que ele estaria relacionado às crenças populares?
Por último, é preciso citar Joseph Campbell, estudioso norte-americano que buscou definir o percurso padrão da aventura mitológica. Segundo ele, o herói quase invariavelmente realiza um caminho baseado no trinômio “separação-iniciação-retorno”: alguém que provém do mundo cotidiano acaba por aventurar-se numa zona de “prodígios sobrenaturais”; ao longo dessa aventura, é preciso que ele seja submetido a diversas provas, até obter a vitória decisiva. Alcançada a recompensa, tem-se o caminho da volta, tão penoso quanto o inicial: o herói deve agora retornar sob as bênçãos alcançadas e, com o elixir da vitória, restaurar o mundo inicial, ao qual ele pertencia antes de iniciar a aventura.
A partir destas breves abordagens, fica fácil perceber o quanto Michael Phelps e Usain Bolt (com uma pequena vantagem para este último) se enquadram perfeitamente nas definições do mito e do herói no esporte. Phelps, para além de ter conseguido bater 37 recordes mundiais ao longo de sua carreira, é o atleta que conquistou o maior número de ouros em uma única edição dos jogos olímpicos (em Pequim, 2008): foram oito medalhas de ouro, o que o fez superar as sete medalhas conquistadas pelo também norte-americano Mark Spitz na Olimpíada de Munique, em 1972. Se não bastasse essa façanha histórica e inaugural, Phelps tornou-se ainda, nos Jogos de Londres de 2012, o atleta mais medalhado de toda a história das Olimpíadas, com 21 medalhas no total.
O semiólogo francês Roland Barthes alargou os horizontes da interpretação mítica por meio de análises de diversos aspectos da vida francesa (para ele, o mito poderia ser visto numa luta de telecatch, no strip-tease, nas propagandas de detergentes, no rosto da atriz Greta Garbo etc.).
Já Usain Bolt é o atual recordista mundial dos 100 m rasos (9,58s, em 2009); dos 200 m rasos (19,19s, também em 2009); e do revezamento 4 x 100 m junto à equipe jamaicana (36,84s, em 2012).
Na história do atletismo, Bolt conseguiu tornar-se o único bicampeão olímpico de forma consecutiva nessas três provas (nos jogos de Pequim e Londres). Ademais, ele ainda detém o recorde olímpico nas mesmas provas desde 2008. Se não bastassem os números e as conquistas fundadoras de sua carreira, Bolt ainda adiciona à sua narrativa de herói mitológico o fato de saber repartir, como poucos, o elixir da vitória com seus semelhantes – basta atentarmos para o espetáculo midiático em que se transformam suas comemorações a cada vitória nas pistas.
Phelps já havia anunciado o encerramento de sua carreira em 2012, mas voltou a competir em 2014. No Rio de Janeiro, poderá enriquecer seu vasto palmarès com uma ou outra medalha. No entanto, é praticamente improvável que ele participe dos Jogos de 2020 em Tóquio, no Japão.
Se o fizer, dificilmente terá igual vigor competitivo aos 35 anos. O mesmo ocorre com Bolt, que deverá despedir-se da prova olímpica dos 100 metros rasos na capital carioca. Se ele participar de Tóquio-2020, deverá dedicar-se com mais entusiasmo apenas aos 200 metros rasos.
Poderíamos nos perguntar a esta altura se nós, mortais, temos sabido homenagear estas duas celebridades do esporte por meio de narrativas que atestem e reafirmem seu status de mito. Na dúvida, porém, fica-nos uma certeza: os Jogos do Rio 2016 são uma oportunidade única para acompanharmos de perto a rota crepuscular de duas lendas do esporte. E, de quebra, ainda podermos testemunhar o eventual nascimento de novos mitos – basta, para isso, que saibamos construir as narrativas que lhes deem suporte.