As relações internacionais em um planeta à deriva

Por Waldenyr Caldas, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 18/03/2024 - Publicado há 9 meses
Waldenyr Caldas – Foto: Arquivo pessoal

 

É isso mesmo, caro leitor, o planeta Terra estaria à deriva. Não do sistema heliocêntrico, claro, mas do seu próprio eixo. O conturbado cenário político mundial não traz perspectivas otimistas e muito menos a chance de termos uma paz provisória e estável. Paz permanente com a configuração da atual ordem mundial, aí então é pura utopia. Desde os sumérios até a nossa contemporaneidade, a história da humanidade está repleta de exemplos de guerras devastadoras que atravessaram o tempo e se tornaram objeto de estudo científico, não apenas dos historiadores, mas de todos os estudiosos das Ciências Humanas.

Se, por um lado, devemos reconhecer que se algumas dessas guerras trouxeram relativos avanços tecnológicos, é inegável também que tais avanços aconteceriam de qualquer forma, mais tarde ou mais cedo, sem que houvesse a barbárie como, por exemplo, a que estamos presenciando entre Ucrânia e Rússia e entre Israel e o grupo Hamas, que, aliás, a história nos mostra não se tratar de exceções e sim de algo recorrente. Que se pense, por exemplo, na Guerra da Coreia dos anos de 1950, na chamada “Guerra Fria” dos anos de 1960, na Guerra do Vietnã dos anos de 1970 e na Guerra das Malvinas ou Ilhas Falklands, como preferem os britânicos, em 1982.

Há outras guerras em andamento, mas não são tão midiáticas. Elas não têm o mesmo “glamour” das guerras em que participam os países ricos, de hegemonia bélica e econômica. Guerras em países pobres não dão a mesma audiência, portanto, não interessa tanto à grande imprensa. Quando aparecem são apenas como informações secundárias e superficiais, nada mais. Quero esclarecer que, no decorrer deste texto, não uso o termo terrorista para classificar o grupo Hamas, porque o próprio Conselho de Segurança da ONU não o considera assim. E o Itamaraty, diferentemente de outros países, segue as normas deste Conselho, justamente por respeito e cumprimento ao que estabelece a Carta da ONU de 1945.

Nessas condições, portanto, e considerando que esta organização sempre procura manter o equilíbrio da neutralidade, é bem mais ético seguir os seus critérios e evitar o sensacionalismo dos veículos de comunicação de massa, que popularizaram a expressão “terrorista” sem fazer uma apreciação mais acurada deste termo, e do que deseja realmente o grupo Hamas, muito embora seja absolutamente reprovável a invasão do território israelense, o que motivou esta guerra que está em curso. Para a ONU, termo terrorista não se aplica ao Hamas nesse contexto. Ele é muito impactante e desperta mais interesse público e econômico, além de trazer consigo uma tomada de posições político-ideológicas de boa parte da grande imprensa em nosso país, mas não só. Na Europa e nas Américas, nesse momento, há uma notória ideologização dos media, no tocante às guerras entre Rússia e Ucrânia, e Israel e o Grupo Hamas. Aliás, este é um tema bastante complexo e muito bem explorado pela grande mídia, que eu gostaria de analisá-lo em ocasião oportuna.

Pois bem, a ONU – Organização das Nações Unidas, foi oficialmente criada em 22 de outubro de 1945 no Estado da Califórnia (EUA), pelas nações vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, e mais 45 países. Seus objetivos primordiais eram trabalhar para a estabilização da paz mundial, da segurança, estabelecer cooperação entre todas as nações e colaborar ativamente para a resolução dos problemas sociais, econômicos e, evidentemente, humanitários. Para melhores esclarecimentos, são estes precisamente os termos do Artigo 1, que fundamentam a Carta das Nações:

Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz.

Assim é que a Carta das Nações Unidas, assinada por 51 signatários (a Polônia, que não estava presente a esta cerimônia, assinaria depois), passou a ser uma espécie de referência para as relações internacionais entre os países de todo o mundo. Fossem eles filiados ou não, o documento desta organização criou algo assim como um padrão de critérios gerais, justamente para otimizar e manter as relações entre países.

Aconteceu, porém, que no decorrer do tempo a ONU passaria a ter um desgaste quase sistemático e rotineiro causado principalmente pelos próprios signatários em detrimento da Carta Magna. O importante Conselho de Segurança é o órgão “responsável por observar e se reunir para discutir sobre qualquer potencial problema que possa comprometer a paz mundial”, diz o professor Edmilson Neto.

Encarregado de arbitrar conflitos entre os países para restituir a paz, este Conselho certamente tem sido o mais prejudicado, muito embora ainda tenha a prerrogativa protocolar de insistir em acordos de paz em caso de agressão entre países, o que atualmente significa quase nada, justamente em face desse desprestígio internacional da ONU que se reflete, melancolicamente, nas decisões que deveria tomar e quando as toma, pouquíssimos países as acatam.

Em outros termos, podemos dizer que, atualmente, as decisões do Conselho da ONU não têm quase nenhum efeito prático, porque sua imagem como instituição internacional está bastante desgastada, pelo menos no plano político. A configuração que hoje podemos fazer deste órgão, é como se fosse um senhor muito idoso, cheio de boa vontade e de conhecimentos para resolver problemas, conflitos, mas que, ao mesmo tempo, existe uma poderosa força paralela que não dá importância às suas ações.

Este fato, porém, tem uma explicação: os países vitoriosos da Segunda Guerra Mundial são soberanos há 79 anos mantendo-se todos eles no poder do Conselho de Segurança da ONU. É um Conselho permanente e não existem eleições para que outros países possam nele ingressar. Eles sim, têm poder mundial e os temas de grande relevância só são decididos de acordo com seus interesses ou algo paralelo que possa beneficiar a si próprios ou aos seus aliados. Temos muitos exemplos bastante claros de casos dessa natureza. Não é por mero acaso que diversos países filiados à ONU, inclusive o Brasil, vêm solicitando mudanças nesta Organização, especialmente no tocante à sua estrutura de distribuição de poderes.

O presidente Lula tem insistido reiteradas vezes nesta questão, mas sua voz não ecoa nos altos escalões do poder dessa organização, muito embora ele não esteja sozinho. Por uma questão de paridade, de equanimidade, diversos países dos cinco continentes já reivindicam estas mudanças na estrutura de poderes na ONU, mas até agora não há nenhum aceno de que isso possa vir a mudar. Não é nada razoável, por exemplo, que cinco países permaneçam nada menos de 79 anos como uma espécie de “reis soberanos” no Conselho de Segurança; esta não é uma medida equitativa.

É bastante provável que esse monopólio do poder seja um forte motivo para que os outros 188 países filiados à ONU (o total são 193) já não vejam esta instituição como a viam, por exemplo, nas décadas de 1950 e 1960, quando vivíamos o auge da chamada Guerra Fria. O fato concreto é que a ONU não se sustenta por muito tempo nessa estrutura de poder. Uma rápida análise, uma rápida vista d’olhos no panorama político internacional, traz à tona as fragilidades dessa instituição que reluta em não se reciclar, em não tornar as relações de poder, de decisões mais democráticas entre seus pares, algo que seria muito mais justo.

Mas algo semelhante ocorre também com a Corte Internacional de Justiça (mais conhecida como Tribunal Mundial) sediada em Haia, no Palácio da Paz, Holanda, que, apenas quando solicitada, pode julgar litígios entre países. A diferença é que, ao contrário do Conselho de Segurança,

[esta] Corte é composta por 15 juízes, todos eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral da ONU e pelo Conselho de Segurança. As eleições são realizadas a cada três anos para um terço dos assentos, e os juízes que se aposentam podem ser reeleitos. Os membros do Tribunal não representam os seus governos, são magistrados independentes e só existe um juiz de cada nacionalidade na corte.

Este texto aqui citado consta no jornal ONU News, de 11/01/2024. Esta Corte Internacional, sempre para atender uma solicitação, julgou em janeiro deste ano, quando a África do Sul, apoiada por outros países, instaurou um processo contra Israel, por entender que este país desrespeitou a Convenção do Genocídio para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Vale lembrar, que esta Convenção foi promulgada em Paris, a 11 de dezembro de 1948, durante a 3ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Quero aqui relatar rapidamente alguns casos de desobediências muito graves aos termos da Carta das Nações que, por ironia da história, foram cometidas justamente por quem deveria evitar essas inobediências ou, em casos mais graves, até mesmo formalizar uma punição. Em 2003, os Estados Unidos e a Inglaterra invadiram o Iraque, em solene desprezo à decisão do Conselho de Segurança da ONU para que não ocupassem aquele país. De nada adiantou.

Escudados em falsos problemas e justificativas de que o Iraque estava desenvolvendo um arsenal poderoso de armas químicas de destruição em massa, aqueles dois países, membros do Conselho de Segurança da ONU não tiveram dúvidas, invadiram o Iraque. Além disso, segundo os argumentos dos invasores, este país teria participado do atentado de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Também era mentira. Osama Bin Laden e Saddam Hussein, presidente do Iraque, nunca tiveram contatos, nunca planejaram nada juntos, apenas sabiam da existência de um e de outro.

E o que é mais grave em tudo isso, é que o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, foi à reunião da ONU apresentar “provas” de que o Iraque tinha arsenal químico, possuía um laboratório para fabricar armas biológicas e pleiteava estocar armas nucleares. Tudo mentira. O secretário-geral da ONU Kofi Annan sempre considerou ilegal a invasão do Iraque justamente por ser um desrespeito às leis do direito internacional. Indagado por jornalistas sobre a invasão, ele disse o seguinte: “Indiquei que não foi em conformidade com a Carta das Nações Unidas. Do nosso ponto de vista, do ponto de vista da Carta, foi ilegal”.

É bastante provável que o professor Stephen Walt, da Kennedy School de Harvard, tenha razão. Ao comentar a invasão militar baseada em falsas razões, ele diz: “Não é que a inteligência estivesse informando a decisão: eles a manipularam ou ‘esculpiram’ para justificar o que já tinham decidido fazer”. Tardiamente, porém, George W. Bush e Tony Blair, que não acataram a decisão do Conselho de Segurança para não invadir o Iraque, fizeram publicamente uma espécie de mea culpa. Tarde demais. Não se sabe exatamente quantas mortes ocorreram nesta guerra, mas estima-se que tenham morrido aproximadamente 4.805 norte-americanos, 179 ingleses e 17.690 iraquianos, incluindo militares e civis.

Colin Power, encarregado de mentir para a Organização das Nações Unidas em nome do Estado Americano, considera que este foi o seu mais grave erro na carreira política de seu país. Por trás dessas mentiras, escondia-se o real motivo da invasão do Iraque: a política de Saddam Hussein era o grande empecilho à hegemonia dos Estados Unidos no Oriente Médio. Como se sabe, no quadro geopolítico dessa região, o Iraque está localizado em um lugar estratégico extremamente importante, além do petróleo abundante naquele país, que conta um pouco menos, mas nada desprezível. Esses foram os motivos que realmente contaram para que o Iraque fosse invadido e seu presidente enforcado em dezembro de 2006.

Casos como o do Iraque são recorrentes depois da Segunda Guerra até nossos dias. Não desejo me alongar nessa narrativa enumerando-os e analisando-os, mas quero apenas lembrar um dos casos mais recentes: o do Afeganistão, que foi invadido no dia 7 de outubro de 2001, pelo governo de George Bush à procura de Osama Bin Laden, em face do atentado de 11 de setembro deste mesmo ano em Nova York. Claro, não o encontraram. Ele estava na cidade de ad-Dawr, na região norte do Iraque.

Os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em 2001 e lá permaneceram até 2021, quando tiveram que sair às pressas e de forma não planejada. Isto porque seu principal adversário, o grupo Talibã, havia vencido as eleições presidenciais e passaria a governar o país. Enfim, este é mais um caso, além do Iraque, de invasão a um país à revelia da ONU e de seu Conselho de Segurança. Por vinte anos, os cazaques (ou cazaquistaneses) viveram sob a interferência dos Estados Unidos. A saída dos americanos do Afeganistão foi algo dantesco. As cenas exibidas pelos media televisivos nacionais e internacionais fazem lembrar muito as imagens de soldados e civis americanos deixando o Vietnã após o fim da guerra naquele país em 30 de abril de 1975.

Não é possível esmiuçarmos todas as questões aqui apresentadas. Isto seria tema não apenas para um artigo, mas para um livro de muitas páginas. No entanto, veremos que a situação do nosso planeta é muito mais complicada e confusa do que mostram as aparências. Politicamente, por exemplo, parece mais um planeta à deriva, onde quase sempre prevalece a lei do mais forte, ou seja, dos líderes que formam o Conselho de Segurança da ONU. Como diz o conhecido aforismo, “quem pode mais chora menos”.

E o mais irônico em tudo isso, é que os países detentores de uma hegemonia bélica e econômica invadem outros países, matam soldados e civis, praticam atrocidades inomináveis, sempre com o pretexto de restaurar a democracia no país invadido. Não, não, isso não é uma atitude democrática, é, isto sim, uma atitude autoritária, imperialista, cujo objetivo é defender os mais diversos interesses escusos do país invasor.

A verdadeira democracia pressupõe o respeito às leis internacionais e ao que reza a Carta da ONU de 22 de outubro de 1945, onde consta o Estatuto da Corte Internacional de Justiça, cujos signatários deveriam respeitar e defender seus preceitos. Mas, a verdade é que a Carta da ONU e seu anexo foram transformados em meros objetos protocolares e estão, a cada litígio que ocorre, e são muitos, mais desfigurados em seus objetivos de paz. E mais do que isso, desmoralizados, uma vez que os países integrantes do seu Conselho de Segurança, que realmente detêm o poder bélico e econômico do planeta, são, ironicamente, os protagonistas desta autêntica chacina que lamentavelmente presenciamos no passado em outros países e atualmente na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Que vivam os historiadores! Eles têm como profissão registrar, estudar e analisar meticulosamente esses fatos.

Hoje o que prevalece, pelo menos para os países poderosos, é o famoso critério de “dois pesos, duas medidas”. A Carta da ONU e as leis do Direito Internacional são importantes para esses países quando os beneficiam. Se isso não acontece, eles criam as suas próprias “leis”, inventam mentiras e, em nome da defesa da “democracia”, dos “direitos humanos” e mais outras absurdidades, se investem de uma autoridade não reconhecida por seus pares e invadem outros países, como aconteceu, por exemplo, com o Vietnã, no Iraque e no Panamá, na chamada “Operação Causa Justa” em 21 de dezembro de 1989. Nesse dia, por ordem expressa do então presidente George Bush (pai), as tropas americanas invadiram aquele país e prenderam seu presidente, o general Manuel Noriega, acusado de traficante de drogas e de ser um gângster.

Vale aqui lembrar, que o chefe de Estado do Panamá foi sequestrado e levado para os Estados Unidos. Nessa operação, morreram cerca de 200 civis que tentaram impedir o sequestro. Noriega foi condenado a 40 anos de prisão, mas cumpriu só 17 anos e saiu por bom comportamento. Nada disso adiantou. Em 2007, ele foi extraditado para a França e condenado a mais sete anos de prisão acusado de lavagem de dinheiro. Hoje sabe-se, não há dúvida, que Noriega era de fato um homem perigoso, violento e indigno de ser o presidente do seu país. No entanto, a atitude do governo americano foi absolutamente inaceitável e autoritária, desrespeitando in totum a Carta da ONU, da qual é um dos signatários. A soberania do Panamá foi ferida de morte, ainda que Noriega fosse considerado um ditador, mas não para toda a sociedade panamenha, uma vez que gozava de muito prestígio junto à população de seu país, que, com razão, sentiu na pele a humilhação de ver seu presidente ser sequestrado. O fato verdadeiro é que ele era oficialmente o presidente da República do Panamá, e os Estados Unidos, mais uma vez, desrespeitaram a Carta da ONU e as leis do direito internacional quando trata da soberania dos países.

É bastante provável que os acontecimentos aqui relatados tenham pesado nas decisões de países como a África do Sul, Brasil, China e Índia, em considerar a possibilidade de apoiar a Ucrânia na guerra contra os russos. A decisão foi não apoiar. Como acontecimentos dessa magnitude já se tornaram uma rotina perversa (basta ver os acontecimentos políticos dos séculos 20 e 21) e continuam acontecendo amiúde, é de se pensar, em alguns momentos, que habitamos um planeta fora do seu próprio eixo, um planeta à deriva, cuja política internacional vai muito mal e nos reserva um grande enigma do que poderá acontecer nos próximos anos. Para nós, cidadãos comuns da sociedade, que só temos o poder do voto dentro do nosso país, resta apenas a expectativa de que algo realmente mude na atual ordem mundial. E aqui termino este artigo me valendo de mais um aforismo, a meu ver, muito apropriado para nosso quadro político internacional. Enfim, é isso, “quem viver verá”.

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