
Chico Saraiva é mestre em Música pela ECA, área de concentração Processos de Criação Musical, cujo livro está no prelo. Foto: Divulgação via Conversa com Verso

Campo de intersecção ao qual me dedico como artista desde 1999, e como pesquisador – atrelado à Universidade – a partir da realização desse mestrado, finalizado em 2013. Experiência que trouxe à tona uma série de questionamentos determinantes não apenas do escopo do trabalho, mas também de seu método, onde a pauta de cada encontro se faz modulável ao universo de cada um dos mestres entrevistados, em manejo que se apresentaria como revelador dos aspectos-chave da pesquisa encampada.
Tal dinâmica revela a multiplicidade de suas expressões quando começo, por exemplo, um diálogo com o compositor e violonista Guinga (minha principal referência como compositor-violonista), improvisando uma ideia que poderia vir a ser a melodia de uma nova canção (ou peça de violão). O violão fornecia material melódico que era incorporado pela voz, em uma interação que me levou a formular a pergunta inicial do diálogo que estrutura o capítulo intitulado “Canção: Graus de ação do instrumento no processo criativo”:
“SARAIVA
A minha sensação é que quando a gente está inventando música
têm coisas que vêm mais pela via da voz
e outras vêm do violão.
GUINGA
Não, a canção vem sempre pela voz.
SARAIVA
Sempre pela voz?
GUINGA
Comigo sempre pela voz
Quando eu faço uma música sem estar cantando eu já sei que é uma música para o violão.
Mas eu sou compositor de canção, não sou compositor de música para o violão.
SARAIVA
E como você vê a influência que os gestos violonísticos
têm no percurso melódico de uma canção?…”
Diversas outras luzes são lançadas sobre o tema, seja por meio do diálogo com outros entrevistados, citações trazidas de outros autores ou ainda em aprofundamentos explicitados pelas indicações incorporadas às partituras das transcrições descritivas das entrevistas. Para esse artigo trazemos o desfecho desse mesmo capítulo, no momento do diálogo no qual a questão inicial é retomada:
“GUINGA
É engraçado isso, mas isso é inconsciente mesmo.
Você, que é compositor, sabe disso.
SARAIVA
É… a gente vai fazendo
por exemplo aqui quando
[toca e canta frisando trecho de “pra quem quiser me visitar”]
[depois apenas canta a mesma passagem salientando o intervalo da mudança de compasso
entre a nota mi (quinta do acorde de A(add9)/C#)
e ré # (terça do acorde de B7/F#),
que formam entre si um intervalo de nona menor
de difícil entoação vocal ]
SARAIVA
Me dá a impressão de que se não tivesse com o dedo “1” aqui …
SARAIVA
… não ia ser essa a nota da melodia
GUINGA
Ah, não ia.
O violão às vezes traz a melodia.
SARAIVA
Ele fornece, né?
GUINGA
Se bem que, no fundo, é você buscando já inconscientemente no violão.
Mas às vezes tu erra e erra para melhor, e aí aproveita aquele erro
Isso acontece muito com o compositor.”
O que Guinga classifica como erro, considerando – ele mesmo – o âmbito da canção popular, é trivial em outras linguagens musicais também presentes no amplo escopo de recursos de Guinga, como, por exemplo, os oriundos de vertentes composicionais da música escrita para violão solo no período moderno. Tal convergência estética, que foi, como vemos, um dos pontos-chave do trabalho, revelou algum deslocamento na posição de Luiz Tatit com relação à questão. Na primeira entrevista (realizada em 03/10/2011) que deu base à dissertação, Tatit classifica as melodias de Guinga, de um modo geral, como constituídas de um material extraído de uma matriz de origem instrumental.
TATIT
O Guinga, por exemplo,
extrai melodias que acabam virando unidades entoativas
mas que têm outra origem, que é a instrumental.
O instrumento sugere a linha,
e se a linha for instrumental demais,
vem aquela história de diminuir.
Você atenua a musicalidade
para que aquilo vire uma coisa entoável.
Em 28/05/2015, como desdobramento da dissertação, foi realizada uma segunda entrevista para o filme “Violão-Canção: uma alma brasileira”.[2] Neste segundo momento, mobilizado pela execução ao vivo do motivo melódico inicial da canção de Guinga – que expressa o aspecto que vem sendo discutido em forma de música –, Luiz Tatit atualiza e aprofunda sua percepção acerca do tema ao salientar a presença daquilo que é próprio da fala – ponto de partida da escuta de Tatit – naquilo que já fora, ou poderia ser visto como estritamente instrumental. A melodia é marcadamente dissonante em relação à tonalidade utilizada; seu percurso é composto de intervalos de difícil entoação, ao menos para um cantor forjado na canção popular mais tradicional, e, ainda assim, Tatit o escuta agora como uma frase melódica que possui um “fundo entoativo muito forte” e salienta a co-existência dos “dois sistemas”.
SARAIVA
[toca e canta]
Pra quem quiser me visitar
Guinga/Aldir Blanc
TATIT
Interessante essa frase
ela tem um fundo entoativo muito forte,
e ao mesmo tempo é o caminho melódico super esquisito, de novidade, tal,
quer dizer, um caminho completamente original,
mas com uma entoação muito clara por trás, uma entoação muito clara.
então, é interessante porque aí entram esses dois sistemas,
a parte harmônica sugerindo um caminho que é diferente
e ao mesmo tempo a entoação fazendo um caminho possível.
Um desafio desse trabalho, tanto no plano artístico quanto no científico, é trazer à tona o que há de convergente nas diferentes contribuições levantadas e lidar com a potente fricção que se identifica mesmo entre o que aparenta pertencer a universos musicais apartados, entre os quais todos os sete mestres entrevistados revelam, cada um a seu modo, traçar pontes de algum tipo. Dessa forma, priorizamos os sentidos inerentes à expressão e execução da própria música (nos valendo tanto da partitura quanto de gravações em vídeo[3]) no sentido do aprofundamento em um fazer musical – e em um jeito de fazer pesquisa em música – que se alimente da riqueza que há na diferença entre os olhares. Uma vez que a pluralidade constituinte de um universo musical acaba por se reproduzir na percepção – e consequentemente na produção – de cada criador aberto aos desdobramentos dessas diferenças.
“Em vez de defendermos nossos pontos de vista
talvez devêssemos transitar mais,
abordar a música de diferentes lados
e ouvir aqueles que a descrevem de maneiras diferentes.”
(A. Seeger, p. 256, 2008)
LINKS SUGERIDOS
Trailer do Filme Violão-Canção: uma Alma Brasileira
https://vimeo.com/lisausp/violaocancaotrailer
Vídeo com João Bosco em entrevista a Chico Saraiva, base de outro capítulo da dissertação.
[1] Dissertação apresentada à ECA/USP para obtenção do título de Mestre em Música. Área de concentração: Processos de Criação Musical. Orientador: Prof. Dr. Gilmar Roberto Jardim (maestro Gil Jardim). Livro no prelo.
[2] Média-metragem, recém lançado, produzido com recursos do PRCEU/USP, com co-direção da Profa. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji, em parceria com o Laboratório de Imagem e Som da Antropologia (LISA/USP).
[3] que poderão ser assistidos em breve no Site – em fase de implementação – resultante do projeto.