Se as fundações democráticas do Brasil contemporâneo forem minimamente sólidas, o próximo período será comparável ao de uma “reconstrução pós-guerra”, como disse uma figura política. Um professor postou em rede social que isso tem condições: “se a maioria da sociedade não voltar a apoiar o modelo social-democrata de intervenção do Estado, de políticas de redução das desigualdades, de proteção das liberdades e de preservação ambiental, o 11 de agosto poderá ter sido o último suspiro do pacto de 1988”. Concordo com ambos, mas vejo um descompasso entre os dois prognósticos: empreender uma reconstrução depende de engajamento para a ação, esperar apoio não basta.
O que deve ser a reconstrução do Estado brasileiro? Em torno de que ideias ela deve se organizar? Que participação cabe à universidade nesse processo? Essas devem ser algumas perguntas desta coluna, que para grande honra minha fui convidada a manter mensalmente no Jornal da USP.
Se a social-democracia europeia do pós-guerra serviu de modelo para a concepção do Estado social brasileiro, as condições para sua concretização eram distintas. O movimento sindical autêntico só emergiu tardiamente entre nós, na redemocratização, e foi uma das forças que impulsionaram os avanços da Constituição de 1988, junto com a sociedade civil organizada. Mas cabe lembrar que antes disso houve a derrota da emenda das diretas e do próprio projeto de Assembleia Constituinte exclusiva. A Constituição e seu importante capítulo de direitos foram forjados no conflito. Desse aprendizado surgiu o vigor democrático que deu a tônica das políticas públicas para implementá-los, gerando organização e resultados palpáveis que hoje legitimam e explicam a resiliência do SUS (Sistema Único de Saúde), do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), das redes de educação básica e do sistema de instituições de ciência e tecnologia, entre outros, frente ao desmonte do período autoritário. A inovação das políticas bem-sucedidas do período democrático resulta da combinação de sustentação política, capaz de atravessar as alternâncias do processo eleitoral, com aprimoramentos de gestão, financiamento (mesmo insuficiente) e uma institucionalidade jurídica razoavelmente consistente. Por trás disso há muito conhecimento multidisciplinar, sem o qual dificilmente haveria o consenso necessário tanto para as melhorias incrementais, como para alguns saltos estruturais que ocorreram ao longo do processo.
O intrigante é que, embora esses fatos sejam em geral admitidos, eles não são apropriados pela consciência coletiva como demonstrações da viabilidade da recuperação do Brasil pela via democrática. Em que pese existir o reconhecimento das soluções em cada setor, no conjunto não é incomum que elas sejam desacreditadas. Fora dos círculos de especialistas, os avanços são negados, sobrepondo-se a eles um senso comum conservador que condena o Estado por “gastar muito e entregar pouco”, como se as políticas públicas estivessem escondidas num Estado invisível. Mesmo onde o pensamento crítico é mais desenvolvido, a crença na viabilidade da reconstrução é desdenhada como se fosse mero pensamento positivo e como se se tratasse de responsabilidade alheia.
Não é papel da universidade substituir-se à política. A agenda de prioridades, a composição de alianças e mesmo o processamento dos conflitos estão além dos domínios da ciência. De outro lado, também não cabe a ela servir de escritório de soluções imediatas para os problemas da sociedade. A universidade não deve concorrer com o profissional que ela forma, dizia um antigo dirigente universitário. Mas sua condição de organizar criticamente o conhecimento lhe confere uma prerrogativa decisiva para a reconstrução, com a capacidade não limitada à formulação de alternativas, mas voltada a desenvolver uma consciência nacional a respeito das possibilidades da ação.