Sobre identidade racial e ações afirmativas no ensino superior brasileiro

Por Rosenilton Oliveira, professor da Faculdade de Educação da USP

 19/10/2022 - Publicado há 1 ano

Este ano de 2022 está marcado por um conjunto de efemérides, as quais apresentam excelentes oportunidades para reflexão sobre como se constitui a sociedade nacional, seus atuais princípios e anseios coletivos. Dentre as várias datas celebrativas, constam os dez anos da promulgação da Lei nº 12.711/2012, que instituiu a reserva de vagas para pessoas autodeclaradas pretas e pardas nas universidades públicas brasileiras.

No mesmo ano de sua promulgação, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a manifestar-se sobre a validade jurídica da “lei de cotas”. Confirmada a sua legalidade, o argumento falacioso de que políticas de correção de desigualdades a partir de marcadores sociais de identidades eram inconstitucionais foi substituído por outro: a impossibilidade de se estabelecer parâmetros objetivos de aferição do pertencimento racial das pessoas negras (pretas e pardas, de acordo com a cartela de cores do IBGE).

Fato é que a sociedade brasileira se constitui a partir da demarcação da diferença étnico-racial, na qual brancos e negros são localizados em posições simetricamente opostas na hierarquia social, sendo resguardados aos primeiros o direito de possuir identidade e aos “outros”, não. O artifício retórico sobre a ausência de critérios para confirmação da autoidentificação, curiosamente, recai-se somente sobre as pessoas negras e não sobre as brancas. Privilégio tão bem emaranhado na estrutura social nacional, como afirma Maria Aparecida Bento em sua tese de doutorado, que permite ao sujeito branco nunca se pensar enquanto ser racializado, mas capaz de reconhecer a “raça” e a “etnia” do outro, inclusive para negá-las enquanto elemento legítimo na reivindicação pública por direitos.

Como se sabe, toda política pública para ser implementada precisa definir: o público-alvo, o(s) agente(s) governamental(is) responsável(is), o objetivo a ser alcançado (o que implica um prazo) e a oferta orçamentária para tal. No caso na superação das desigualdades de formação em nível superior entre pessoas negras e brancas, por óbvio, são os primeiros que devem ser alvo da ação afirmativa. Por conseguinte, cabe às instituições de ensino superior e demais órgãos públicos executar a política junto com a população negra enquanto durar a situação de desigualdade, assegurados os recursos financeiros para tal.

Os dados mais recentes têm demonstrado que, apesar dos avanços significativos, ainda não se estabilizou uma situação de equidade racial nos quadros universitários (docentes, discentes e técnico-administrativos). Portanto, neste momento em que se avalia os impactos desta ação afirmativa, os resultados dos estudos reafirmam a necessidade de mantê-la, ampliando e aprofundando as ações que garantam o acesso e a permanência de pessoas negras no ensino superior.

Contrariando os estudos sistemáticos sobre desigualdade racial no Brasil, de forma geral, e na educação, especificamente, há quem insista no mantra de que no contexto nacional é preciso defender políticas públicas cujo elemento central para definir o público-alvo seja a renda e não uma marca de identidade social como etnia ou a raça. O argumento centra-se, por um lado, na retórica da impossibilidade de aferição das identidades sociais e, por outro, no suposto de que, ao direcionar ações para a população empobrecida, automaticamente as pessoas negras seriam beneficiadas, uma vez que são maioria neste extrato da sociedade. Em síntese, esse posicionamento ignora o fato de que o País é estruturalmente racista, resultado de mais de três séculos de subalternização e exclusão sistêmica das pessoas negras e indígenas.

O enfrentamento das desigualdades sociais, inclusive materiais, passa necessariamente pela superação do racismo. Isto não significa que a categoria renda não seja um elemento central na conformação da ação afirmativa, pelo contrário. Mas é preciso ter presente que o racismo não se subordina aos marcadores de classe. A equação é simples: numa sociedade racializada em que, por meio das identidades étnico-raciais, foram constituídas desigualdades que negam sistematicamente à população negra o acesso aos bens produzidos socialmente, é justamente a partir deste marcador que se devem desenvolver ações para promoção de justiça social. Ou seja, eliminar o marcador racial não resolve o problema, pelo contrário, produz um diagnóstico parcial sobre a realidade social. Nesse contexto, raça e renda são termos-chaves, que devem estar interseccionados na execução da ação reparadora.

Portanto, uma vez que refinar os mecanismos de execução da política pública não equivale a sua completa revogação ou descaracterização, reafirmar a pertinência do dispositivo antropológico, jurídico e político do direito à autonomeação de pertencimento identitário, a partir da qual o indivíduo é inscrito no campo das disputas pelos bens públicos, é fundamental na consecução de tecnologias de correção de desigualdades sociais.


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