Quem interpreta a Constituição: magistrados, líderes evangélicos ou o “povo”?

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 Publicado: 07/06/2024

Obrigado a se conter para não se enredar ainda mais nos processos judiciais em que é réu no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro terceirizou para pastores evangélicos suas narrativas mais polêmicas, especialmente as que tratam de suas concepções sobre democracia, ordem constitucional e segurança jurídica.

Realizada em São Paulo no último dia 31 de maio, a 32ª edição da Marcha para Cristo mostrou a força política desse pessoal. A estratégia de Bolsonaro é recorrer à religião para manter as duas cortes sob pressão e estimular seus pastores a deslegitimar os magistrados que votarem contra ele, mantendo-o inelegível e, eventualmente, condenando-o à prisão.

Dirigente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, uma dessas lideranças evangélicas é o pastor Silas Malafaia. Segundo ele, se as igrejas evangélicas colocarem o povo na rua, os magistrados pensariam duas ou três vezes antes de ordenar a prisão do ex-presidente. “Se isso acontecer, o negócio vai ser feio”, afirmou em entrevista à Folha de S. Paulo, após classificar o então presidente do TSE de “ditador da toga”. Em seguida, entreabriu sua concepção de Estado de Direito. “O povo é o supremo poder de uma nação. Nada é superior a nível de poder (sic) em uma nação do que o povo. Quando o povo se manifesta, ele submete o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Se Bolsonaro for preso, aí os caras (os ministros do TSE e do STF) verão os problemas que eles arrumaram.”

Que a fala é uma ameaça ao regime democrático e à ordem constitucional, isso é evidente. O que não fica claro, porém, é o método como se afere a opinião do povo. Quem o interpreta? Quem fala por ele? Sobre isso, Malafaia foi omisso. Já o político que hoje protege, ameaçando as instituições, foi muito claro ao responder a essas duas indagações. O intérprete do povo seria ele mesmo, Jair Bolsonaro, então no exercício da Presidência da República.

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, o povo brasileiro. Eu sou a Constituição. Vocês tiveram coragem de romper o continuísmo, o populismo, a demagogia que esse Brasil viveu ao longo dos últimos 30 anos”, disse ele num comício realizado na cidade de Itapira. Um ano e oito meses depois, ele aprofundaria o argumento em outro comício – este realizado em frente ao Palácio do Planalto. “O pessoal fala que eu devo tomar providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização”, afirmou, esquecendo-se de que respeitar as instituições democráticas não é concessão, mas uma obrigação expressamente prevista pela Constituição que jurou respeitar quando assumiu o cargo.

Falas como as do pastor da Assembleia de Deus e de seu protegido, no sentido de que “a vontade do povo” estaria acima dos direitos políticos, das liberdades públicas e das garantias fundamentais, de que Bolsonaro seria o único intérprete da vontade popular e de que a Constituição lhe conferiria o título de “comandante em chefe”, atribuindo-lhe a prerrogativa de decretar estado de sítio e estado de defesa, não têm a menor fundamentação jurídica. Afirmações no sentido de que “o povo é o supremo poder de uma Nação” e de que “nada é superior a ele” também carecem de legitimidade política. E o desprezo à ideia de que democracia é método e procedimento de negociação e gestão de conflitos, por um lado, e a reiterada prática de discursos de ódio, difamação e mentira como estratégia de destruição de reputações, por outro lado, incorrem em faltas graves previstas pela Constituição.

Além disso, nada do que se está vendo é novidade. Há quase cem anos, o nazifascismo já afirmava que as instituições deveriam seguir a vontade do povo “interpretada” por um condottiere ou um Führer. Leitor de Hobbes, crítico contumaz da democracia liberal, defensor de um Estado forte, teórico do decisionismo e adepto da tese de que direito é comando, Carl Schmitt – o conhecido jurista alemão que serviu ao Terceiro Reich, entre 1933 e 1936 – dizia que o poder estatal se alicerça na homogeneidade de todos os integrantes da sociedade e que toda iniciativa legislativa é precedida por uma decisão política fundamental tomada por quem detém esse poder. Para ele, uma ordem constitucional não resulta da impessoalidade, da racionalidade e da representatividade política, mas de uma autoridade pessoal.

Seguindo a linha de que os fins justificam os meios, Schmitt afirmava que o povo amorfo adquire forma mediante a identificação com o governante, que age como intérprete da vontade geral. Como ele detém um poder ilimitado e não está sujeito a determinações jurídicas, o que prevalece é sua vontade pessoal, não a legalidade. E essa vontade costuma crescer especialmente nos períodos de instabilidades e crises, nos quais prevalece o domínio da política por meio da força. É nesses períodos que os governantes ficam livres do primado do direito, podendo escolher arbitrariamente as vias e os instrumentos que consideram mais adequados para a “salvação da República”.

Schmitt foi o jurista que inspirou o teor dos Atos Institucionais n° 1, 2 e 5 baixados após o golpe militar de 1964. Esses três atos partiam da premissa de que a nova ordem política não expressava “o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”, motivo pelo qual as Forças Armadas “investiam-se no exercício de um poder constituinte legitimando-se por si mesmos”, sob a justificativa de “preservar a ordem, a segurança, a tranquilidade, a harmonia e a integração do povo brasileiro”. Oito décadas após a queda do nazifascismo e quatro décadas após o fim da ditadura militar, Schmitt hoje inspira governos iliberais, como os da Hungria e da Polônia.

A dúvida é saber se quando Bolsonaro falou “eu sou a Constituição”, em 2020, e Malafaia afirmou que “supremo é o povo”, há alguns meses, eles haviam lido alguns parágrafos de Schmitt ou se o que disseram não era um plágio rasteiro, mas bobagens de produção própria.

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