Ao mesmo tempo em que sua empresa — a Starlink — sempre desprezou a ordem jurídica do país, o empresário Elon Musk agora alega que a cúpula do Judiciário não só vem ignorando “as leis que ele jurou cumprir”, mas, igualmente, vem tomando decisões “infundadas” e desrespeitando os próprios “procedimentos legais” garantidos pela Constituição brasileira. Segundo ele, a cúpula da Justiça seria formada por “pseudojuízes não eleitos”, que tentam “destruir a liberdade de expressão por motivos políticos”, a fim de que o povo não conheça a verdade dos fatos.
Publicada pelos jornais na edição de 30 de agosto, essa afirmação foi feita cinco meses após Musk ter acusado um ministro do Supremo Tribunal Brasileiro de promover censura no país e de ter ameaçado a descumprir ordens e determinações judiciais impostas pela corte, sob a justificativa de que seus ministros estariam “censurando seus opositores políticos”. Invocando a liberdade de comunicação e afirmando que qualquer limitação à livre transmissão de mensagens e opiniões seria uma censura antidemocrática, esse foi o modo como o empresário reagiu à tentativa da corte de impedir que a X (antigo Twitter), sua plataforma de mídia social e de tecnologia, continuasse disseminando falsas promessas, mentiras, discursos de ódio e incitações antidemocráticas.
Declarações contraditórias como essas, fundadas em narrativas pseudojurídicas e interpretações distorcidas dos fatos, sempre foram uma das marcas de Musk. No entanto, a contradição está longe de sua principal falha moral. Mais repugnante ainda é o uso dessas contradições como uma técnica de monetização e como um trampolim para a multiplicação de seus lucros no setor de comunicação digital. É, também, a cooptação de governantes da extrema-direita e políticos autocráticos, mentirosos e sem caráter como um Donald Trump ou um Jair Bolsonaro. A estratégia é tão lógica quanto cínica e perigosa para o futuro da democracia: quanto mais afrontas, quanto mais discursos de ódio e quanto mais fake news Elon Musk divulga por meio da plataforma X, maiores são o envolvimento e o engajamento do público que a utiliza; e quanto mais envolvimento e engajamento maiores são os lucros.
Quando as redes sociais surgiram, nas décadas finais do século 20, a ideia era que elas ampliariam a participação dos cidadãos no espaço público da palavra e da ação, fortalecendo com isso a democracia representativa. O tempo, porém, mostrou que essa expectativa não se confirmou. Ao simplificar os debates, ao levar à substituição da reflexão por reações emotivas e ao abrir caminho para a desqualificação recíproca de adversários na vida política, as redes sociais passaram cada vez a produzir um temerário lixo informacional.
No início da era digital, o que se esperava é que as redes sociais possibilitariam diálogos responsáveis e debates construtivos que viabilizariam acordos capazes de assegurar a vontade da maioria sem desrespeitar os direitos da minoria. Como a comunicação on-line e em tempo real ampliou a irracionalidade comunicativa estimulada por intolerâncias e ameaças, gerando falsas promessas, declarações insensatas e mentiras, ou seja, fatores de instabilidade e desordens que resultam em crises de governabilidade e de legitimidade política, o que se tem hoje é a corrosão da ação política. E, por consequência, uma preocupante regressão democrática.
Isto porque, se por um lado as redes sociais jogam no circuito digital ira e indignação, atos performáticos e discursos insensatos, críticas inconsequentes e falas irresponsáveis, espraiando desse modo o vírus de propostas autocráticas, por outro lado elas não têm conseguido viabilizar políticas consequentes responsáveis proativas. Igualmente, se por um lado favorecem a demagogia e a torpeza, por outro as redes sociais têm enfrentado dificuldades para se compatibilizar com práticas democráticas deliberativas, que operam em etapas que vão se sucedendo até chegar a uma decisão final legítima.
Em outras palavras, a internet pode ajudar a minar regimes autoritários, é certo. Contudo, na medida em que também gera expectativas infundadas, exagera possibilidades, repassa desinformações e propicia aventuras bizarras protagonizadas pelos Jair Bolsonaros da vida, ela não tem sido suficientemente capaz de manter e de fortalecer uma democracia consolidada.
É nesse contexto pantanoso em que se movimenta espertamente o proprietário da plataforma X. Segundo ele, se as decisões do STF afrontam a liberdade de expressão, o acintoso e espalhafatoso descumprimento delas seria uma “iniciativa libertária” contra todo tipo de opressão. Esse silogismo barato não passa de uma cortina de fumaça. Em razão de seu poder financeiro e tecnológico, a X, sua plataforma social e de tecnologia, canaliza, armazena, orienta e explora comercialmente um informações e dados – e, quando eles são cruzados, orientam algoritmos. Ao permitir acesso a essas informações, após ter classificado pessoas por categorias e prever suas preferências a partir de dados por eles próprios oferecidos, Musk vende as informações a empresas, obtendo assim receitas advindas da publicidade segmentada.
Como a plataforma X é uma empresa de capital fechado, ela é administrada de modo bastante opaco, o que dificulta seu controle tanto pelo poder público quanto pelos grupos articulados da sociedade civil. Longe de ser apenas e tão somente aquele tipo de liberal extremado e inconsequente que defende uma ilimitada liberdade de expressão e de comunicação, Musk não passa de um plutocrata perigoso. A exemplo do presidente do Telegram, Pavel Durov, que dissemina imagens de abuso sexual de crianças, transações fraudulentas e venda de drogas ilícitas, Musk recorre às mais variadas manhas para atuar com alcance transnacional e manter suas operações fora do alcance das jurisdições nacionais. Em decorrência de sua fortuna e contando na mídia brasileira com a simpatia de jornalistas críticos das punições que o Supremo Tribunal Federal vem aplicando aos golpistas que afrontaram a democracia brasileira em 8 de janeiro de 2023, Musk imagina-se acima das instituições políticas e jurídicas. Do modo como age, desprezando a democracia e a soberania nacional, parece ter um caráter próximo ao de Harry Lime, o despudorado personagem de Orson Wells no filme O terceiro homem. Alguém desumano, com sorriso hipócrita e falas cínicas, sempre tentando justificar o que é legal e moralmente injustificável.
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