Entenda o que aconteceu no caso CoronaVac

Para entender o que aconteceu na suspensão dos testes da CoronaVac no Brasil é preciso conhecer as partes envolvidas num estudo clínico de vacinas e as responsabilidades de cada uma delas

 13/11/2020 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 23/11/2020 as 10:21
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A vacina contra a covid-19 desenvolvida pela chinesa Sinovac está sendo testada no Brasil – Foto: Divulgação / Butantan

Para entender o que aconteceu na suspensão dos testes da Coronavac   no Brasil é preciso, primeiro, entender quais são as partes envolvidas num estudo clínico de vacinas e quais são as responsabilidades de cada uma delas. 

Cada vacina tem um desenvolvedor e um patrocinador. O desenvolvedor é o agente— normalmente, uma empresa, universidade ou instituto de pesquisa — que inventou o produto. No caso da Coronavac, esse agente é a Sinovac, uma empresa de biotecnologia chinesa que desenvolveu a vacina, utilizando uma versão inativada do vírus SARS-CoV-2 para induzir uma resposta imunológica protetora do organismo contra ele. O patrocinador é quem financia os testes clínicos do produto. No caso da Coronavac, o patrocinador e responsável pela condução do estudo no Brasil é o Instituto Butantan, com recursos financeiros fornecidos pelo governo do Estado de São Paulo.

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Vacina é assunto da ciência, não da política

Para que o estudo possa ser realizado, ele precisa da autorização de duas entidades federais: a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Conep avalia questões éticas relacionadas ao tratamento das pessoas envolvidas no estudo, enquanto que a Anvisa trata de questões relacionadas ao produto (segurança, eficácia e qualidade) e seus potenciais impactos na saúde da população brasileira. Qualquer medicamento ou vacina só pode ser comercializada ou distribuída no País se tiver a aprovação da Anvisa — mesmo que seja uma distribuição gratuita, feita pelos órgãos públicos de saúde —, que é concedida (ou não) ao patrocinador com base nos resultados do estudo clínico.

Os estudos clínicos de Fase 3 com vacinas costumam ser feitos em diversos centros, de diferentes países, envolvendo milhares de participantes. O teste da Coronavac no Brasil, por exemplo, está sendo realizado em 16 centros de pesquisa, em sete Estados e no Distrito Federal, com cerca de 10 mil voluntários já vacinados (metade deles com a vacina de verdade, metade com uma solução placebo). Cada centro tem um pesquisador principal, responsável por conduzir o estudo e reportar seus resultados ao patrocinador, que, por sua vez, deve prestar contas periodicamente à Anvisa, à Conep e a um Comitê Independente de Monitoramento de Segurança (Data and Safety Monitoring Board – DSMB, em inglês), que é um grupo de especialistas independentes (sem vínculo direto com o projeto), incumbido de supervisionar a segurança do estudo.

Uma exigência básica de segurança é o acompanhamento contínuo dos voluntários e o monitoramento de eventuais reações e efeitos adversos que venham a surgir nesses participantes. Reações adversas são aquelas cuja ocorrência já é esperada dentro do estudo, como febre, mal estar ou dor na local de aplicação da vacina. Já os eventos adversos são aqueles que não estavam previstos no estudo, e que podem ou não ter relação com a vacina, como um desmaio, um infarto ou um acidente de carro.

A preocupação maior é quando surge um evento adverso grave (EAG) não esperado, que coloque em risco a vida ou a saúde da pessoa. Nesses casos, os protocolos internacionais de segurança recomendam que o estudo seja suspenso, temporariamente, até que se possa determinar com clareza se há alguma relação de causa e efeito entre a vacina e o evento em questão. Se for concluído que não houve causalidade, o estudo pode seguir normalmente. Se houver causalidade, dependendo das circunstâncias, o estudo pode ser retomado com protocolos adicionais de segurança (por exemplo, exclusão de pacientes que tenham alguma comorbidade específica), ou interrompido em definitivo.

No caso da vacina da Universidade de Oxford e do laboratório AstraZeneca, os testes foram paralisados de forma voluntária pelo laboratório em todo o mundo, no início de setembro, após a detecção de um evento adverso grave em uma voluntária do Reino Unido — que mais tarde a imprensa revelou ser um caso de mielite transversa (uma inflamação da medula espinhal). A paralisação durou seis dias. O estudo só foi retomado após o comitê independente de segurança avaliar o caso e julgar que era seguro continuar com a pesquisa.

Em outubro, foi a vez da Janssen. Neste caso, o estudo foi suspenso pela empresa durante três semanas para a investigação de um evento adverso grave (um AVC, segundo o jornal The Washington Post) em um participante da pesquisa nos Estados Unidos.

Em ambos os casos, a Anvisa foi notificada e optou por autorizar a retomadas dos testes no Brasil após fazer uma análise própria dos pareceres e das evidências fornecidas pelas empresas.

No caso da Coronavac, a paralisação foi motivada pela morte de um dos participantes da pesquisa — um homem de 34 anos, encontrado morto no banheiro de sua casa em São Paulo, no dia 29 de outubro, segundo informações levantadas pela imprensa. A polícia registrou o caso como suicídio. Ainda assim, no contexto de um estudo clínico, a morte de um participante, por qualquer razão, representa um evento adverso grave que precisa ser investigado clinicamente.

Após tomar conhecimento do EAG, o centro de pesquisa e o patrocinador do estudo têm sete dias para fazer essa avaliação de causalidade e reportar o caso às agências reguladoras.

O Instituto Butantan notificou o evento à Anvisa e à Conep na sexta-feira, 6 de novembro — no limite do prazo estabelecido. A Anvisa, porém, só tomou conhecimento do fato no fim da tarde de segunda-feira, 9 de novembro, por causa de um ataque de hackers que paralisou os sistemas do Ministério da Saúde nos dias anteriores. Às 21h25 daquele dia, poucas horas depois de receber a notificação do Butantan, a agência publicou uma nota em seu site anunciando que “decidiu interromper o estudo para avaliar os dados observados até o momento e julgar o risco/benefício da continuidade do estudo”. E também notificou oficialmente o instituto, por meio eletrônico, da sua decisão.

O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, disse que ficou sabendo da paralisação pela imprensa. A notícia chegou no momento em que ele participava da bancada de comentaristas do Jornal da Cultura, e seu primeiro comentário ao vivo no telejornal foi de que tratava-se de um óbito que não tinha relação com a vacina e, portanto, não havia necessidade de interromper o estudo.

Na manhã do dia seguinte, 10 de novembro, houve uma reunião virtual entre a Anvisa e o Butantan. Após a reunião, o Butantan realizou uma coletiva de imprensa, questionando a decisão da agência de suspender o estudo. “Os dados são transparentes”, afirmou Covas. “Do ponto de vista clínico, é impossível que haja relacionamento desse evento com a vacina.” (Por questões éticas e de sigilo, nenhum dado sobre a identidade do paciente ou sobre o evento adverso foi divulgado pelo instituto — as informações de que tratava-se de um suposto suicídio, ou overdose, foram levantadas pela imprensa. Segundo o boletim de ocorrência, o corpo foi encontrado com uma seringa e frascos de remédio.)

“Se vocês pudessem ter acesso às informações poderiam avaliar quão injusta está sendo essa penalidade”, disse o secretário-executivo do Comitê de Contingência contra o coronavírus no Estado de São Paulo, João Gabbardo dos Reis. Ele ressaltou que o evento adverso grave (óbito) ocorreu 25 dias após o voluntário ter tomado a vacina — ou “suposta vacina”, como ele disse, já que é possível que o paciente estivesse no grupo placebo —, o que praticamente anula a possibilidade de o efeito ter sido induzido pela vacina. 

No mesmo dia, algumas horas depois, a Anvisa também realizou uma coletiva de imprensa na sua sede, em Brasília. Segundo a agência, a notificação enviada pelo Butantan dizia apenas que havia ocorrido um evento adverso grave não esperado, sem dar qualquer detalhamento adicional sobre o que havia acontecido. Diante disso, a Anvisa fez o que manda o protocolo: interrompeu o estudo. “Não identificamos detalhes que davam segurança para nós de que o estudo poderia continuar”, disse o gerente geral de medicamentos da agência, Gustavo Mendes.

“Decidimos por interromper o estudo e prosseguir com a investigação, em vez de seguir com a investigação para depois interromper o estudo”, disse Mendes ao Jornal da USP. “Não é uma medida exagerada, na minha opinião técnica, porque interrupção de estudos é algo muito comum.” Apesar dos argumentos apresentados posteriormente pelo Butantan, ele ressaltou que a prerrogativa de determinar a ausência de nexo causal entre o evento adverso e a vacina não cabia ao instituto (que carrega o viés de ser o patrocinador do estudo), mas ao comitê independente de segurança do projeto.

Só então, na terça-feira, o Butantan acionou o comitê independente do estudo, que deu um parecer favorável à continuidade do estudo no mesmo dia. Com essas informações em mãos, na manhã do dia seguinte, quarta-feira, 11 de novembro, a Anvisa revogou a suspensão e autorizou a retomada do estudo.

“Fizeram um barulho enorme por algo que deveria ser relativamente normal”, disse ao Jornal da USP o presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ricardo Gazzinelli.

Em entrevistas à imprensa, o coordenador da Conep, Jorge Venâncio, criticou a decisão da Anvisa. Segundo ele, a Conep recebeu a notificação do evento adverso grave na sexta-feira, 6 de novembro, e entrou em contato com o Butantan no mesmo dia para solicitar esclarecimentos antes de tomar uma decisão. (A Conep também teria autoridade para suspender o estudo, se considerasse que houve alguma violação ética na condução da pesquisa.) 

“Você não pode suspender a pesquisa por qualquer tipo de evento adverso. Quando você está testando uma quantidade de dezenas de milhares de pessoas, você tem uma quantidade de eventos muito grande. Correto é suspender quando você tem um evento relacionado com o que está sendo testado ou quando há dúvidas se esta relação existe ou não. Se a coisa manifestamente não tem relação, no nosso modo de ver não é um caso de suspensão da pesquisa”, disse Venâncio ao portal de notícias UOL.

Outros especialistas ouvidos pelo Jornal da USP, no entanto, consideraram que a decisão da Anvisa foi correta, do ponto de vista técnico. Todos concordaram, porém, que a maneira como a agência comunicou essa decisão ao Butantan e à sociedade foi equivocado. “O que houve aqui foi um problema de comunicação. Faltou dialogar”, disse o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e ex-presidente da Anvisa, em entrevista à Rádio USP. “Temos que acabar com esse clima de guerra; tem de haver um clima de cooperação.”

Sobre essa questão, o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, disse que a Anvisa é uma agência reguladora do setor e não uma “parceira” do Butantan ou de que qualquer outras instituição regulada por ela. “Não é atribuição da agência fazer essa interlocução. A agência decide”, afirmou Torres, na coletiva de terça-feira. “Quando temos notícia de um evento adverso grave não esperado, o protocolo manda a suspensão imediata do estudo. Foi o que fizemos.”

Em artigo no jornal Folha de S. Paulo, publicado na tarde de terça-feira, o médico infectologista e professor da Faculdade de Medicina da USP Esper Kallás, que coordena os testes com a Coronavac dentro do Hospital das Clínicas (núcleo ao qual o voluntário morto estava vinculado), escreveu: “Se existe alguma má impressão sobre esse ocorrido, a sensação de que ‘algo está errado’ ou de que ‘estão escondendo alguma coisa’, é por falta de fundamento e conhecimento das diretrizes que norteiam pesquisas clínicas. Fato é que a interrupção representa exatamente o contrário: é sinal de respeito às diretrizes de avaliação de segurança.”

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Texto atualizado em 16/11, com informações adicionais.


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