Oswald de Andrade e a ressalva ao ufanismo bandeirante

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 24/01/2025 - Publicado há 1 mês

Em 2025, a obra de José Oswald de Sousa de Andrade (1890-1954) entrará em domínio público: razão para celebrar. De maneira geral, revisitar suas provocações em prosa e verso costuma despertar um riso incômodo, de canto de boca, sintoma do que havia de tragicômico nos instantâneos que ele cultivou nos jornais e livros.

Muito já se disse sobre a estrutura fragmentária de suas obras – nos poemas, a supremacia do verso livre; na prosa, a justaposição de blocos textuais. O que nem sempre se explicita é a possibilidade de se tratar de estratégias composicionais (e não de mero arroubo, suposta inapetência ou alegada falta de talento, como pretenderam alguns).

Familiarizado com as estéticas de vanguarda europeias, esse acúmulo de falas e cenas em reduzido espaço foi uma das maneiras que Oswald encontrou para transpor para o plano verbal a perspectiva múltipla e simultânea sugerida pelos pintores cubistas. Uma das produções mais eficazes a fim de ilustrar esse procedimento são os dois volumes de Marco Zero – obra situada a meio caminho entre o romance de costumes, a crônica, a anedota e o chiste.

Ao longo da história, sobrepõem-se variados temas e diferentes estilos que resultam convergentes. A narrativa manobra diversas cenas como um feixe, em meio à profusão de personagens, entre diálogos aparentemente soltos, ou recortes do cotidiano ambientado em variadas partes do território paulista.

Uma boa amostra desse vai-e-vem está no segundo capítulo, A Escola do Cavalo Azul, encontrado no primeiro volume (A Revolução Melancólica). Publicado originalmente em 1943 pela Livraria José Olympio Editora, a primeira edição do romance se tornou rara e de difícil acesso.

Se nosso propósito fosse descrever o romance do modo mais sumário possível, diríamos que se trata de uma antologia de retratos obtidos pelo acúmulo de atos breves que encenam as assimetrias sociais; o comportamento provinciano das gentes; a combinação do discurso ufanista à prática autoritária, alheia a outras realidades.

— Comemorar São Paulo é falar de São Paulo das Bandeiras! É cantar os feitos heroicos desses homens que vararam os rios desconhecidos e misteriosos. Eles avançavam numa terra onde só havia, como disse Bilac, um tropel de índios e de feras!

Uma professora se dirige aos jovens alunos de uma escola improvisada a partir do antigo “salão de baile” local. A menção a Olavo Bilac (um dos principais alvos dos modernistas paulistas, desde antes da Semana de 1922) não é gratuita: reitera o propósito de questionar o teor e a dicção grandiloquente empregada pelo príncipe dos poetas (como Bilac era conhecido desde o final do século 19, no país).

A fala da educadora alude ao poema O Caçador de Esmeraldas, que encena a queda de Fernão Dias Paes Leme e o modo como ele enxergava os elementos da natureza. Ambientados no século 17, os versos bilaquianos pretendiam fornecer uma visão extremamente positiva das bandeiras, embora elas constituam capítulos os mais violentos, transcorridos enquanto o Estado do Brasil era extensão do império português.

Por sinal, o uso de “tropel”, em referência aos povos originários (e às “feras”), sugere que o poeta forjava o pretenso heroísmo dos bandeirantes, caracterizados como desbravadores que, dentre outros obstáculos e desafios, teriam enfrentado a bravura dos habitantes nativos.

Sendo este um mero convite à leitura, recorde-se que Marco Zero foi publicado há mais de oitenta anos. Dentre outras coisas, isso implica ler a narrativa oswaldiana como paródia da literatura institucional oitocentista. Um de seus propósitos era evidenciar o severo contraste entre o conteúdo ufanista (matéria da aula) e a condição (dura e desigual) dos alunos que dela tomam parte.

Eufrásia começou a ditar.
— “O Brasil é o país mais belo e mais rico do mundo”…
Idalício Diadermino apertava o giz sem poder escrever.
Houve um grito na classe. A professora correu. Ele estava estendido no soalho, com os olhos vidrados.

De um lado, Eufrásia a simbolizar o discurso edificante reiterado pela instituição de ensino; de outro, a concretude: Idalício está “descalço”, com a “camisa em trapos”, a desmaiar de fome. Cenas dramáticas como essa percorrem os dois volumes de Marco Zero – que, de acordo com o próprio Oswald de Andrade, “tende ao afresco social”, refletindo, pois, “uma tentativa de romance mural”.

Eis uma das chaves de leitura da obra que, à sua maneira, contestava a persistente mania de nos vangloriarmos, ainda que por feitos controversos. Tarefa nada desprezível, já que Oswald de Andrade costumava estender as margens da literatura para além do entretenimento resignado e da leitura acrítica.

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