Ensaio, gênero literário?

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 08/05/2023 - Publicado há 1 ano

Estamos habituados a utilizar a palavra ensaio em três ou quatro situações, por exemplo, quando nos referimos ao âmbito da fotografia, da música, ou da filosofia. Imaginamos o ensaio fotográfico como um evento protagonizado por artistas, modelos ou celebridades, registrados sob as lentes de um(a) profissional em captar os ângulos mais fotogênicos. Concebemos o ensaio musical como uma sessão, amadora ou profissional, em que os membros de um conjunto praticam novas e velhas composições, até lograrem as versões definitivas. A questão seria mais complexa se precisássemos descrever o que vem a ser discurso ensaístico.

Para fins didáticos, estabeleçamos dois marcos temporais, com vistas a melhor situar a discussão. Atribui-se a Michel de Montaigne (1533-1592) a primeira obra “ensaística” da assim chamada Era Moderna. Originalmente publicados em três volumes, entre 1580 e 1588, seus Ensaios versavam sobre temas os mais variados e abrangentes – desde o destino concedido aos índios (após as guerras de conquista promovidas pelos europeus) até a necessidade de abraçarmos a ideia de que somos finitos e seria sábio nos prepararmos desde cedo para a morte.

Exemplo bem mais recente pode ser lido entre as reflexões deixadas por Theodor Adorno (1903-1969). Em O Ensaio como Forma, o filósofo alertava para o caráter fluido e sem margens rigorosas dessa modalidade discursiva. Mais ou menos situado entre a criação literária e o artigo científico, o ensaio pressuporia o predomínio da interpretação (não necessariamente original) sobre o registro e a classificação. Numa era em que os sujeitos rumam ao hiperindividualismo, o ensaio também pode soar como peça de resistência: um contraponto em meio à concepção puramente pragmática, apoiada sobre o dado absolutamente objetivo.

Nessa acepção, diríamos que o ensaísta escreve com a pretensão de que o discurso não se revista com a aparência de produto para reflexão instantânea e consumo imediato. Afinal, tanto a composição quanto a decodificação do ensaio demandam tempo muito maior que reproduzir opiniões alheias ou proclamar achismos irrefletidos. Aos desavisados, cumpre observar que não há nada menos ensaístico que a reiteração do dogma, percebido por seus adeptos como indubitável, inquestionável e indiscutível.

Dizendo-o de outro modo, o ensaio não se nutre de fórmulas, nem se confunde com receituário. O ensaísta está mais interessado em sugerir diagnósticos que em estimar prognósticos. Ele mais desconfia que assegura; mais abrange, que delimita; mais arrisca, que certifica. Porventura o leitor questione: estamos diante de um gênero literário? de uma espécie textual? de um estilo particular de escrita? de uma modalidade discursiva específica?

Como o ensaio não dispõe de preceptivas, nem conta com instruções de uso, digamos que ele nasce da reflexão, combinada ao exame atento de outros ensaios. Ou seja, vale para o ensaísta recomendação similar a que se costuma sugerir a articulistas e contistas: (des)aprenda a redigir ensaios com aqueles que o precederam temporal, espacial e tematicamente.

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