De que o Romance é feito?

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 01/08/2023 - Publicado há 1 ano

Para começo de conversa, precisamos ressaltar uma distinção importante. Compreendido como gênero literário que nasceu no século 18 e se consolidou durante o Oitocentos, o Romance nada tem que ver com a noção vaga de romance – grafado assim, com inicial minúscula –, palavra do senso comum com que se costuma descrever a aproximação ou o relacionamento amoroso entre pessoas ou personagens. Para que não pairem dúvidas, neste brevíssimo comentário, abordam-se aspectos relativos a narrativas em prosa mais extensas que o conto e a novela.

Em meados do Setecentos, começaram a circular Romances epistolares. As Cartas Persas, de Montesquieu, datam de 1721; Pamela, de Samuel Richardson, apareceu dezenove anos depois. Em 1761, foi publicada A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau. Vinte e um anos mais tarde, um soldado que faria longa carreira militar na França usa uma frase extraída do romance de Rousseau como epígrafe de As Ligações Perigosas.

De que essa obra trata? Essencialmente, do relacionamento entre nobres que circulavam por várias cidades do reino, enquanto combatiam o tédio e questionavam a moralidade, especialmente quando atrelada à religião. Escrito inteiramente sob a forma de cartas trocadas entre as personagens, os protagonistas são dois libertinos: o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil. A narrativa gira em torno das fofocas e joguetes acionados por uma e outro.

Ao tomar ciência de que Valmont se afeiçoara à Presidenta de Tourvel, Merteuil desafia o amigo/amante a obter uma prova material de que a mulher corresponderia aos sentimentos dele. Enquanto transcorre a aposta, eixo primeiro da narrativa, somos apresentados a outras figuras ambivalentes – como o par Cécile Volanges e Cavaleiro Danceny – cuja lenta aproximação contrasta vivamente com o pragmatismo voraz que orienta o novo affair entre Visconde e Marquesa.

À primeira vista, o teor das cartas no romance concede acesso integral ao que as personagens sentem e pensam. Porém, a leitura mais atenta despertaria algumas dúvidas a esse respeito. É natural: situados dois séculos e meio à frente, tendemos a supor que o modo contemporâneo de conceber as relações pessoais não fosse tão diferente em outros tempos e espaços.

Portanto, onde residem as principais diferenças? A resposta pode soar algo simplória. Em primeiro lugar, é preciso contextualizar a narrativa inventada por Choderlos de Laclos. Ela se passa quando a França monárquica estava configurada como uma sociedade de Antigo Estado, em que a burguesia ainda era vista com desprezo pelos aristocratas – especialmente aqueles que frequentavam assiduamente o ambiente cortesão, a nobreza e o clero.

Em segundo lugar, é preciso recordar que o mundo reproduzido em As Ligações Perigosas coloca em xeque a conduta das personagens, já que a narrativa espelha com notável competência os modos como os membros de uma sociedade de representação atuavam. Devemos lembrar, também, que as palavras, as roupas e os gestos participavam de um rigoroso sistema de códigos, preceitos e etiquetas que deveriam ser encenados dentro e fora do ambiente palaciano.

O terceiro aspecto se refere ao mecanismo duplo com que nobres e fidalgos se comportavam. Como Cécile admite, em uma de suas cartas endereçadas à amiga Sophie, “[…] a sociedade não é tão divertida quanto pensávamos”. De um lado, as personagens exercitam a arte da simulação, ou seja, afetam modos decorosos de comportamento, em obediência à estreita lógica das convenções reservadas às diferentes camadas sociais. De outro lado, praticam com rigor e eficácia a arte de negacear intenções, esconder afetos e disfarçar contrariedades.

No romance, o tempo todo essa maquinaria de artifícios é colocada em relevo pelos interlocutores, pois, embora as cartas sejam quase sempre cifradas, quando não pautadas pela acidez sem atalhos, o conjunto delas permite não apenas reconstituir o contexto em que as relações se dão, mas detectar lacunas de sentido, mesmo nas declarações mais assertivas.

Seja como for, a maneira como o romance epistolar se estrutura chama atenção para dois ingredientes caros ao Romance, de forma geral:

(1) Nele, cabem outros gêneros discursivos, além da carta, como o bilhete, o telegrama, o mandado etc. Essas diferentes modalidades textuais reforçam a verossimilhança e ampliam a sensação de que estamos diante de uma narrativa perfeitamente crível.
(2) A comunicação por escrito pode ser interpretada como algo ora positivo, ora negativo, a depender dos atores envolvidos e de suas intenções.

Em tese, a intensa troca de correspondências permitiria avivar as relações afetuosas entre pessoas distantes; por outro lado, o diálogo realizado por intermédio das cartas sugeriria quão complexo é criar e manter determinados vínculos, sob pena de a competição entre os amantes minar a desejável convergência de afetos e interesses, anulando a possibilidade de as personagens concretizarem parcerias, com vistas a executar planos de curta ou longa duração.

Obviamente, o tema “correspondência pessoal” ultrapassa as margens da ficção. Ressalvas feitas, poderíamos nos perguntar de que maneira o intercâmbio de missivas, nesse e em outros Romances, ilustraria determinadas características percebidas na comunicação propiciada pelos aplicativos de mensagens – seja ela transmitida textualmente, seja em arquivos de áudio. Decerto, o leitor já terá notado que o trânsito de certas palavras tanto anula obstáculos quanto cria barreiras; tanto reforça os vínculos quanto escamoteia desejos; tanto disfarça a sanha de poder, quanto convalida as assimetrias.

Como se vê, passamos a especular sobre eventuais paralelos entre a arte literária de Romancear e o romance tomado de empréstimo ao senso comum. Talvez seja uma questão de pouca monta, tendo em vista que ficção e empiria podem compartilhar alguns elementos, embora não reproduzam afetos e efeitos da mesma forma, nem com a mesma intensidade. Importa assinalar que num e noutro plano seria possível registrar imponderáveis porquês sobre a origem, a natureza e os descaminhos percorridos pelos afetos.

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